Trícia (parte 6)

Ela sorriu, estava ansiosa, não sabia se conter, mas o doutor fazia mistério!

-Não sei se te conto agora... Tem mesmo certeza de que quer saber?

-Tenho!Claro que sim! -Disse ela.

-Muito bem Trícia. Você tem um grau de esquecimento um pouco profundo que não está completamente relegado.

Trícia que era muito inteligente já entendera parcialmente a frase do doutor.

-Você está adiantada na escola não?E pelo que averigüei hum... Quase cinco anos mais adiantada... Como conseguiu chegar à série onde está, com a idade que tem, tem alguma idéia?

-Testes de QI, em colégios particulares como Forty, Longhe e Dondiny, me selecionavam todo o ano para uma bolsa gratuita, embora não precisasse, sempre estudei de graça em colégios particulares, por que sempre passava em testes de QI...

-Passava em qual colocação?

-Primeira. Sempre primeira.

-O que isso prova?!...Que você tem uma inteligência extraordinária!Ou ainda não percebeu... Vou direto ao assunto!Você tem um grau de esquecimento. Esse grau afetou sua visão... O que eu quero dizer é que sua inteligência extraordinária acaba sendo uma das razões pela sua cegueira.Você não é cega porque nasceu, você ficou cega...Me diga com quantos anos começou a falar?E qual foi sua primeira palavra?

-Com oito meses. As minhas primeiras palavras foram: Magnetismo, seguido por hematologia e hectograma...

-Sim, palavras nada adequadas para um bebê de meses não acha?

-É o que? Eu não acho nada... Para os meus pais foi como uma estranha frase, eles acharam que eu confundi alguma silaba...

-Sei, confundiu?

-Não... Eles acharam tudo muito estranho mesmo... Mas o que poderiam fazer se foi à primeira coisa que meu cérebro registrou pra eu falar...

-Realmente, mas como seu cérebro registrou três palavras um tanto complicadas eu diria, seus pais costumam, ou costumavam usar palavras desse grau?

-Não me lembro ultimamente quase não os escuto conversar, mas diria que sim... Doutor não consigo entender direito o modo que o senhor está se referindo ao meu grau de esquecimento.

-É o seguinte Trícia, quando você nasceu tinha tudo para ser uma criança normal, tinha a visão perfeita. Mas parte do seu cérebro, a parte que lhe dá totais respostas para toda a qual pergunta, a sua inteligência extraordinária, essa parte lhe retardou entende? Afetou o seu sistema visual e você ficou cega! Só há um modo de conseguirmos que este volte a ser útil, mas preciso de um pouco mais de estudo sobre esse assunto. A única coisa que posso lhe dizer agora é que não esforce tanto sua mente, e note se assim acontecem mais vezes suas visões, certo?

-Ta legal. Vou tentar não esforçar minha mente.

-Isso mesmo, gaste mais tempo fazendo o que você mais gosta! Dançar não é?

-É, como sabe?

-É um garotinho me contou!...

Na saída Trícia agradeceu senhor Gold, e foram pra casa, e claro; o garoto também, afinal, haveria ensaio, e não poderiam adiá-lo por nada nesse mundo! Quando chegaram, a primeira coisa que fizeram foi ir para a sala. Mas ao chegar lá encontram a sala ocupada, Trícia pede:

-Mamãe, eu preciso ensaiar, será que poderiam desocupar a sala?

-Nossa filha, mas o que é isso?! Que falta de educação com nossos convidados. Deveria ter me avisado antes... Essa é a sala de visitas, procure outro lugar para brincar...

-Eu já havia falado! Mas você não sabe escutar não é? Olha se não quer desocupar a sala, melhor eu dizer se não quer desinfetar a sala é melhor eu procurar outro local pra ensaiar... Assim pelo menos não fico tão fresca como você... –Esbravejou Trícia, indo em seguida para a sala de estar.

O garoto foi atrás, então viu Trícia chorar, pacientemente tocou-lhe os ombros e disse:

-Acalme-se, não precisava ter ficado nervosa dessa maneira...

-A questão é que ela nunca me escuta, entende? Nunca conversa direito comigo.

-Então, fale comigo. Estou aqui pra lhe ajudar, Trícia Zoely.

