"Peter Pan", escrito por James M. Barrie, é uma obra clássica que encanta leitores de todas as idades ao redor do mundo. No universo do "Sítio do Pica-Pau Amarelo", a narrativa ganha uma nova perspectiva pelas palavras cativantes de Dona Benta, a matriarca da família que adora compartilhar histórias com seus netos.
Dona Benta narra as aventuras mágicas de Peter Pan, o garoto que se recusa a crescer, e seus fiéis amigos, como a fada Sininho e os irmãos Darling. A história se desenrola na Terra do Nunca, um lugar onde a imaginação reina, e os personagens enfrentam o temível Capitão Gancho e seus piratas. A narrativa aborda temas atemporais, como a importância da imaginação, a inocência da infância e a resistência em aceitar a passagem do tempo.
Através da voz envolvente de Dona Benta, a história de Peter Pan ganha vida de maneira especial, transportando os leitores do Sítio do Pica-Pau Amarelo para um mundo mágico e intemporal, onde a aventura e a fantasia se entrelaçam em uma narrativa que transcende gerações.
PETER PAN
Quem já leu as Reinações de Narizinho deve estar lembrado daquela noite de circo, no Pica-pau Amarelo, em que o palhaço havia desaparecido misteriosamente. Com certeza fora raptado. Mas raptado por quem? Todos ficaram na dúvida, sem saber o que pensar do estranho acontecimento. Todos, menos o gato Félix. Esse figurão afirmava que o autor do rapto só poderia ter sido uma criatura — Peter Pan.
— Foi ele! — dizia o gato Félix. — Juro como foi Peter Pan.
Mas quem era Peter Pan? Ninguém sabia, nem a própria Dona Benta, a velha mais sabida de quantas há. Quando Emília a ouviu declarar que não sabia, botou as mãos na cinturinha e:
— Pois se não sabe trate de saber. Não podemos ficar assim na ignorância. Onde já se viu uma velha de óculos de ouro ignorar o que um gato sabe?
Dona Benta calou-se, achando que era mesmo uma vergonha que o gato Félix soubesse quem era Peter Pan e ela não — e escreveu a uma livraria de S. Paulo pedindo que lhe mandasse a história do tal Peter Pan. Dias depois recebeu um lindo livro em inglês, cheio de gravuras coloridas, do grande escritor inglês J. M. Barrie. O título dessa obra era Peter Pan and Wendy.
Dona Benta leu o livro inteirinho e depois disse:
— Pronto! Já sei quem é o Senhor Peter Pan, e sei melhor do que o gato Félix, pois duvido que ele haja lido este livro.
— Está claro que não leu — observou Emília. — Ele só lê ratos — com os dentes...
— Se leu, conte, vovó! — gritou Narizinho. — Andamos ansiosos por ouvir a história desse famoso menino.
— Muito bem — disse Dona Benta. — Como hoje já é muito tarde, começarei a história amanhã às sete horas. Fiquem todos avisados.
No dia seguinte, de tardinha, a curiosidade dos meninos começou a crescer. Às seis e meia já estavam todos na sala, em redor da mesa, à espera da contadeira. Emília olhava para o relógio pensativamente. Quem entrasse em sua cabeça havia de encontrar lá esta asneirinha: "Que pena os relógios não andarem de galope, como os cavalos! Nada me enjoa tanto como esta maçada de esperar que chegue a hora das coisas — a hora de brincar, a hora de dormir, a hora de ouvir histórias..."
Pedrinho matava o tempo arrepiando xises no veludo de uma velha almofada — com o dedo. E Narizinho, no seu vestido novo de rosinhas cor- de-rosa, fazia exercício de "parar de pensar" — uma coisa que parece fácil mas não é. A gente, por mais que faça, pensa sem querer.
Faltava o Visconde. O velho sábio, depois que se meteu a estudar matemática, fazia tudo com "precisão matemática", que é como se diz das pessoas que não fazem as coisas mais ou menos, e sim certinho. Quando bateu sete horas ele entrou, em sete passadas, cada uma correspondendo a uma pancada do relógio. Logo depois surgiu Dona Benta.
— Viva vovó! — gritaram os meninos.
— Viva a história que ela vai contar! — berrou Emília.
