Onde deixei meus tesouros?
O medo era algo palpável, visível e aterrador naquele ser tão sofrido. Parecia que toda carga tinha sido jogada sobre aqueles ombros magros e curvados. Talvez àquela vida tivesse sido moldada em cima de uma linha imaginária, fina, obrigatória, que no final de tudo lhe impedia desenvolver-se como um ser de mente e corpo saudável.
Temia tudo e todos. Não vivia, estava sempre a espera de uma traição, uma calúnia, uma ¨estocada¨pelas costas. De qualquer trocado que chegasse às suas mãos fazia força para colocar à parte uma quantia acreditando piamente que de ¨grão e grão a galinha enche o papo¨.
Sua casa era cheia de sacos,papel de presente ou de embrulho, potes,vidros que depois de ter seu conteúdo original usado, ¨passavam a servir para outras coisas¨.
Não confiava nos Bancos, segundo ela, ali só havia ¨um bando de urubus¨prontos para ¨bicar¨os trocados dos infelizes que acreditavam que uma Instituição tão séria veria seu dinheirinho tornar-se um dinheirão.Coitados, dizia ela, são dignos de pena e nada mais.
Tinha um modo todo seu para guardar o que tinha valor. Na sua casa recém-construída os muros ainda não tinham recebido reboco, então nos buracos dos tijolos, de preferência bem embaixo, próximo ao chão, ou então, bem em cima, impedindo assim de alguém descobrir seu segredo ela colocava dinheiro, jóias, seu relógio, documentos, e tudo que ela achasse que daria lucro a quem os encontrasse. Entre seus tesouros, haviam dois anéis que ela tinha grande estima pois era presente de um amigo, em épocas passadas,melhor dizendo quando ainda era uma adolescente.
Um dos anéis chamava atenção. Era de ouro 24, dourado como gema de ovo, aro grosso. Em cima uma pedra que tinha uma cor diferente: era uma mistura de azul com violeta. Uma pedra realmente grande e que se destacava por sua beleza. O outro anel era mais fino, mas também tinha sua beleza singular. Todo em ouro 24, em cima uma pedra com formato de pérola. Até hoje nem ela sabe dizer com certeza se era uma pérola verdadeira.
O terreno todo murado media doze metros de frente por trinta de comprimento. Havia buraco suficiente para que ela pudesse esconder o que bem quisesse. Outra coisa que ela costumava fazer era ao colocar algo de valor, fazia uma mistura de barro com água e fazia um tapume, para ela serviria como um sinal, para os desavisados apenas um tijolo mais ou menos rebocado.
O tempo passou. Quando precisava de dinheiro ia direto aos buracos. Quando ia sair se a ocasião fosse especial ia aos lugares certos e dali retirava seus anéis, relógio, broche e se enfeitava toda. Quando regressava, não importava a hora ia para o quintal e ali escondia tudo de novo. Porém nessas movimentadas ¨tira e bota¨, abre buraco, fecha buraco, ela foi se perdendo e já sentia dificuldade para encontrar seus tesouros, pois não aceitava ajuda dos filhos, e muito menos no marido de quem ela não ¨confiava mesmo¨.
Resolveu se mudar. Pôs placa na casa, colocou na mão de um corretor, que de corretor não tinha nada; andou oferecendo sua casa a Deus e ao mundo; e um dia ¨o sol voltou a brilhar para ela¨. Quinze anos não é mole! Ficar esperando vender uma casa quinze longos anos é ¨ dose pra leão¨.
O ¨acontecido foi assim¨: ia ela saindo da rua como sempre fazia à procura de uma casa para comprar e com a intenção de oferecer a sua.Nesse dia encontrou uma senhora que pediu a atenção dela pois precisava de uma informação. Se ela morava ali e se conhecia alguém que tinha uma casa pra vender. Pimba! Era o que ela procurava! Disse que sabia e foi logo convidando a ¨feliz compradora¨para olhar sua ¨linda e maravilhosa¨casa. E que só estava vendendo porque as filhas estudavam em outro bairro e ela desejava comprar uma casa mais perto do colégio das meninas. A feliz compradora se agradou, a vendedora saiu correndo à procura de uma casa, pois o prazo que a nova moradora dera fora curtíssimo. E se ela não encontrasse uma casa no bairro que ela tinha obsessão para morar? Meu Deus ajude-me! Foi aquele corre-corre, mas no final deu tudo certo. Fechou negócio no lugar dos seus sonhos, fez uma parte da mudança, ¨os cacarecos¨numa caroça puxada por um cavalo.E no dia seguinte, colocou rapidamente os móveis em cima de um caminhão e foi embora sem olhar para trás, pois segundo ela, ¨odiava aquele lugar¨.Uma filha que estava trabalhando, quando largou à noite já não poderia ir para o antigo endereço, teve que descobrir à duras penas onde era sua nova residência.
Naquele corre-corre, ninguém se lembrou de procurar os ¨tesouros¨. Chegou-se a pensar que ¨tudo¨tinha sido colocado nas caixas e ¨nada¨ tinha ficado para trás. Puro engano. Nunca mais foram vistos os anéis, o relógio, os broches e os dinheiros.
Até hoje, ela recorda os lindos anéis, principalmente o que tinha a ¨pedra grande, azulada¨. Dos dinheiros ela não tem certeza se esqueceu algum. Quanto às demais coisas, ¨só Deus sabe¨.
Ainda é visível o velho hábito de guardar ¨bugigangas¨ com coisas que realmente tem valor, porém ela nunca lembra onde colocou as coisas e quando vai abrir velhas caixas que há anos não foram abertas, descobre-se tantas ¨coisas¨perdidas que se tem a impressão que após sua morte a família irá descobrir verdadeiros tesouros.
Mas de onde vem esse hábito? A mania parece ser hereditária. Sua mãe tinha o costume de ¨ tudo¨ que ganhasse ¨guardar¨para um ¨dia¨usar. Os anos passaram, ganhou muitos presentes, pois o número de neto a cada ano aumentava, e em várias ocasiões especiais, tais como: Natal, Dia das mães, no Dia do seu aniversário, no Dia da avó. Ou então quando algum neto ou filho voltava de viagem sempre trazia um presente e a vovó ¨guardava ¨para ¨mais tarde¨.Quando morreu a velha, foram fazer uma limpeza na sua casa, e encontraram, para surpresa ¨dos faxineiros¨, presentes novinhos em folha. Muito dinheiro guardado. Dinheiro até que já não estava em circulação. E claro, a ¨festa¨foi grande.
Sei que essa história parece história de carochinha, mas é história verdadeira; se assim não fosse eu não poderia contar com tantos detalhes, vocês não acham? Acredito que em muitos recantos desse planeta chamado Terra, se procurarmos poderemos encontrar figuras tão pitorescas como essas aqui citadas.