Trícia o abraça e logo indaga:

-Como sabe que me chamo Trícia Zoely? Nunca me apresentei...

-Tem coisas que sabemos sem saber que sabemos.

Naquela tarde não houve ensaio, ficaram conversando... E tudo ia bem quando ele tocou em um ponto frágil de Trícia. Seu melhor amigo de infância.

-Ah, amigos?Não tive tantos... Uma vez tive uma amiga que se chamava Jhulia, éramos grandes amigos, até que um dia recebi a notícia que ela havia se mudado, fiquei triste por umas duas semanas, depois, mal me lembrava dela... E quanto a você Trícia?Teve alguma amiga, ou amigo de infância?

Trícia ficou em silencio, temia tocar naquele assunto adormecido á anos...

-É... amigos... Eu? Não que eu me lembre...

Mas lembrando-se do que havia acontecido ela não pôde reter sua expressão pensativa. Então resolveu dar pequenas informações:

-Eu tinha sim um amigo, ele era da minha idade, ele se chamava... Jéferson! Jéferson Cast... fomos grandes amigos...

-E aí o que houve? Ele mudou?

-Ele? Não... Na verdade a gente não se viu mais... A gente brigou, e foi isso, depois não nos falamos mais... –Disse e deu um sorrisinho para encobrir o disfarce.

- Olha Trícia, se não quiser falar, não precisa!Mas não quero que invente histórias...

-Ah que é isso?!Quem disse que estou inventando?

-Bem se está ou não, não posso descobrir hoje, já está ficando tarde, tenho que ir pra casa!Quando será o próximo ensaio?

-Não sei... Você pode amanhã?

-Posso, mas vai ter de ser lá em casa, você poderá ir?

-Claro, mas que horas? As três?

-As três! Tchau Tri... –Disse ele lhe dando um abraço.

Assim que ele saí, ela suspira e dá um sorrisinho.

Durante a noite ela sonha com flores, com dança, com um grupo rival, com tombo de patins, com a mãe e com João Rodolfo dançando com ela... Acorda chorando, suada, confusa, com medo, e por cima de tudo com saudades do amigo...

No dia seguinte quando eram cinco para as três Trícia já estava na casa do tal garoto que já a esperava na porta.

-Entre, os patins nos esperam.

-Quer dizer que vamos mesmo dançar de patins?

-Quer competir com chances de ganhar?

-Sim. Vamos pôr os patins.

Ensaiaram e ensaiaram... Poxa cansaram, e daí? Descansaram e eles ensaiaram de novo! Afinal quem quer ganhar precisa sofrer um pouquinho nos ensaios não é? Quando estavam completamente exaustos sentaram-se e ficaram batendo papo, até quando ela mesma sem perceber puxou o assunto temido, por si mesma.

-Sabe ter amigos é muito bom. Eu nunca tive muitos amigos, a não ser quando estava com nove anos aí...

-Aí...

Ela se cala... Como faria para livrar a cara agora? Ela não mentia nada bem, e seria bem capaz dele desconfiar, era melhor contar a verdade, mas o assunto era complicado, por onde começar?

-É... Tudo bem, eu... Tive sim um amigo, éramos carne e unha... Ele se chamava...

Ela fez um grande esforço pra não começar a chorar, então o garoto disse:

-Olha se quiser falar não precisa, talvez seja melhor mudarmos de assunto...

-Não. Não é justo assim!!! Você conversa comigo direito, me conta às dificuldades que encontrou na vida; com orgulho, não mente... Quanto a mim, eu não consigo... Ajude-me vai... Preciso ser diferente, preciso confiar nas pessoas...

Ele pegou a mão de Trícia e disse:

-Pode falar, estou com você...

Ela suspirou, tremia não conseguia falar. Levantaram-se ambos ele começou a conduzi-la pela sala, eles estavam tipo dançando, só que sem música... Dançando em ritmo lento, dançando calmamente Trícia começou a falar:

-Tenho que tentar... Eu vou tentar...

-Vai conseguir, fica calma... Estou lhe escutando...