Dona Benta sentou-se na sua cadeira de pernas serradas, subiu para a testa os óculos de aro de ouro e começou:
— Era uma vez uma família inglesa...
— Espere, Sinhá! Não Comece ainda — gritou lá da copa tia Nastácia.
— Eu também faço questão de conhecer a história desse pestinha. Estou acabando de lavar as panelas e já vou.
Dona Benta esperou que a negra chegasse, apesar do protesto da Emília, que disse:
— "Bo-ba-gem! Para que uma cozinheira precisa saber a história de Peter Pan?"
Tia Nastácia veio e escarrapachou-se no assoalho, entre o Visconde e a menina. Só então Dona Benta começou de verdade.
— Havia na Inglaterra uma família inglesa composta de pai, mãe e três filhos — uma menina de nome Wendy (pronuncia-se Uêndi), que era a mais velha; um menino de nome João Napoleão, que era o do meio; e outro de nome Miguel, que era o caçulinha. Os três tinham o sobrenome de Darling, porque o pai se chamava não sei quê Darling. Esses meninos ocupavam a mesma nursery numa linda casa de Londres.
— Nursery? — repetiu Pedrinho. — Que vem a ser isso?
— Nursery (pronuncia-se nârseri) quer dizer em inglês, quarto de crianças. Aqui no Brasil, quarto de criança é um quarto como outro qualquer e por isso não tem o nome especial. Mas na Inglaterra é diferente. São uma beleza os quartos das crianças lá, com pinturas engraçadas rodeando as paredes, todos cheios de móveis especiais, e de quanto brinquedo existe.
— Boi de chuchu, tem? — indagou Emília.
— Talvez não tenha, porque boi de chuchu é brinquedo de meninos da roça, e Londres é uma grande cidade, a maior do mundo. As crianças inglesas são muito mimadas e têm os brinquedos que querem. Os brinquedos ingleses são dos melhores.
— E os brinquedos alemães, vovó? Ouvi dizer que há na Alemanha uma cidade que é o centro da fabricação de brinquedos.
— E é verdade, meu filho. Nuremberg: eis o nome da capital dos brinquedos. Fabricam-nos lá de todos os feitios e de todos os preços, e exportam-nos para todos os países do mundo.
— E aqui, vovó?
— Aqui essa indústria está começando: Já temos algumas fábricas de bonecas e outras de carrinhos, cavalinhos de pau, trenzinhos de folha, patinhos de celulóide, gaitas de assoprar, etc. etc.
Pedrinho declarou que quando crescesse ia montar uma grande fábrica de brinquedos da maior variedade possível, e que lançaria no mercado bonecos representando o Visconde de Sabugosa, a Emília, o Rabicó etc. Todos gostaram muito da idéia e Dona Benta voltou ao assunto.
— Pois é isso. Aquela nursery era um encanto. Imaginem que quem tomava conta das crianças era a Nana.
— Alguma criada?
— Não. Uma cachorra muito inteligente. Era Nana quem dava banho nas crianças, quem as vestia para dormir e tudo mais — e muito direitinho.
Na noite em que a nossa história começa, Nana estava cochilando perto da lareira, com a cabeça entre as patas, enquanto no cômodo pegado o Senhor e a Senhora Darling se preparavam para uma visita a uns parentes. Quando o casal saía de noite quem ficava tornando conta dos meninos era sempre a cachorra. Nisto o relógio bateu oito horas — bem, bem, bem, bem, bem, bem...
— A senhora errou, Dona Benta! — berrou logo Emília, que não deixava escapar coisa nenhuma. — A senhora só bateu seis bens.
Dona Benta riu-se.
— Não faz mal — disse ela. Os dois que faltam ficam subentendidos. Mas o relógio bateu oito horas e Nana ergueu-se e espreguiçou-se, porque a ordem da Senhora Darling era fazer a criançada ir para a cama a essa hora justa. Depois Nana acendeu a luz elétrica.
— Como?
— Ela sabia agarrar com a boca a chave da luz e torcer. Estava acostumada a fazer isso. Acendeu a luz e foi ver os pijamas de cada um. E foi ao banheiro abrir a torneira de água quente e fria, experimentando a água com a pata para ver se-estava no ponto.
