Trícia

Trícia

Trícia era uma menina dos cabelos castanhos e olhos verdes que viviam no escuro em tempo integral. Trícia era cega. Contava com seus nove anos de idade, e era bem miúda, porém muito sabida.

Na época em que ela começou a freqüentar a escola que realmente fora cedo demais (três anos),ela já sabia ler e somar como qualquer adulto e foi indicada para uma escola mais avançada,pois as crianças de sua sala,nem da sabiam pegar no lápis,enquanto ela falava em três línguas e fazia equações de primeiro grau.Então começou a freqüentar o colégio Saraferr,para alunos super dotados.Desde então só foi melhorando seus conhecimentos.

Com quatro anos ela já fazia a segunda série, foi quando a professora pediu que a classe que formassem casaizinhos para as novas aulinhas de dança. Chamou Trícia em um cantinho, e disse que se ela não quisesse não precisava participar. Todos escolheram seus parzinhos, mas houve um que sobrasse seu nome era João Rodolfo. A professora não sabia o que fazer, ficava andando de um lado para o outro até que Trícia disse que iria fazer aulinhas de dança. Mas tristemente ouviu a crítica de um colega:

-Mas professora,ela é cega, e se pisar no pé de alguém?

Era Rafael o garoto insensível!João Rodolfo dispensou o comentário e aceitou fazer par com Trícia que agradeceu muitas vezes.

Ensaiaram, e ensaiaram... Para Trícia a música era como poder abrir os olhos e enxergar o mundo. Sem pisar no pé de ninguém, nem esbarrar e nem receber insultos...

-Você não precisa enxergar para saber como estou satisfeito em dançar com você.-Dizia ele.-Tricílinha...

A apresentação foi um fenômeno que transformou a vida de Trícia em um mundo em que a palavra Dança era eternamente bendita!

Os anos passaram e agora com nove anos, Trícia cursava a sétima série, sendo informada sobre matéria de colegial, a mais inteligente de sua turma super dotada, e também a mais interessada nas aulas de filosofia e musica.

Os professores tinham muito carinho por ela, pelos demais também, mas em excesso por ela, pois era esforçada, e destemida para encarar novas situações.

Foi na aula de dança que teve impressão de enxergar um vulto em frente ao espelho, mas foi questão de segundos, e já não via mais nada como de costume. A professora já havia comentado na possibilidade de ela correr o risco de ficar sem parceiro de dança, pois a mãe de João Rodolfo já fizera o pedido de transferência. E já fazia um tempo que João não lhe dirigia palavra, por determinados comentários que as outras classes começaram a fazer sobre ele e Trícia. O garoto levou tudo isso muito a sério, e deu no que deu.

Mas Trícia não tinha medo de ficar sem parceiro, ou de ninguém aceitar fazer par com ela, dançaria até sozinha se deixassem. Então no dia em que a sala preparava-se para dar as despedidas para João Rodolfo, uma moça entrou na sala dizendo dois nomes num tom um pouco surpreendente:

-Trícia Zoely e João Rodolfo Rondegor!Venham comigo, por favor.

Pegaram os dois pelos braços, e puxaram por um imenso corredor que foi dar na diretoria.

-Bom dia Trícia e João Rodolfo. Estivemos averiguando o conhecimento de vocês, e resolvemos adiantá-los mais dois anos de série, o que acham?Desculpe. Isso seria possível apenas se tivessem pelo menos treze anos... Entendam só uma coisa, não podemos mais adiantar vocês de sala, isso já não é possível, mas acontece que estão sabendo além de uma mente de segundo grau, e ninguém consegue acompanhar esse ritmo, Se eu passar vocês, terão de agüentar uma zombaria eterna... Não sei se estão prontos para tanto... Vocês são quem decidem...

-Almejo ir para casa, preciso cogitar o que realmente quero. -Disse Rodolfo.

-Ah, estão vendo?Agora me responda de onde saem respostas como essas?Deve estudar tanto que nem tem tempo de brincar não é garoto?

-Não!Eu brinco suficiente para uma criança saudável...

-O que significa saudável?Tenho certeza de que sabe responder-me o que é.

-Oras, saudável é salutar,higiênico,rijo,robusto...

-Puxa como você é inteligente, continue...

-Já chega!Não quero mais ficar aqui sendo tratado como anormal!Eu sou uma criança completamente normal, como qualquer outra...

Rodolfo sai correndo para o pátio em direção à saída, Trícia sai atrás, e por conhecer bem a escola e ter uma audição boa, pôde escutar os passos, o choro, e segui-los. O que deu na rua, com João Rodolfo pedindo um táxi.

-João Rodolfo, o que vai fazer?

-Vou para casa, não suporto ficar mais nessa escola com esse diretor me tratando como aberração. Táxi!-Berrou para ele para o táxi que vinha em sua direção.

