A chave no vaso – Prosopopeia
 
Ninguém sabia que se amavam.Mas isso não tinha a menor importância.Eram feitos de matéria diferente, vinham de mundos opostos, mas ainda assim se amavam, se entendiam.
 
Ela havia sido concebida num chaveiro antes do apartamento ficar pronto.Sua dona, uma viúva, sempre a carregava quando visitava as filhas, quando fazia compras no supermercado.Mas a memória, traiçoeira e ousada, fazia a pobre esquecer-se dela, uma chave, em qualquer canto que fosse.
 
Um dia, a senhora ganhou uma muda de Lírio da Paz.Plantou-o num vaso bem bonito e resolveu colocá-lo na porta do apartamento.Todos os dias ela cuidava daquele presente com ternura e um pouco de água.
 
O lírio gostava de ficar ali, pois assim sentia-se mais parte da natureza.Olhava de uma fresta para as nuvens, sentia a brisa passear com dedos de mãe sobre suas folhas. No entanto, sua paisagem era quase sempre a mesma, pendurado naquele xaxim.Queria poder sentir as gotas de chuva, e todas as coisas que deveriam existir.
 
Numa segunda-feira, a senhora teve uma ideia que mudaria a vida daqueles dois seres para sempre: passou a guardar a chave dentro do vaso de lírio quando saía de casa.
 
Vencida a barreira inicial, chave e lírio passaram a conversar.A chave contava ao lírio como eram as cores do arco-íris, a beleza dos rios e tudo o que já havia visto.Assim, eles passavam tardes em conversas fagueiras, sonhando e, logo se apaixonaram.Como era triste à noite, tinham de dormir longe um do outro.
 
Estranhamente, quando a velhinha virou a chave na fechadura, naquela manhã ensolarada, ela foi direto para a bolsa. Retirou o vaso da parede, deixando-o aos cuidados de uma vizinha.
 
Dias se passaram.A chave o lírio não se viam mais.A chave, mais resistente, porque era essa sua natureza, ficava apenas mais fria e mais cinza com a separação; já o lírio morria gradativamente, por mais que a vizinha lhe tratasse com zelo.Suas folhas perdiam o viço, suas raízes negavam-se a sugar a água que lhe era oferecida.
 
Quando voltou de viagem, a vizinha, desconcertada, explicou a ela que havia se esmerado em cuidados com a planta, mas que infelizmente ela havia secado por completo.Entregou-lhe o vaso com o lírio morto e em seguida, como consideração, uma nova planta.
 
Assim que entrou em seu apartamento, a senhora pôs o vaso do lírio morto na mesa da sala de jantar junto à chave, enquanto pendurava o novo vaso na porta de entrada.Assim que a chave constatou que seu amado havia morrido, sentiu-se amolecer.
 
Com destino ao mercado, a senhora apanhou a chave, mas assim que a passou pela fechadura, teve a surpresa: ela havia se quebrado em duas partes:
 
-Estou sem sorte hoje! Primeiro o lírio, depois a chave que me quebra!
 
Mais tarde, de posse de nova chave, ela ajuntou num saco de lixo, o lírio morto e a chave quebrada e o depositou na lixeira.
 
Um catador de sucata que por ali passava, recolheu o saco e levou-o para casa:
 
-Vou replantar a semente dessa planta – disse.E essa chave quebrada vai ser o amuleto dela!
 
O lírio, agora no quintal, conferia as belezas narradas pela chave.Toda a vida diante deles. Estavam livres e felizes.Nunca mais se separaram.
 

 
(Maria Fernandes Shu – 19 de maio de 2009)



Esse texto faz parte do VI Desafio Recantista/2009. Conheça outros textos com o título precedido por  "A chave no vaso".

Boa leitura!
 
 

 
 
 
 
 
Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 19/05/2009
Código do texto: T1603531
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