Miudinho, o menino que não teve chance.

Um dia eu estava lá em casa, sentado nos degraus que davam para a varanda. Brincava com meu papagaio, tentava ensiná-lo cantar uma canção qualquer. Sabia que enquanto fazia isso, os meninos espichavam-se por cima do muro, achando graça em tudo que o papagaio fazia. Eu me sentia o Grande Domador de animais!

Entre esses meninos havia um que me chamava à atenção. Ele era miudinho em tudo: pequeno, magro, tinha dificuldade para falar e não era como os outros meninos de sua idade. Por esse motivo ninguém o chamava pelo nome. Era conhecido pelo apelido: Miudinho.

Miudinho era órfão de mãe e o pai ele não conhecera. Era, criado pela avó, uma mulher velha e muito doente. Apesar de pobre, essa mulher fazia o possível para que seu neto vivesse bem. Miudinho amava e sabia que era amado. Isso lhe bastava.

Embora em idade de fazer travessura, não era uma criança levada, e após voltar da escola brincava na frente de casa e antes que escurecesse sua avó o mandava entrar por causa do sereno.

Mas um dia o mundo de Miudinho desabou. Sua avó foi socorrida e quem a levou para o hospital trouxe a triste notícia: a vovó de Miudinho estava com Deus. Ele ao receber essa notícia chorou, num choro doído de se ver. Nós, seus amiguinhos, choramos também. Percebemos pela primeira vez que a vida é cheia de surpresas, umas alegres, outras dolorosas, amargas e difíceis de suportar. Ontem por volta dessa mesma hora, Miudinho estava sentado no colo da sua avó, recebendo carinho, enquanto ela lhe contava uma história, para que o sono viesse e ele tivesse lindos sonhos. Era assim toda noite, mas essa noite e nas demais que viriam Miudinho não mais ouviria a voz daquela que era tudo na sua vida.

Após a saída do caixão, uma preocupação: Quem ficaria com Miudinho? Ninguém tinha resposta. Naquele dia, não brinquei com meu papagaio, não fiz festa para o meu cãozinho, não consegui ser eu mesmo. E com os outros amiguinhos o mesmo aconteceu. Como não podia fazer nada, chamei os outros meninos e fomos até a casa do Miudinho. Quando entramos, percebemos que estava havendo uma conversa muito séria. Eram as pessoas da família que pelo tom de voz e semblantes sérios demonstravam não estarem de acordo. Qual seria o problema? Passamos rapidamente para o quarto de Miudinho e ali o encontramos deitado, enroscado na sua própria dor. Quando nos viu entrar, o olhar que nos deu valeu por mil palavras. Sentamos na sua cama, passamos a mão sobre seus cabelos, tocamos suas mãos que estavam geladas. Miudinho gemia. Miudinho sofria.

Não tínhamos palavras. Após um silêncio doloroso, perguntamos:

_O que vai acontecer com você, Miudinho? Com quem você vai ficar?

Ele nos respondeu com voz sumida:

_ Não sei... Estão há horas discutindo lá na sala.

E em soluços acrescentou:

_ Ninguém me quer...

Queríamos gritar:

_ Não, Miudinho, nós queremos você! Há lugar para você em nosso coração e na nossa casa!

Mas éramos apenas crianças que num momento como esse até nos adultos foge a voz. Voltamos a lhe abraçar e choramos juntos.

Uma voz se fez ouvir. Era alguém que nos mandava sair, pois precisavam dormir, estavam cansados. Saímos. E cada um foi para casa, não conseguíamos dizer uma palavra sequer.

No dia seguinte acordamos cedo, mas percebemos com surpresa que a casa de Miudinho estava fechada. Ele partiu e não pôde nos dizer adeus.

Os dias foram passando, e de vez em quando chegava notícia do nosso amiguinho. Uns diziam que ele estava bem. Outros diziam que ele estava sofrendo muito. Não sabíamos em quem acreditar.

Depois de um ano, chegou uma terrível notícia:

_Mataram Miudinho! _ falou alguém, com voz embargada.

Mas como isso aconteceu? Quem fez tão grande mal aquela criança? A verdade não tardou em chegar.

Miudinho sofreu cada dia que esteve na casa dos parentes. Lançavam-lhe ao rosto tudo: a comida que comia, a roupa que vestia, o sapato que calçava, o teto que lhe abrigava. Ele teve que parar de estudar. Os parentes lhe diziam com raiva:

_Não temos nenhuma obrigação com você, Miudinho!

Ele baixava a cabeça. As lágrimas desciam sem parar.

_Pare de chorar, Moleque!_ dizia-lhe a tia.

E acrescentava:

_Saia e vá procurar ganhar a vida, pois só tenho obrigação com meus filhos!- frisava meus filhos, deixando clara a acepção que fazia.

Acrescentava sem a menor compaixão:

__ E meu marido, só aceitou você aqui em casa porque eu pedi, mas não sei até quando...

Ficava uma ameaça no ar.

Miudinho a cada dia ficava mais apavorado, pois agora tinha que trazer para casa uns trocados ou algo que pagasse suas despesas, que segundo sua tia eram muitas. E quando ele não trazia nada, não tinha o que comer, recebia uns tabefes. Temia que um dia lhe jogassem na rua. Miudinho chorava.

