A menina de trança

Sentada numa cadeira de rodas, ficava naquela janela a olhar. Porém seu olhar era de quem está vendo além das pessoas, das coisas à sua volta. Havia um silêncio que assustava e ao mesmo tempo chamava a atenção. Era um olhar que tinha uma linguagem que só quem já passou por caminhos espinhosos sabe avaliar, e entender.

Cabelos longos e escuros eram trançados pela sua mãe que amorosamente tentava deixar a sua princesa arrumada. Elisângela parecia uma folha levada pelo vento. Rosto sereno que até no silêncio passava uma mensagem de dor. Elisângela era uma vela prestes a se apagar.

Mas antes não era assim. Sua vida sofreu um impacto de 360°. Sempre fora alegre, e pulava tanto que mais parecia uma cabritinha. Aliás, esse era o nome carinhoso que seu pai lhe dera.

Certo dia, houve uma reunião no colégio. A diretora advertia os pais dos perigos das drogas, e o quanto ela estava tão perto dos filhos. Acrescentou ainda que precisava do apoio de todos, pois foram vistos pessoas que tinham ligações com traficantes, rondando a escola,e a diretora tinha certeza de que já havia ¨mochilinha¨dentro do colégio passando suas mercadorias.

Dona Edite chegou em casa preocupada, pois criava os filhos com cuidado, e como pobre fazia o possível para dar a cada um deles o melhor.

¨Deus me defenda ver um filho meu nessa situação¨. Pensava ela. Chegava a sentir palpitação no peito quando via aqueles jovens na flor da idade dependentes das drogas.Muitos já tinham largado os estudos, perdido o emprego; outros já tinham até praticado pequenos furtos para manter o vício. Havia aqueles que foram assassinados e outros que já tinham passagem pela polícia.

Lembrou de Silvano, filho único, já tinha tentado tantos tratamentos, porém sempre voltava a cair, e por achar que a causa de toda dor na família era ele; trancou-se no banheiro e cortou o pescoço atentando contra a própria vida. Sua mãe o encontrara sangrando, e ainda pôde prestar socorro ao filho.

Ah,Sivano,como eu gostaria que você conseguisse vencer esse dragão que te atormenta! Você que era tão estudioso, fazia planos de ser astronauta, mas hoje encontrá-se lutando pra sair desse falso mundo colorido. Silvano era mais uma vítima.

Dona Edite conversou com o esposo, o seu Jurandir, sobre o assunto da reunião, e depois ambos chamaram os filhos e os advertiram dos cuidados que deveriam tomar.

Os dias foram passando, e nem perceberam que um dos rapazes que estava imcumbido daquela ¨área¨ficou apaixonado por Elisângela, e tinha decidido que aquela ¨mina¨seria sua.

_Pô, meu,tais fora! Tu não tem chance, cara! A mina não é das nossas!

-Cala a tua boca, Tatu, já tá tudo traçado, e és tu que vai levar meu recado pra mina, mora?

_Eu? Tem certeza, bicho? Se o pai da mina disconfiar, sei não.

_Faz o que eu mando,e deixa de besteira.

Elisângela saiu de casa como de costume e na metade do caminho foi abordada por Tatu que lhe passou o recado de Gibão. Ele já queria saber a resposta, porém ela saiu correndo e entrou na escola apavorada, achando que havia perigo por todos os lados.

_E aí Tatu, como foi?

_A mina parece um coelho assustado, bicho!Sei não!

_Tu dissesse que eu queria a resposta amanhã?

_Não deu tempo, meu!

_Pois amanhã – disse Gibão com voz ameaçadora- Tu vai lá esperar a resposta.

_E se ela disser não, que faço?

_Diz que acabo com toda raça dela!

Elisângela nervosa,não conseguia prestar atenção a aula, e a professora percebeu que algo estava incomodando sua aluna, chegou perto e quando colocou a mão no ombro da menina, essa reagiu de forma estranha: pulou como se tivesse levado um choque. Todos acham graça, menos a professora, que discretamente pede que após a aula Elisângela vá até a sala da diretora, pois precisa dar uma palavrinha com a aluna.

Ali chegando, Elisângela desaba. Conta tudo o que está acontecendo, e o pavor de voltar pra casa; a ansiedade é tão grande que seu corpo começa a transmitir sinais de que não está bem: enxaquecas, palpitação, dores abdominais, tontura.

Elisângela era uma garota de apenas doze anos. Sob tão grande pressão, desmaia, e é levada às pressas para o Posto médico, e é ali que sua mãe a encontra sob cuidados médicos.

Os pais decidem tirar os filhos daquele lugar o mais rápido possível, mas como fazer se tudo naquela área estava sob supervisão de Gibão? Vender, alugar, entrar,sair...tudo tinha que passar pelo crivo de um garoto de apenas 19 anos. Mas se fosse preciso perderiam tudo, para salvar os filhos e a própria pele, pois ninguém saia impune quando caia no desagrado do ¨rei¨.