-Espere, vou com você!

-Por que quer ir?Ele não te fez passar nervoso algum, não viu a cara que ele me olhou...

-Não, mas posso imaginar...

-Ah, me desculpe, eu não quis te chamar de... Foi mal!Agora tenho que ir... Trícilinha se cuida...

-Hei, me deixe ir com você!Por favor...

Essas foram as ultimas palavras que Trícia dirigiu á João Rodolfo, sabe ela que ele sofreu um acidente terrível quando o táxi se abalou contra um caminhão e que a mãe dele se mudou para Minas Gerais depois, e nunca mais ouviu falar.

Três anos se passaram, Trícia está agora no segundo colegial, sua vida é pacata, porém ela dedica à maioria de seu tempo na sala de dança da escola, ou em seu quarto onde escuta musicas clássicas e inventa passos.

Certa vez no colégio, na hora do recreio ela escutou uma voz conhecida, tentou se aproximar, mas logo perdera a noção de onde viera.

Na manhã em que houve aula vaga pela doença do professor Fleuicy, Trícia sentou-se ao lado de Tatiane, foi quando ouviu novamente a voz, dessa vez resolveu perguntar:

-Tatiane, quem é o garoto da voz bonita?

-Ah?Que disse Trícia?Não escutei...

-Não precisa gritar!Não sou surda ta legal?!Esquece o que disse...

E mais uma vez deixou pra lá.

Mas foi na segunda feira quando todos abandonaram a sala de dança, que Trícia lembrou-se que havia esquecido sua jaqueta sobre uma das barras de aquecimento, e resolveu voltar para pega-la. No momento em que ela se aproximou da barra, pôde sentir que alguém a observava, então indagou:

-Quem está ai?

Mas não obteve resposta, então se apressou em pegar a jaqueta e saiu da sala.

Na manhã seguinte ela estava fazendo aquecimento como de costume, mas nas terças feiras a sala geralmente ficava vazia, pois a professora de ballet não dava aulas. Aproveitando o tempo livre, ela resolveu experimentar o CD que sua prima havia lhe emprestado.

Ao escutá-lo, percebe que não tem nada haver com ballet, o CD se trata de hip hop, mas curte o som e resolve fazer uns passos nele. Nessa hora uma garota do terceiro colegial, Carina digna de idade para o colegial (17 anos), entra na sala com alguns amigos. A primeira coisa que fez foi encarar Trícia de cima embaixo, e depois mencionar aos amigos:

-Olhem só, a ceguinha tentando dançar hip hop!Ah que é isso?

No mesmo instante Trícia parou de dançar e começou a ajeitar a sapatilha.

-Hei que é?Não vai continuar a dançar?Ainda bem que você reconhece como dança mal.

-Deixem à garota, gente!-Defendeu alguém.

- Que foi Ro?! Vai dizer que ta com dó da ceguinha.

-Zombar de mim por ser eu ser cega não vai ajudar você a dançar melhor...

-E como sabe se danço bem?Não pode nem me ver...

-Muito bem, dance qualquer coisa.

-Qualquer coisa?

-É!-Disse Trícia. -Quer musica?

-Quero!-Respondeu a garota de mau gosto.

Trícia ligou o som e Carina começou a dançar, ela apenas olhava para o chão, então quando a musica acabou ela disse:

-O que achou ceguinha?

-Você descompassou a cada troca de passo...

-Como sabe, nem me viu dançar?

-Eu escuto e sinto muito bem, seus pés escorregaram e sapatearam completamente fora do ritmo. E quer saber mais, você não sabe fazer nem um giro simples...Tenho que ir,já deu o sinal para o recreio...

-Garota eu juro que te quebro!-Disse Carina.

Trícia saiu sentindo-se vitoriosa.

Na cantina teve aquela sensação de que a reparava novamente, a funcionária havia deixado á cantina a pouco, para varrer o pátio, então não poderia ser ela. Quem quer que fosse não queria chamar atenção, apenas observá-la.

Naquele instante Trícia gostaria de poder ver para saber quem era a tal pessoa, talvez pudesse ser algum professor, mas estavam todos ocupados, e por que iria vigiá-la?Então Trícia dirigiu-se a pessoa:

-Quem está ai?

Não obteve resposta novamente. Então teve uma idéia; fingiu precisar de ajuda para pegar a maçã que havia caído. Nos primeiros dez segundos a pessoa permaneceu parada, mas notando a dificuldade dela, pegou a maçã e foi até ela. Sem dizer nada entregou a maçã e saiu. Mas daí a diante Trícia tinha certeza, era um garoto!

(continua)

Meli Francis
Enviado por Meli Francis em 04/11/2008
Reeditado em 18/12/2008
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