— Que danada! Por que a senhora não nos arranja uma cachorra assim, vovó?
— Porque vocês só querem saber de onças e rinocerontes e bichos esquisitos. Mas deixem estar que ainda ponho um Cachorrinho aqui em casa.
— E há de chamar-se Japi! — gritou Emília, que sempre fora a botadeira de nomes. — Mas continue Dona Benta. A Nana encheu a banheira e que mais?
Preparou a água do banho e foi buscar o Miguel, que era o menorzinho, e Miguel veio montado nela, dando esporadas. Nana fê-lo apear-se e entrar n’água, e foi fechar a porta para que não houvesse corrente de ar. Depois de acabado o banho, deu o pijaminha para Miguel vestir e levou-o para a cama.
Nesse momento a mãe dos meninos entrou no quarto para ver se estava tudo em ordem. Animou a todos, um por um, prometeu um passeio ao jardim zoológico, para que vissem a enorme goela vermelha do hipopótamo e o pescoço que não acaba mais da girafa. Depois contou uma história linda.
— Que história ela contava? — quis saber Emília.
— Quantas existem. As mesmas que já contei a vocês e muitas outras. Depois distribuiu beijos, dizendo: — "Agora tratem de dormir." Acendeu urna lamparina de luz muito fraca, apagou a luz elétrica e ia saindo na ponta dos pés, quando notou uma sombra esquisita na parede — uma sombra que vinha da rua. Voltou-se de repente e viu do lado de fora o vulto dum menino.
Assustou-se, está claro, porque as boas mães se assustam por qualquer coisinha e correu a fechar a vidraça. Fez isso tão depressa que a sombra não teve tempo de retirar-se e foi guilhotinada. Por essa e outras é que as tais vidraças de subir e descer, como as nossas aqui do sítio, são chamadas "vidraças de guilhotina".
— E que é guilhotina? — perguntou Emília, que pela primeira vez ouvia essa palavra.
Dona Benta explicou que era uma certa máquina de cortar cabeça de gente, inventada por um médico francês de nome Guillotin. Isso durante o terrível período da Revolução Francesa, um tempo em que cortar cabeça de gente se tornou a preocupação mais séria do governo. E Pedrinho, já lido na História do Mundo, lembrou que o próprio Doutor Guillotin teve a sua cabeça cortada por essa máquina.
— Bem feito! — exclamou Emília. — Quem manda...
— Bom, chega de guilhotina — gritou Narizinho. — Continue, vovó. A Senhora Darling guilhotinou a cabeça da sombra e que fez depois?
— Ao ver cair no chão a cabeça da sombra, como se fosse um pedaço de gaze negra, ela murmurou: — "Que fato estranho!" — Depois abaixou- se, pegou a cabeça da sombra e examinou-a à luz da lamparina, com cara de quem diz: — "Nunca ouvi contar dum fato semelhante! São dessas coisas que até parecem invenção". Em seguida dobrou a sombra, bem dobradinha, guardou-a na gaveta de Wendy e retirou-se do quarto, pensativa.
— E os meninos? — indagou Narizinho. — Nada viram?
— Os meninos nada perceberam. Quando a Senhora Darling deu com a sombra na parede, eles já estavam caindo no sono.
O quarto ficou mergulhado em silêncio profundo. Todos dormiam, e até a chama da lamparina parecia cochilar, de tão quietinha. Mas de repente essa luz tremeu três vezes e apagou-se.
— Por quê? — indagou Narizinho.
— Algum besouro — sugeriu Emília.
— Não — disse Dona Benta. — É que havia entrado pela janela uma pequena bola de fogo.
— Como havia entrado pela janela, se a janela estava fechada? — berrou Emília.
Isso não sei — disse Dona Benta. — O livro nada conta. Mas como fosse uma bola de fogo mágica, o caso se torna possível. Para as bolas de fogo mágicas tanto faz uma janela estar aberta como fechada. Ela acha sempre jeito de entrar. Do contrário não valia a pena ser bola mágica. Entrou e começou a esvoaçar em todas as direções, muito aflitazinha, como quem anda atrás dalguma coisa.
— Já sei — interrompeu Narizinho. — Estava procurando a cabeça da sombra.