Lembrava dos dias de outrora. Quando tinha um quarto só seu, lençóis limpos e cheirosos, comida para escolher e os braços amorosos que lhe acolhiam. Agora ele dormia num colchão, no chão da cozinha. O colchão era velho, fedia a xixi e de dia servia para ser arrastado pelo quintal nas brincadeiras dos filhos da sua tia. Muitas vezes, colocavam um cachorro sarnento em cima, e que só via banho de tempos e tempos. A comida era colocada no seu prato. Não tinha direito de escolha: todo dia: feijão, farinha e bife de olhão, o conhecido ovo, ou um pedaço de charque. Enquanto que na geladeira tinha de tudo: Iorgut, bolo, guaraná, uva, maçã, e outras coisas deliciosas, mas que ele não tinha direito de provar. Na mesa, as comidas eram colocadas em travessas: bifes, macarronada, feijoada, risoto, pizza, lasanha... E todos podiam se servir a vontade. Miudinho sofria calado, Nunca sentava com os da casa. O lugar que ele gostava de sentar e que podia ficar sem ser molestado era no fundo do quintal. Lá pelo final da tarde, olhando para o céu conversava com seu único Amigo. É que sua avó lhe falara de um Rei que se chamava Jesus. Esse Rei era amigo de todos. Até mesmo das pessoas más. Ele as amava, só não aprovava o que elas faziam. Sua avó dizia que esse Rei era Amigo dela e que queria ser amigo de Miudinho também. E também lhe disse que esse Rei estaria presente na sua vida em todos os momentos. E foi assim que Miudinho aprendeu a conversar com Jesus.

Certo dia, seu tio que demonstrava está esperando uma oportunidade para lhe bater, acordou esbravejando, parecia que tinha enlouquecido. Miudinho escapuliu por um fio. A fúria do seu tio o assustava, e quando seu tio batia, batia sem dó. Miudinho saiu correndo, passando o dia com fome. O único lugar que ele sabia que tinha algo para comer era num sítio que havia ali perto. Era tempo de manga. Miudinho sabia que era só escalar o muro e pegar algumas. Mas havia um problema: o vigia.

O vigia era um homem perigoso, que já tinha ameaçado por várias vezes as crianças da redondeza, e gritava para todo mundo ouvir:

_ No dia que eu pegar um moleque roubando fruta vai sair daqui mortinho da silva ou eu não me chamo Valdemar!

Os pais preveniam seus filhos. Ninguém tinha coragem para tomar satisfação com aquele homem que era o terror naquela localidade. Silêncio era a palavra chave para quem não quisesse amanhecer com a boca cheia de formiga.

Mas Miudinho estava com fome... Seu tio exigia que ele levasse algo... Ele viu uns meninos pulando o muro e achou que poderia pegar umas manguinhas e sair correndo. Pulou o muro. Olhou para um lado e para o outro, não viu nada. Os outros meninos já haviam enchido as sacolas e silenciosamente comiam algumas mangas. Não perceberam o olhar de malícia que os espreitava, esperando o momento para atacar.

Miudinho desceu, cuidadosamente foi à procura das mangas. Pegou algumas, colocou-as dentro da camisa e quando pôs uma manga na boca, ouviu um grito terrível, seguido de vários disparos de arma de fogo. Era menino correndo para todos os lados. Uns escalaram o muro e desapareceram como se fossem fumaça. Outros escalaram as árvores mais próximas e sumiram entre as folhagens. O vigia atirava e gritava:

_Ah, moleques, hoje eu tiro pele de gente!

_Hoje é o dia do caçador! Acrescentou, com semblante de causar medo.

Todos conseguiram escapar, menos o Miudinho. Os motivos: fraqueza da fome, dos maus tratos, do corpo franzino, andar trôpego... Tudo contribuiu para que ele não vencesse a pequena distância que o faria livre da fúria assassina daquele vigia.

Miudinho recebeu vários tiros. Caiu e tentou se levantar. Não conseguiu. Arrastou-se... Suas unhas ficaram cheias de terra, num esforço tremendo para escapar, quando viu seu inimigo se aproximando, gritando como um louco:

_Ladrão!Eu não avisei que um dia mataria o ladrão que entrasse nesse sítio? Miudinho pediu:

_Não me mate. Eu não sou ladrão... Eu estava com fome!

Os moleques, mudos, presenciavam a cena. O vigia ria e gritava:

_Eu avisei!Cumpri minha promessa!

Saiu satisfeito, cantarolando uma canção. Os moleques que tinham pulado o muro, contaram aos pais, que desesperados, procuraram a polícia. Os que estavam nas árvores temiam descer. Enquanto isso, Miudinho agonizava.

A polícia chegou e quando aproximou daquele corpo, ouviu uma voz sussurrante. Era Miudinho que fazia seu último pedido:

_Digam para meus tios que estou partindo para junto do meu Amigo. Ele me chama com um sorriso do tamanho do mundo. Tenho certeza de que lá serei amado.

A cena trouxe lágrimas aos olhos de quem estava acostumado a ver tanta violência.

Miudinho acrescentou:

_ Não chorem!...Pra onde vou... Serei feliz.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 15/12/2008
Código do texto: T1336893
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.