Ao despertar, Elisângela faz uma pergunta que a mãe não sabe responder:

_Mãe o que eu fiz para está passando por isso?

_Descanse filha. Não pense em nada, pois enquanto eu estiver viva farei tudo para ajudá-la.

Elisângela passou a dormir à base de medicamentos. Numa corrida contra o tempo, os pais de Elisângela pensa em como fazer para tirar alguns objetos, documentos, fotos, roupas e calçados sem que chamem atenção dos ¨olheiros¨. Todo dia o pai ia trabalhar com uma bolsa e uma pequena sacola, e nelas colocavam o que podiam.

O plano era tirar um pouco de cada vez, pois a qualquer momento teriam que sair, deixando tudo pra trás. Principalmente agora que o Gibão estava mais ousado, passando a mandar presentes para a ¨mina¨, e querendo saber da sua saúde. Dizia que estava ansioso por uma ¨resposta¨.

Os filhos fingiram que iam para a escola, e de lá foram de vez morar com os avós paternos. Faltava tirar Elisângela.Mas como? Tinham que aproveitar uma ocasião onde todos estivessem ocupados com a polícia.

E essa ocasião não tardou. Chegou mais rápido do que imaginavam.

Houve um assalto a um banco lá para a zona leste, e a pista da polícia terminava ali na comunidade. Os ¨ olheiros¨deram sinal de movimentação estranha, e presença dos ¨homens¨; enquanto pipocavam os fogos, os pais de Elisângela buscaram um carro, mesmo com receio de uma bala perdida, ou retaliação por parte dos marginais, saíram dali para não mais voltar.

Quando as coisas acalmaram, Gibão percebeu que a casa estava fechada o dia todo. Mandou que alguém fosse verificar, e não houve sinal de vida. Sob ordem do chefe,arrombaram a porta e constataram que a ¨mina de Gibão se fora¨.

Agora a vida daquela família estava em risco. Seu Jurandir teve que sair do emprego, e foi com toda família para o interior de São Paulo. Ali ficou numa granja trabalhando como caseiro.

Quase um ano se passara. Elisângela já estava mais alegre, deixara os remédios, voltara às aulas. Ainda tinha pesadelos, porém estava sendo acompanhada por um psicólogo, e segundo esse profissional, ela estava surpreendendo até as melhores espectativas.Dissera ele:

_Elisãngela, é uma guerreira, não tenho nenhuma dúvida quanto ao fato dela sair dessa situação mais forte e mais lutadora. Porque há pessoas que se dobram diante das dificuldades; outras se superam adquirindo capacidades para driblar as situações que lhes deixam paralisadas.

Todos acreditavam que Gibão tinha esquecido de Elisângela,e que na certa haviam arranjado outra ¨mina¨ para amar. A família nem desconfiava que Gibão não esquecera a ¨mina¨, não porque a amasse, mas por ter sido passado pra trás.E por esse motivo ele, o ¨rei¨ tinha decretado a morte do pai da menina.

Estavam sentados na varanda. Era um final de tarde lindo, e enquanto dona Maria terminava de preparar a janta, pai e filha tocavam violão e usufruíam de momentos tão belos.

_Canta aquela música que vovô gostava de cantar para atrair a atenção da vovó?

O pai ria, e começava a dedilhar o instrumento. Foi nessa hora que dois homens entraram atirando. Seu Jurandir tombou ali mesmo. A esposa saiu em socorro, e quando Elisângela percebeu que iam atirar na sua mãe, jogou o próprio corpo com a intenção de poupá-la, foi atingida, caindo ensangüentada.

_Comigo não se brinca. O aviso foi dado, e vocês não levaram a sério, bando de trouxa!

Virando-se para a mãe de Elisângela que abraçada à filha esperava ser executada, diz:

_Agora cuida dos teus defuntos. Olha, velha, se abrir o bico acabu com toda tua raça!

Saiu dali como se nada tivesse feito. Cumprira o que tinha dito que faria. Sentia sua alma lavada.

Foi uma luta contra a morte. Seu Jurandir morrera, porém Elisângela ficara paralítica e vivia numa prisão maior do que a falta dos movimentos das pernas, sua prisão era a da culpa. Sentia-se culpada pela morte do pai.

Ela agora teria outra batalha pela frente. Precisava acreditar que não fora a culpada. Precisava se livrar de um jugo tão pesado e mutilador, porque se não conseguisse, Gibão teria vencido aquela guerra. Se ela conseguisse sair daquela prisão, um novo horizonte iria surgia à sua frente, e a menina de trança estaria de volta à vida.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 06/03/2009
Código do texto: T1472071
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.