O Anjo Curioso
Conta-se a história de um anjo que desejou passar uns dias entre os humanos, mas sem ter que cumprir uma missão; queria era observar cada momento na vida das pessoas aqui na Terra. Esse anjo chegara diante de Deus e fez seu pedido. Deus na sua infinita sabedoria mostrou os perigos e a triste realidade dos homens, mas o anjo insistiu e obteve permissão para descer.
O anjo muito satisfeito escolheu uma casa onde havia uma família numerosa e ali ficou observando. Estranhou logo no primeiro dia: É que as pessoas já se levantavam irritadas uma com as outras. Qualquer coisa era motivo de contenda, xingamento e até de briga: Um menino pediu um pedaço de pão e como resposta recebeu um cascudo. O marido brigava com a esposa porque não encontrava a escova de dente, o filho mais velho dava tapa na irmã mais nova por ter usado seu vidro de perfume. Naquela casa não havia paz. O anjo ficou sem ação.
Saiu dali, acompanhando o menino que levara cascudo. Lágrimas caiam por seu rosto; cabisbaixo ia para a escola. Sofria, mas não tinha com quem falar. O anjo olhava penalizado. Que vida tinha essa criança!
Chegaram à escola. O anjo pensou que ali deveria ser um lugar de aprendizagem, alegria e experiências, porém logo de cara teve a maior decepção. A escola transformara-se num campo de batalha. Crianças brigando, preparando-se para lutas futuras. Havia um grupo que lhe chamou atenção. O anjo se aproximou para ouvir e observar de perto o que estava para acontecer. Uma criança se destacava em meio às outras. Acertava com o grupo que, segundo suas diretrizes, teriam que dá uma surra no menino sarnento de outra turma. Motivo: Não iam com a cara dele.
Enquanto isso num canto uma criança estava encolhida. No seu semblante liam-se o medo e a dor. Acabara de levar uns puxões de cabelos. Suas roupas estavam sujas e rasgadas. O nariz sangrava. Uma voz ali perto esclareceu o quadro:
- Professora, Adelaide está chorando porque Maria Clara disse que aqui nessa escola não é lugar para negrinha estudar!
O anjo resolveu observar a atitude da professora. Essa foi até a aluna que estava machucada, deu-lhe um abraço e a levou até à secretaria. A diretora sabendo do que aconteceu chamou a aluna briguenta, mandou-a para casa com um bilhete. Suas ordens eram: Maria Clara só entraria na escola com a mãe.
O anjo segue Maria Clara, quer saber a reação da sua mãe quando receber o bilhete. Com certeza a menina seria repreendida. Puro engano. A mãe da menina ficou furiosa com a diretora que teve ¨a petulância de mandar sua filha para casa por causa de uma negrinha qualquer¨.
O anjo pôde compreender que Maria Clara era mais uma vítima. Era vítima da visão preconceituosa da própria mãe. Saiu dali decepcionado.
No caminho viu um homem que passava apressado, fazendo sinal para um Táxi. O motorista parou o carro, o homem entrou e o anjo curioso seguiu junto. O carro parou em frente de uma casa, uma mulher estava vindo, percebia-se que estava para ganhar bebê. Agarrada à sua saia estava sua filhinha de três anos. A mulher entrando no carro; olhou para trás acenando para a filha que chorava agarrada ao pescoço de uma mulher. Saíram correndo para o hospital mais próximo. Não havia vaga. Segue para a próxima maternidade. A mesma resposta. Tentam a terceira. Não deu tempo. A mulher dá a luz no banco traseiro do carro...tem uma hemorragia....morre.
Os culpados nessa hora não aparecem. Fica a dor da perda, e uma bem maior e estranguladora: a dor da impunidade, a dor do não poder fazer nada para impedir que outras pessoas passem por isso. A dor de perceber que uma vida não vale nada.
O anjo resolveu entrar no hospital. Iria entrar naquele ambiente onde as pessoas procuravam o socorro através da medicina. Em proporção que entrava por aqueles corredores, salas e quartos, seu coração de anjo entristecia. Na emergência, viu pessoas esperando por atendimento, algumas deitadas sobre papelão. Descobriu que ali também havia médicos e enfermeiros sobrecarregados; também muitos outros com corações insensíveis à dor alheia.
O anjo resolveu entrar na UTI. Quem sabe, pensou o anjo ali encontro corações mais amorosos, afinal as pessoas que ali estão prostradas... A vida está por um fio. O anjo aproximou-se de um leito. Uma pessoa jazia imóvel, respirava com a ajuda de aparelhos. Uma enfermeira se dirigiu à sua colega:
- Essa mulher ainda não morreu? Pensei que ia ficar livre dessa...