— Talvez fosse isso, — concordou Dona Benta — porque depois de várias voltas pelo ar a bola parou defronte do armário de Wendy e entrou na gaveta pelo buraco da fechadura.
— E houve um incêndio, já sei! — gritou Emília. — Bola de fogo em gaveta de armário é incêndio certo. A cidade de Londres vai ser destruída...
— Credo! — exclamou tia Nastácia, que estivera cochilando e acordara naquele ponto. — Não fale assim, Emília, que é mau agouro.
— Não houve incêndio nenhum — disse Dona Benta. — Bola de fogo mágica não pega fogo nas coisas.
— Então que aconteceu?
— Nada. A bola ficou na gaveta, e nesse mesmo instante a janela foi erguida pelo lado de fora. A cabeça dum menino apareceu. Apareceu, espiou de todos os lados e pulou para dentro do quarto sem fazer o menor barulho.
— "Sininho, Sininho! Onde está você, Sininho?" — indagou ele em voz baixa.
— "Tlin, tlin, tlin", — foi a resposta da bola de fogo lá dentro da gaveta.
O menino dirigiu-se pé ante pé na direção dos tlins, abriu a gaveta e remexeu-a toda, até encontrar a cabeça da sombra. Pela cara alegre que fez via-se que era o dono dela.
— Que engraçado! — exclamou Emília. — Só agora noto que todos nós temos a nossa sombra, que é só nossa, mas não de gaze, como a desse menino. É de ar preto.
— E que fez ele, vovó, depois de achar a sombra? — perguntou a menina.
— Que fez? Tirou-a da gaveta, desdobrou-a e tratou de emendá-la no resto, porque desde que a Senhora Darling desceu a janela ele ficou com a sombra sem cabeça — ou decapitada. Mas isso de emendar sombra não é coisa fácil. Exige prática. O menino tentou primeiro grudá-la com cuspe. Não grudou. Lembrou-se de a colar com sabão. Também não colou. O menino sentiu-se atrapalhado.
— Se fosse eu — disse Emília — experimentava uma bisnaga de Cola- tudo. O que cola tudo, deve colar sombra também.
— E onde achar a tal bisnaga de Cola-tudo?
— Todas as nurserys devem ter uma bisnaga de Cola-tudo para colar os brinquedos. Eu, se fosse a Senhora Darling...
— Está bem, Emília, mas pare de falar. Não atrapalhe mais. Continue vovó.
Dona Benta continuou:
— A. cabeça não colava de jeito nenhum, de modo que o menino foi tomado de grande desespero. Isso de ter sombra sem cabeça parece ser uma coisa terrível; pelo menos o era para aquele menino, pois escondeu a cara nas mãos e, pôs-se a chorar tão alto que Wendy acordou e sentou-se na cama, muito admirada.
— "Por que está chorando?" — indagou ela.
Em vez de responder, o menino enxugou depressa os olhos com as costas da mão e fez um bonito cumprimento com o gorro vermelho. Depois disse:
— "Há muito tempo que eu ando querendo saber qual é o seu nome."
— "Meu nome é Wendy Darling" — respondeu a menina. — "E o seu?"
— "Peter Pan."
— "E onde mora o Senhor Peter Pan?"
— "Moro na rua das casas, número das portas."
Wendy riu-se daquela molecagem e puxou prosa. Conversa vai, conversa vem, ficou sabendo que Peter Pan era um menino sem pai nem mãe, que vivia solto pelo mundo e agora estava muito atrapalhado por ter perdido a cabeça de sua sombra.
— "Não; gruda nem com sabão" — disse ele fazendo bico.
— "Bobo!" — exclamou Wendy rindo-se. — "Com sabão está claro que não gruda. Sabão só gruda nota velha. Sombra tem que ser costurada com retrós, quer ver?" — e sem esperar pela resposta saltou da cama, foi à sua mesinha de costura e trouxe de lá uma agulha já enfiada. Ajeitou a cabeça da sombra no resto da sombra e num instante alinhavou-a com retrós preto. Ficou que ninguém percebia a emenda.
— "Pronto! Vê como está bem agora?"
Peter Pan pulou de contentamento. Deu várias voltas pela nursery, num verdadeiro namoro com a sua sombra consertada.
