D & B - Parte I : o começo de uma longa história
Tinha acabado de se mudar para aquela rua e já estava se sentindo em casa.
Concerteza seria o melhor lugar em que moraria e ela soube disso logo que entrou no prédio,chamou o elevador e,quando as portas se abriram,deu de cara com Bernardo.
Num primeiro momento,eles apenas se encararam,aparentemente surpresos em se encontrarem num domingo de manhã.Normalmente só se viam no colégio e mesmo assim,cultivavam algo muito próximo a uma amizade.
- Dora?! – exclamou o rapaz,parecendo despertar.A garota reparou em suas roupas simples,na sua bermuda jeans e na camiseta preta,que combinava direitinho com seus chinelos e seus cabelos e que,além disso,contrastava com sua pele extremamente branca.O que mais chamava a atenção de Dora,no entanto,era o olhar penetrante que ele costumava lançar sobre ela,com aqueles olhos castanhos que expressavam tristeza e calma ao mesmo tempo.
Era o que ele fazia agora.
- Bernardo…você aqui?! – disse Dora,meio desajeitada.Depois do susto inicial,
ela voltara a sentir o peso da última caixa de papelão que estava carregando; ou melhor : tentando equilibrar em seu colo.
- Eu que te pergunto! – respondeu Bernardo,adiantando-se e segurando a caixa para ela. – Aqui,deixa que eu te ajudo.Você vai subir?
- O que é que você acha?Se eu chamei o elevador e estou no primeiro andar do prédio,conclui-se que…
- Tá,tá eu já entendi – interrompeu ele,rindo. – Entre logo,então,antes que a porta feche.
Dora o fez,reparando em cada centímetro do seu novo elevador.Enquanto isso,Bernardo repousava a caixa no chão a seus pés; depois,olhou para a garota,com o dedo indicador perto dos botões de chamada.
- Ah…sétimo andar – disse ela,rapidamente.
Durante a subida,eles tiveram uma conversa rápida.
- Mas você não ia sair? – perguntou Dora.
- Ia…mas não custa nada te ajudar; estamos de elevador mesmo – respondeu ele,dando de ombros.
- Ah,legal,então acho que vou pedir ao meu mais novo vizinho pra me ajudar a montar os armários da cozinha,sabe… - começou ela,em tom de brincadeira.
- O seu pai não vai fazer isso? – Ele não estava surpreso com a notícia de que ela se mudara para o mesmo lugar que ele morava; ou,se estava,tomou o cuidado de não demonstrar.
- Não.Ah,você sabe,somos somente eu e meu pai,então…a cozinha sobrou pra mim – terminou Dora,como se dissesse : fazer o quê?
- Posso te ajudar,se você esperar eu voltar da padaria – disse Bernardo, segurando a porta do elevador para Dora passar.Tinham chegado ao sétimo andar.
Pararam na porta do apartamento 702,que estava entreaberta.Dora escancarou-a para deixar Bernardo passar carregando a caixa.
O rapaz seguiu diretamente para a cozinha,sem hesitar.Dora quase perguntou a ele como sabia aonde ir.E seria realmente idiota de sua parte.
- Ainda bem que não disse isso – murmurrou ela,indo logo atrás dele,desviando-se de tábuas,sacolas plásticas e mais caixas de papelão.
- Prontinho,senhorita – disse Bernardo,descontraído,após ter deixado a caixa que carregava a um dos poucos cantos vazios do aposento.
- Obrigada.Escute,em que andar você mora?
- Sexto; seiscentos e dois.
- Ah,isso é realmente ótimo!
- Por quê?
- Porque vou fazer muito barulho e te incomodar o dia inteiro!
Bernardo soltou um risinho sarcástico e completou-o,dizendo :
- Nem tente; eu posso ser muito chato quando quero.
- Só quando quer?
- Ah,não me amola,são oito da manhã,Dora!
A garota riu.Adorava vê-lo daquele jeito; era o mais próximo de irritado que ela conseguia deixá-lo.Ás vezes,desejava ter o mesmo controle do amigo.Eles eram completamente opostos no que dizia respeito à isso.
Com a convivência mais de perto,logo Dora perceberia que tinham muito mais em comum do que imaginara até então.
Na segunda-feira de manhã,Dora estava dormindo em pé,de tão cansada por causa das várias tarefas do dia anterior.Havia feito muitas mudanças,desde pequena,mas essa era a primeira vez em que trabalhara realmente para ajudar na montagem de algo.Seu pai achava que quinze anos era uma idade razoavelmente boa para isso; pelo menos,como dissera no sábado,quando estavam terminando de empacotar as últimas coisas :
- Ah,vamos,Dora,você não vai botar fogo na casa!