A outra enfermeira a repreendeu:
- Não diz isso, Júlia! Você não tem coração? Ela pode ouvir o que você está dizendo!
A outra dando uma risada, disse:
- Qual! Isso tá mais pra cadáver do que pra gente. Quer apostar quanto que amanhã ela não chega?
A enfermeira Matilde olhou para a doente, algo lhe chamara a atenção. Aproximou-se, olhando atentamente, viu naquele rosto cadavérico uma lágrima. Chamou a colega do plantão e disse:
- Júlia, ela ouviu! Você entristeceu o coração da paciente!!!
Matilde abaixou-se, enxugou aquela lágrima solitária, e começou a falar baixinho:
- Dona Maria, estamos aqui para cuidar da senhora. Faça força para melhorar, pois sua família está torcendo por sua recuperação, e nós também, claro!
Enquanto falava, acariciava o cabelo e rosto da paciente, e mais uma vez pôde constatar que ela ouvia, pois outras lágrimas continuaram a surgir...
A partir daquele dia a visão de Matilde fora mudada em relação aos pacientes. Quanto à enfermeira Júlia...
O anjo saiu dali, satisfeito por ter visto um coração que tinha um vislumbre do amor de Deus.
Passando em frente a uma casa viu luz acesa. Uma janela, uma sala, uma mesa... Dava pra perceber que um homem, debruçado sobre um papel escrevia com muita pressa. Sua mão tremia, seu rosto estava perturbado. Levanta, vai até o armário pega uma arma. Depois pega a chave do carro e sai com muita pressa. Parece temer os próprios pensamentos. O anjo segue o homem até um prédio, onde percebe que ele é conhecido, pois entra pela garagem, pega o elevador até o quinto andar. Abre uma porta do apartamento 507, ainda sem acender a s luzes, entra no primeiro quarto aponta a arma e dispara na cabeça de uma mulher que dorme. Vai para o segundo quarto, e ali dá outros disparos, matando duas lindas crianças que dormia embalada nos sonhos dos inocentes; depois atira na própria cabeça, e ali tomba sem vida.
O anjo sai cabisbaixo. Não entende tanta violência entre os homens. Volta até a sala onde o homem estivera escrevendo, e assim, pôde entender o que passara na sua cabeça pra chegar a cometer atos tão bárbaros:
Na carta ele diz: Despeço-me como um covarde, pois não consigo aceitar perder a minha família por causa do vício do jogo. Perdi tudo e pra não deixar os amores da minha vida na miséria, decidi matá-las. Não dei ouvido aos conselhos...Não aproveitei as oportunidades... Por ter brincado de herói, por ter me deixado cair... Pagarei com a própria vida por todo fracasso.
O anjo sai daquele lugar decidido a voltar. Enquanto caminha o dia já está dando sinal de vida. Encontra pessoas dormindo debaixo dos viadutos, tendo por colchão e lençol, um pedaço de papelão. Contempla pessoas famintas à procura de um pedaço de pão. O anjo encontra velhos e doentes, sentados nos bancos das praças, com as roupas rasgadas e pés descalços.
Muitos passando para o trabalho ou voltando do mesmo; indiferentes, seguem. Cada um cuidando da sua vida. Outras passavam amedrontadas, temendo ser molestadas.
O anjo continua em frente. Vai até um monte mais alto e ali contempla a cidade que aos poucos acorda. Um nascer do sol esplendoroso...enquanto seu coração está em pedaços. Baixa a cabeça, deixa que seu coração de anjo fale ao coração de seu Criador. De repente, Ele chega:
- Queria te poupar de tudo isso, mas permiti que contemplasse com teus olhos o que jamais desejei que houvesse entre os homens. Se teu coração chora e sofre pelo que viste, e o meu?
Deus continua com voz amorosa e consoladora:
- Desejei que os homens se amassem indiferentes a cor da sua pele, da sua cultura, da capacidade intelectual e personalidade. Desejei que os homens respeitassem uns aos outros, e nas suas diferenças, se completassem.
Coloca a mão sobre a cabeça do anjo que continua sentado, e diz:
- Viste violência no lar, na escola, na rua, no hospital... Mas não vistes 1% do que contemplo todo dia nos quatros cantos da Terra.
Lágrimas descem pelo rosto do anjo. Lágrimas descem dos olhos do Criador.
_ Venha para meus braços. É tempo de voltares. Há muita coisa por fazer.
O Criador com voz de Pai que tem tudo sob controle, acrescenta:
- No tempo tudo vai estar aonde sempre desejei que estivesse. No tempo certo tudo vai ser como desde o início planejei para os homens. Espera e descansa em mim.