Aquela gota diferencial

Era uma tarde ofuscante e escaldante. O sol se despedia deixando atrás de si o rastro de sua grandeza; o calor roubava a pouca umidade que a vegetação, em vão, tentava ocultar por entre suas raízes. As folhas pendiam murchas e tristonhas; o riacho, anteriormente um poderoso rio, já não trovejava mais ao chocar-se com as pedras. O planeta gemia sob os efeitos da seca e assistia, desolado, às suas conseqüências. Em vários pontos do globo terrestre havia focos de incêndio e as labaredas vorazes lambiam o habitat natural de muitos seres viventes. A situação, cada vez mais crítica, trazia insegurança e corria a notícia de que já fora declarado estado de calamidade geral.

Assustados com a tragédia climática, os animais foram convocados para uma reunião extraordinária. O que fez daquela reunião algo realmente excepcional foi o fato de que nela houve a participação de representantes de todos os continentes do mundo. A última vez que houve tão importante convocação foi antes do famoso dilúvio universal, que engoliu a Terra durante mais de um mês. Animais de todas as nacionalidades partiram, então, para o Serengeti, núcleo da flora e da fauna, situado na África Ocidental. Todos os bichos, de uma ou outra forma, estavam atentos ao acontecimento da semana, a Eco-Universal.

Antes do início da reunião, houve uma assembléia, para a escolha da diretoria que representaria os animais diante do grande monarca da selva. A votação teve o seguinte resultado: Presidente da mesa – a onça Magalhães, representante da Ordem Carnívora da América do Sul; Vice-Presidente – a girafa Zimba, representante da Ordem Artiodactyla da África; Secretária – a coruja Athas, senhora de grande sabedoria, representante da Ordem Srigiformes da floresta européia. Junto à mesa administrativa, alguns delegados, animais que se destacavam no mundo político: da Austrália, representando a Ordem Marsupialia da Oceania, Jack Canguru; da Ásia, o camelo Mahad, outro representante da ordem Artiodactyla; da subordem Serpentes, a sucuri Sasha; da Ordem Falconiformes, Átila, a águia; da Classe Insecta, Abely, a abelha rainha; da Ordem Primates, Buba, o macaco.

Votação feita, partiram para a reivindicação principal. O problema residia no fato de que o supremo e despótico monarca, senhor do reino animal, Leonardo XXXVII, o leão, desde que ganhou o apoio de partidos de esquerda (nestes pode-se incluir o PIH – Partido Industrial das Hienas, anteriormente suas arquiinimigas), começou a destruir a natureza, como se não dependesse dela para seu sustento.Leões e hienas se uniram para um único benefício: o deles mesmos. O desperdício, a sujeira e principalmente o fedor da putrefação deixado pela indústria das hienas era um dos principais ofensores a camada de ozônio. Se a camada de ozônio tem como objetivo proteger a terra da força dos raios solares, dá para se imaginar porque o planeta estava sendo assolado com tanta seca e incêndios.

O absolutista, Leonardo XXXVII, mesmo recusando-se a participar da Eco-Universal, deu o seu parecer sobre a reunião: sugeriu que a melhor maneira de acabar com os focos de incêndio seria derrubar as árvores. Leonardo XXXVII considerava aquela manifestação toda nada mais, nada menos do que um atraso de loucos, pois a sua preocupação maior estava em manter o reino animal em constante progresso.

Revoltados com a declaração do rei da selva , a Eco-Universal iniciou-se em clima de protesto. Faixas e cartazes expressavam a indignação dos bichos.

Buba, o macaco, representante de toda a classe popular trabalhadora do reino animal, começou guinchando fervorosamente: “Não, não é certo que se derrubem os lares de nossos trabalhadores! As árvores abrigam milhares de espécies, elas são um meio de subsistência! O nosso governante sugere a derrubada de árvores. E os ninhos das aves? E o nosso pão de-cada-dia ? Eu afirmo que todos nós entraremos em extinção se as árvores forem cortadas.”

Athas, a coruja, tomou a palavra: “O nosso soberano nos chamou de loucos, mas eu me orgulho de tal título num lugar onde os normais constroem sua própria destruição. Será que é loucura querer salvar a nossa flora? O que ele disse é uma incoerência! Como podemos cortar para preservar? Nós devemos cuidar de nossa mãe, que sempre nos alimentou com seus frutos, abrigou nossos ninhos e filhotes, protegeu-nos da violência da chuva, do sol e do vento. Mas hoje, ela se volta contra nós, queimando-nos, ferindo-nos, numa explosão de mágoa e de rancor.”