Fogo não.Agora,água…
Bernardo tinha voltado da padaria dez minutos depois de deixar a caixa na cozinha para Dora.Para surpresa da garota,ele realmente queria ajudá-la.
- Olha,eu falei aquilo brincando,o.k? – disse ela,um pouco nervosa quando o viu mechendo em uma caixa de ferramentas.Não queria que o pobre coitado do garoto se sentisse obrigado a fazer aquilo.
- Ah,não,tudo bem… - disse ele,retirando uns pregos da caixa.
Em menos de meia hora,todo o armário (que se estendia de uma ponta à outra da cozinha) estava montado.
- Nossa,acho que eu não conseguiria fazer isso sozinha – disse Dora, encostando-se na pia e secando a testa suada com as costas da mão direita.
- É,eu sabia disso quando quis ajudar – respondeu Bernardo,sorrindo,apesar de parecer um pouco cansado.Ele estava sentado no chão,as mãos apoiadas no piso branco,a respiração levemente alterada.Reparando melhor,Dora percebeu que ele estava com as bochechas vermelhas; era assim que ele ficava toda vez que terminava uma aula de Educação Física,ou se expunha demais ao sol quente do meio-dia,horário de saída no colégio.
- Você quer beber água? – perguntou Dora,virando-se para abrir a torneira da pia.Suas mãos estavam muito sujas e ela não aceitava a idéia de ficar com elas daquele jeito.
- Quero,mas não da pia.
- Não seja bobo; só vou lavar a… - disse Dora,parando de falar ao perceber que não devia ter aberto a torneira com tanta rapidez.
Ela teve a impressão de que…
- Bernardo! – chamou,um pouco hesitante.
- O que foi,Dorinha? – respondeu ele,levantando-se do chão.
- Você sabe onde fica o registro? – perguntou ela,apavorada.Água começara a vazar pela parede onde estava instalada a torneira,quer dizer,o projeto de torneira.
- Não,mas vou achar agora!
Bernardo abriu rapidamente a porta da lavanderia,que ficava ao fundo da cozinha.Ficou lá por poucos segundos,enquanto Dora tentava conter o grande fluxo de água que saía da parede e que ensopava tudo a sua volta.
De repente,a água parou de vazar e Bernardo saiu de dentro da lavanderia,com uma expressão assustada no rosto.
- Meu pai vai me matar! – exclamou Dora,torcendo os longos cabelos castanhos,fazendo água pingar no chão já molhado.
- Mas você não teve culpa de nada! – disse Bernardo,se aproximando da garota.
- Espere só até ele ver isso…
- O que está acontecendo aqui?
Um homem alto,moreno e aparentando ter uns cinquenta anos surgiu à porta da cozinha; ele estava suado e carregava um martelo na mão direita.Era José Carlos,o pai de Dora.
- Pai,a torneira…
- Dora! Eu pensei que você tinha um pouco mais de juízo,sabia? – José Carlos estava muito nervoso,seu rosto ficara vermelho em segundos.
- Pai…
- Olha,a Dora não teve culpa,senhor – interferiu Bernardo,visivelmente indignado.
- Quem é esse rapaz? – perguntou José Carlos,olhando para Dora e apontando para Bernardo com o martelo,como se fosse seu dedo indicador.
- É o Bernardo,pai,ele mora aqui embaixo e estuda comigo,também.Ele estava me ajudando a montar a cozinha e quando eu abri a torneira,ela…
- Ah…muito prazer,Bernardo – disse José Carlos,parecendo se acalmar.Ele trocou o martelo de mão e estendeu-a para o rapaz.
- Muito prazer – disse Bernardo,sorrindo e retribuindo o cumprimento.
- Me desculpem esse meu ataque,mas é que estou com alguns problemas para montar a minha cama e está tão calor.Você entende,não é? – disse ele,olhando para Bernardo.
- Sim,é claro.
- Bernardo – chamou Dora.Ela estava meio incomodada. – Eu acho melhor você ir embora agora,já me ajudou demais.
Dora levou-o até a porta,enquanto seu pai telefonava para um encanador, encostado no parapeito da janela da sala,de onde seu celular recebia mais sinal.
- Bem,obrigada – disse Dora,quase fechando a porta na cara do garoto.
- De nada – respondeu ele,estranhando um pouco esse comportamento repentino de Dora. – Escute,se precisar de alguma coisa,não se esqueça : seiscentos e dois,o.k?
Se aquilo foi dito só por educação por Bernardo,ele estaria encrencado.Dora precisaria muito de sua ajuda dali pra frente.