A LENDA DOS MARRÔCOS

O navio ancorou um pouco afastado da povoação e atirou dois tiros de canhão que não feriram ninguém, nem fizeram qualquer estrago. Os tiros, aliás, eram de pólvora seca, apenas faziam um tremendo estrondo e levantavam enormes nuvens de fumo negro... Eram só para assustar as pessoas, os piratas não tinham interesse em destruir as hortas, nem os animais, nem os estaleiros de milho. O que eles queriam era roubar, levar consigo o máximo possível.

As pessoas de terra, por sua vez, já tinham fugido para o mato, levando o que podiam e deixando o resto para os piratas. Era sempre bom deixar alguma coisa de valor, batatas, milho, hortaliças, alguma cabra ou ovelha, ou alguns porquinhos... se os piratas não ficassem satisfeitos com o que encontrassem, depois voltavam pela calada da noite, sem ninguém os ver, e destruíam tudo, lançando fogo às casas, matando os homens e maltratando as mulheres e as crianças.

Depois dos dois tiros de canhão o navio arriou de bordo quatro botes com uma meia dúzia de piratas cada um. Vieram remando para terra e desembarcaram. Ficaram alguns de guarda aos botes e os outros, em pé de guerra, armados até aos dentes, com espingardas, pistolas e punhais, vieram passar vistoria à povoação. Se algum cão lhes fazia frente, matavam-no logo, aos tiros.

Entraram de casa em casa a certificar-se de que não havia ninguém e que podiam pilhar á vontade o que as pessoas tinham deixado, ao fugirem para o mato. As pessoas, muito caladas e cheias de medo, espreitavam lá de longe por entre os ramos das árvores. As mães acalentavam os bebés ao colo para eles não chorarem. Os homens, furiosos, de não lhes poder resistir, rogavam pragas terríveis aos piratas, diabos vos levem, raios vos partam, bandidos! Um fogo os abrase! Só os cães é que não se calavam, ladravam como danados, rosnavam, latiam... e os donos, para evitar que eles fossem mortos a tiro, pelos piratas, mantinham-nos amarrados no mato, ao pé de si.

E ninguém tinha coragem de se aproximar da povoação, ou de se expor à violência dos malvados piratas.

Depois de darem a volta ao povoado e de entrarem em todas as casas, os piratas foram aos botes, buscar barris, cestos e sacos. Voltaram à povoação, juntaram tudo o que tinha algum valor, carregando tudo para junto dos botes. Milho, batatas, feijão, alguma roupa que, com a pressa não tinha sido levada para o mato, galinhas, cabras, dois porcos... barris de água. Já ia anoitecer quando eles finalmente carregaram os botes e foram levando tudo para o navio. Mas tiveram de vir a terra duas vezes para levarem tudo, e quando acabaram já era lusco-fusco.

Anoiteceu. Não havia luar, mas as pessoas, escondidas no mato, viam as luzes do navio e sabiam que os piratas ainda não se tinham ido embora. E ninguém se atrevia a sair dos seus esconderijos, enquanto eles estivessem por perto. Já ia alto o sol do meio-dia quando o navio pirata dando dois tiros de canhão, se pôs à vela e afastou da ilha.

As pessoas desceram então à povoação. Primeiro soltaram os cães que desceram correndo, a ladrar, depois desceram os homens, e por fim as mulheres com as crianças. E começou o trabalho de reconstrução. Havia portas e janelas partidas, armários e arcas desconjuntados...

Em casa da Margarida, os piratas tinham vasculhado tudo à procura de dinheiro. Gavetas vazias atiradas ao chão, os colchões rasgados a punhal e esvaziados... Levou dias, ela e a mãe, a limpar, a arrumar, a coser tudo de novo, enquanto o pai, lá fora, reconstruía o galinheiro e consertava o curral do porco que ficara danificado. Mas, com o passar do tempo, a vida foi voltando ao normal e os piratas foram-se esquecendo.

Foi então que a Margarida começou a notar coisas estranhas lá em casa. As coisas desapareciam misteriosamente. Especialmente a comida. Faltava pão, queijo, fruta, até o leite desaparecia sem que ninguém o bebesse. O pai e a mãe andavam sempre no campo a trabalhar e não davam por nada, mas Margarida, que é que ficava em casa, a arrumar , a limpar e a cozinhar, andava preocupada com aquilo. Primeiro pensou que fossem os ratos. Mas depois começou a ouvir ruídos estranhos à volta de casa. O ramalhar dos arbustos como se alguém andasse no meio deles, ás vezes até parecia ouvir passadas... E o pão, e o queijo, e a fruta, continuavam a desaparecer. Um dia resolveu tirar tudo a limpo.

Fingiu que saía de casa, mas escondeu-se no quintal e esperou. Pouco depois saiu do mato, pé ante pé, cuidadosamente, um homem ainda jovem, descalço, com o fato em farrapos, e a barba e cabelo compridos. Era um dos piratas que tinha sido deixado atrás pelos companheiros. Margarida teve pena dele e deixou-o entrar em casa e roubar comida, e não disse nada a ninguém. Durante muito tempo guardou aquele segredo de toda a gente, até dos pais, com medo de que denunciassem o fugitivo, o procurassem e o matassem.

Por sorte, a casa da Margarida era a que ficava mais afastada, perto do mato, e, durante muitos meses, ela pôde levar-lhe comida, roupa lavada, enfim, os cuidados necessários à vida sem que ninguém o notasse. Viam-se todos os dias e, embora a princípio não se entendessem, ela foi-lhe ensinando a sua língua acabaram por se amar profundamente.


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O resto da história é menos claro, mas Margarida conseguiu com o apoio, primeiro da mãe e depois do pai, que o padre da freguesia viesse às escondidas a casa deles catequizar o moço pirata que era de Marrocos e muçulmano. Depois de muitas visitas do bom padre a casa de Margarida, o jovem pirata foi devidamente baptizado.

O casamento já se fez na Igreja e na presença da povoação inteira que, por influência do santo sacerdote, já tinha perdoado e esquecido a origem do antigo pirata que ficou apenas na alcunha daquela família que ainda hoje, séculos depois, é conhecida pela família dos Marrôcos.

Nota: Tudo isto se passou, mais ou menos assim e há muitas gerações, na mais linda fajã do sul da Ilha das Flores, hoje chamada Costa do Lajedo. Dos Marrôcos ainda por lá vive algum, mas a maioria deles, como este que recolheu a lenda e a pôs em letra de forma, anda espalhada pelo mundo, especialmente pelas Américas.