O silêncio reinou durante alguns instantes. Os animais digeriam a seriedade da questão. Buba, o mais exaltado, recomeçou: “Nós precisamos de alimentos, do oxigênio, da água! Se esses três elementos básicos estiverem poluídos, o que será de nós? Mas as hienas destroem, destroem, sem pensar que estão acabando com elas mesmas! É como se estivessem dentro de uma bola que rola velozmente em direção a uma parede e na sua cegueira, absurdamente disputam um espaço melhor e mais confortável dentro da bola que está prestes a explodir!”.

Jack, o canguru, mais objetivo, procurou direcionar a discussão: “Eu proponho, em primeiro plano, discutirmos, nessa reunião, os elementos necessários para manter a nossa sobrevivência. E, em segundo plano, devemos redigir o parecer da Eco-Universal e levá-lo ao nosso soberano.”

Sasha, a sucuri, deslizou até o centro da mesa e ergueu-se, como se fosse atacar, procurando assim, impor respeito pelo seu tamanho: “Se ficarmos nessa ladainha não vamos chegar a lugar algum. Os discursos são lindos, mas a resposta resume-se em um bote bem traiçoeiro. Vocês acham que os leões e as hienas vão nos receber de braços abertos? Eles são carnívoros e o estômago sempre falará mais alto! Vamos jogar o jogo deles!”

A onça Magalhães, prontamente, “podou” a atitude agressiva de Sasha: “A questão, aqui, não é se somos carnívoros ou herbívoros. Eu sou carnívora e não se esqueça de que você também o é. Este é apenas um pequeno detalhe da cadeia alimentar. O problema agora é outro, e é nele que devemos nos concentrar”.

Jack, o canguru, acudiu pacificador: “Devemos salientar o problema da destruição do nosso meio ambiente. E eu afirmo: as hienas não são as únicas causadoras desse desequilíbrio! Todos nós temos uma fatia de culpa, mesmo que esta seja a mera passividade perante toda essa destruição. Nós devemos rever alguns de nossos conceitos, desenvolvimento não quer dizer destruição! Se não preservarmos, seremos vítimas de nossa própria burrice!”

Mahad, o camelo, interrompeu Jack e, com sua voz arrastada, continuou a idéia do colega: “Sabemos que a culpa não é só do Rei Leonardo XXXVII. A grande dificuldade é que ele é o único que não está disposto a rever e a remediar esta situação, ao contrário, apóia cada vez mais aquelas hienas, que são as grandes poluidoras do nosso meio ambiente!”.

Um burburinho tomou conta do salão. Cada um queria dar seu palpite, mas a conclusão era unissonante: todos aprovavam as palavras do erudito do deserto.

O zumbido estridente de Abely pôs um ponto final na dispersão. Jack, o canguru, reacendeu a discussão: “Em prol do desenvolvimento, nosso rios estão sendo agredidos, nosso ar poluído, nosso solo virou um depósito de lixo. Com toda essa confusão, a Terra está reagindo através de um super-aquecimento, as condições climáticas estão sendo alteradas e nós somos os próprios prejudicados nessa história toda. A preservação é o nosso único futuro. Logo faltará alimento e o que daremos para nosso filhotes? Eles não têm culpa de nossa inconseqüência! Por isso afirmo que a declaração dada pelo nosso rei é um desrespeito a todos nós!”.

De repente, como se incitada por algo invisível, a bicharada começou a gritar: “Impeachment! Impeachment!”

A onça Magalhães, atordoada com o alvoroço, calou os animais através de um urro autoritário: “Não sei se o rei Leonardo XXXVII já parou para medir as conseqüência do que disse. As nossas florestas desempenham um papel essencial na conservação da natureza. Elas influem diretamente no clima. Só através delas teremos um temperatura estável , um índice adequado de chuvas e o controle da erosão. Além disso, as florestas renovam o ar atmosférico! Será que o nosso rei pensava nisso quando disse aquele disparate? Ou será que ele só pensa no lucro financeiro proveniente do que se diz ser “desenvolvimento” mas que na verdade só serve para sua vanglória e para o sustento de seu reinado?”.

Os participantes olharam uns para os outros: a onça Magalhães havia, talvez, tocado o cerne da questão.

O debate ainda se estendeu por várias horas. Cada representante expunha seu ponto de vista, seu posicionamento a favor da defesa do meio ambiente. As idéias começaram a brotar.