-Está bem... Quando eu tinha nove anos, tive um amigo! O MEU MELHOR AMIGO!Seu nome era... Era João Rodolfo... Ele era a pessoa mais doce que existia... Tratava-me com carinho, sempre conversava comigo, não me tratava feito uma doente! Mas teve um dia... Um maldito dia que... Aí não consigo!

Trícia sentou-se no chão, ficou quieta por alguns instantes e depois disse:

-Ele morreu!

O garoto demorou reagir, ficou olhando-a chorar, depois a ajudou levantar consolando-a, e indagando:

-Pronto! Está vendo... Já conseguiu...

-Não. Espere, preciso dizer como isso aconteceu... Não consigo fingir que não houve um maldito acidente! Preciso dizer tudo... Eu escutei o estrondo da batida do caminhão contra o táxi que ele estava! Eu gritei, mas ele não me escutou, eu podia ter evitado! Mas não consegui...

Nessa tarde Trícia desabafou o sentimento da perda de um amigo mais que querido! Chorou... Falou, indagou, pediu para voltar no tempo... Mas sabia que isso não seria possível!

-Era pra eu ter ido no lugar dele! Ele cuidou de mim até no ultimo momento... Não me deixando entrar naquele táxi!Era pra eu ter morrido junto com ele, mas não! Deixei... Deixei meu amigo sozinho...

-Calma Trícia! Precisa se acalmar... Você não teve culpa! Foi um acidente.

-Não foi só um acidente! Parece que foi programado... Programado pra acontecer...

-Como assim?O que está querendo dizer com isso?

-Como o que estou querendo dizer? Olha o Rodolfo foi chamado a sala junto comigo. Lá o diretor fala o que tem que falar... Magoa ele, depois zomba. Ele saí para rua eu saio atrás, não acha estranho que ninguém tenha ido atrás da gente pra impedir que fossemos embora?!Mesmo inteligentes não os éramos apenas crianças... O Rodolfo pede um táxi, o estranho! Por que criança daquela idade não entra em táxi sozinho, mesmo tendo dinheiro, é contra lei... Ele se despede, o táxi dele se abala contra um caminhão de fogos de artifício... Mas espere aí fogos de artifício? Pra aquela época do ano, estranho não? Estávamos em agosto... Muito longe do natal, e a páscoa já havia passado, o que um caminhão de fogos de artifício fazia na cidade?

-Fogos de artifício Tri... Caramba que história mal contada é essa...

-É verdade. Na verdade eu nunca entendi direito o acontecido! Depois do acidente, a mãe dele sumiu! Nunca mais voltei a falar com ela! Com certeza ela deveria ter ficado com raiva de mim...

-Raiva de você por que Trícia?

-Porque eu deixei o filho dela morrer, pra começo de conversa nem era pra ele ter querido mudar de escola! Foi minha culpa também... Se ele estiver me olhando lá do céu, deve me odiar, por ter acabado com a vida dele! –Disse Trícia soltando um grito de mágoa e desespero.

Ele abraçou-a mudo. Sem dizer palavra alguma, afagou-lhe os cabelos, e beijou seu rosto.

Depois de um tempo em silencio ele disse:

-Trícia, você gostava realmente desse seu amigo?

-Sim, abaixo de Deus ele era tudo na minha vida! Ele me ensinou a dançar... Lembro-me, ninguém queria dançar comigo; a ceguinha! E só ele aceitou! Diferente das outras pessoas, ele me tratava como um ser humano. Por isso eu gostava tanto dele.

-E com certeza ele de você Trícia! Agora entendo por isso você não queria dançar, por causa desse seu amigo, que morreu...

-Sim... Quer dizer 50% sim, mas os outros 50%... É a minha mãe... Ela me trata como uma doente dependente dela! Eu a detesto! Queria ter outra mãe!

-Não é assim Trícia! Sim, acho que sua mãe tem mesmo um pouco de frieza com você, mas talvez não fosse insegurança da parte dela?!

-Ah, por favor, não a defenda!

-Tudo bem. Vamos deixar esse assunto de lado, o importante é saber se você está pronta pra participar do concurso?! Só faltam sete dias...

Trícia suspirou fundo, e soltou:

-Sim, estou mais pronta do que nunca!

(continua)

Meli Francis
Enviado por Meli Francis em 10/11/2008
Reeditado em 18/12/2008
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