O camelo Mahad sugeriu a criação de parques florestais, onde o desmatamento seria proibido; Abely propôs o tratamento dos rios; Zimba, a girafa, apresentou a idéia de instalação de filtros especiais nas indústrias (principalmente nas das hienas). Sasha, a sucuri, mesmo a contragosto, não deixou de dar seu palpite: o lixo poderia muito bem ser reciclado ou transformado em adubo. Buba, o macaco, enfatizou a conscientização: pequenos invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos, enfim, todos os filhotes, deveriam ser ensinados, desde cedo, a amar e a preservar a mãe natureza.

Foi quando Athas, a coruja, jogou “um balde de água fria” no entusiasmo de todos: é que para tudo isso virar lei ambiental, era necessário o apoio do rei Leonardo XXXVII. Os bichos podiam até se dispor a fazer algo, mas isso pouco valeria se o rei se recusasse a penalizar os infratores.

Três representantes foram, então, escolhidos para conversar com o rei: a onça Magalhães, Mahad, o camelo, e Buba, o macaco. Elfa e Jumbo, dois paquidermes da família Elephantidae, iriam como guarda-costas. Sasha, a sucuri, só por precaução, preparou um exército alternativo, que entraria em ação caso Átila, a águia, desse o alerta de perigo. Abely, agitada, “zunzunzava” no meio de todos, e quase foi aspirada num acesso de irritação de Jumbo, o elefante.

O palácio real era suntuoso. A mordomia do rei e de seus súditos seria admirável se não fosse, ao mesmo tempo, tão revoltante. Havia animais que passavam fome e sede, não era justo que alguns poucos ficassem até doentes devido a tanta fartura.

Já no portão, as primeiras burocracias. A longa espera aplacou, de certa forma, os ânimos. Os representantes, entediados, esperavam a liberação do rei de mais uma daquelas longas reuniões onde muito se discute, mas pouco se resolve. Afinal, eles não haviam marcado horário, e tempo vale ouro, quando se trata de receber visitas indesejadas.

Horas depois, quando os bichos já começavam a se impacientar, uma esperança: leões, hienas, chacais e lobos, ladeados por quatro enormes gorilas, apareceram na porta do palácio. A onça Magalhães adiantou-se, mas foi barrada. Os leões, ao verem Buba, arreganharam os dentes num sorriso de cobiça. As intenções gastronômicas eram óbvias.

O Primeiro Ministro, o babuíno Zarck, aproximou-se dos representantes e, em sua formalidade pedante, transmitiu a mensagem do soberano: “Prezados súditos, Vossa Magestade, o rei Leonardo XXXVII, não poderá vos receber”.Um suspiro, misto de revolta e frustração, interrompeu o primeiro ministro; risadas debochadas, nem sequer disfarçadas, partiram das hienas. Imperturbável, Zarck continuou: “Portanto, no papel de primeiro ministro, estou aqui para vos ouvir.”

O descaso chocou os bichos. A indiferença era pior do que um “não” claro e redondo. Se ele, o todo-poderoso, cujo sim era lei e o não um cheque-mate, não estava interessado em preservação, então, todos os esforços seriam uma gota d’água num oceano.

A onça Magalhães ficou desconcertada. Ela já havia, mentalmente, repetido o seu discurso uma centena de vezes. Naquele instante crítico, a onça percebeu que tudo poderia ser resumido em poucas palavras: “Diga ao rei, por favor, que não adianta ganhar o mundo inteiro e perder a alma. A natureza é a alma. Nós não buscamos a violência, só queremos viver”.

E, dito isto, virou-se e foi embora. Os outros representantes, estupefatos, seguiram-na. “Por que você não lhe entregou nossas reivindicações?” A onça deu de ombros: “Eles iam rasgá-las mesmo! O que eles queriam era uma reação de violência e rebelião. Lembrem-se de que éramos a minoria. O que eu disse, talvez, fale mais alto do que a guerra que, obviamente, não resolve nada. Vamos dar o exemplo. Gotas d’água podem não ter a palavra final, mas são elas que formam o oceano!”

Buba, inconformado, ainda resistiu: “E eles? Vão continuar destruindo a natureza?” A onça Magalhães abaixou a cabeça tristemente: “Infelizmente, a vida é assim. A maioria sempre sofre com as decisões da minoria poderosa. Somente quando a última árvore morrer e o último rio for envenenado e o último peixe for pego é que os donos do poder perceberão que não se pode comer dinheiro.”

O sol, novamente, se despediu da terra sedenta. Cada animal seguiu o seu caminho. No coração, a angústia. Na natureza, uma súplica de esperança.