— "Eu sou mesmo um danadinho!" — exclamou por fim, todo cheio
de si.
Tamanha gabolice espantou Wendy Ela havia consertado a sombra e
o prosa chamava para si as honras! Já se viu uma coisa assim?
— "Danado, você?" — disse a menina com ironia. — "Se fui eu quem costurou a sombra, como o danado pode ser você?"
— "Sim" — disse o menino; — "você ajudou um pouco, não nego."
— "Ajudou!..." — repetiu Wendy imitando-lhe o tom de voz. — "Pois nesse caso, passe muito bem! Não gosto de gente gabola."
Disse e pulou para a cama, deitando-se e cobrindo a cabeça com a colcha.
Peter Pan desapontou e fez cara de arrependido.
— "Oh, não se ofenda, Wendy! Eu tenho este defeito. Sou gabola de nascença. Quando qualquer coisa de bom me acontece, ponho-me sem querer a contar prosa. Seja boa. Perdoe-me. Reconheço que uma menina vale mais do que vinte meninos."
— Isso também não! — protestou Pedrinho. — Só se é lá na Inglaterra. Aqui no Brasil um menino vale pelo menos duas meninas.
— Olhem o outro gabola! — exclamou Narizinho. — Vovó já disse que louvor em boca própria é vitupério.
— Wendy — continuou Dona Benta — enterneceu-se com o tom daquelas palavras e sentou-se de novo na cama, descobrindo a cabeça. Estava risonha e contente.
— "Peter Pan" — disse ela — "você bem que merece um beijo. Quer?" O menino ficou no ar, sem compreender. Menino sem mãe é assim, nem beijo sabe o que é. Beijo! pensou consigo. Que seria isso de beijo? Com certeza era aquele copinho de prata que Wendy tinha posto no dedo quando tomou a agulha para coser a sua sombra. Não podia ser outra coisa.
— "Quero" — respondeu ele, e foi logo tirando o dedal do dedo de Wendy e colocando-o no seu, certo de que beijo queria dizer dedal. Depois, para retribuir a gentileza, perguntou à menina se ela aceitava um beijo dele.
— "Aceito, sim" — respondeu Wendy, que estava achando muito curioso aquilo.
— "Pois tome este" — disse Peter Pan, arrancando um dos botões de seu casaco e apresentando-o com toda a seriedade.
— Já sei — gritou Emília. — Beijo para ele significava presente, um presente qualquer. Que bobíssimo!
— Wendy — continuou Dona Benta — recebeu o botão e ficou de olhos postos em Peter Pan. Súbito, perguntou:
"Que idade você tem, Peter Pan?"
— "Não sei. Só sei que sou bastante criança. Fugi de casa no mesmo dia em que nasci."
— "No mesmo dia em que nasceu? Que idéia! E por que, meu caro?"
— "Porque ouvi uma conversa entre meu pai e minha mãe sobre o que eu havia de ser quando crescesse. Ora, eu não queria crescer. Não queria, nem quero nunca virar homem grande, de bigodeira na cara feito taturana. Muito melhor ficar sempre menino, não acha? Por isso fugi e fui viver com as fadas."
Wendy quase perdeu a fala de tanto gosto, ao saber que estava diante dum menino conhecedor de fadas. Ela ouvia sua mãe contar histórias de fadas, mas não havia nunca falado com alguém que as conhecesse pessoalmente.
— "É verdade isso, Peter? Há mesmo fadas ou você está a mangar comigo?"
— "Verdade, sim, Wendy. Não muitas, mas há."
— "E de onde vêm elas?"
— "Então não sabe, Wendy? Parece incrível! Não há quem não saiba disso..."
— "Pois eu não sei. Conte."
— "Foi assim. A primeira fada apareceu no mundo do dia em que a primeira criança nascida deu a primeira risa-dinha."
— "Oh, nesse caso deve haver uma fada para cada criança no Inundo, porque todas as crianças dão uma primeira risadinha" — observou Wendy.
— "Assim devia ser" — confirmou Peter Pan, — "se as fadas não fossem as criaturas mais fáceis de morrer que existem. Morrem como passarinhos. Cada vez, por exemplo, que uma criança diz que não acredita em fadas, morre uma."
Aqui tia Nastácia interrompeu a narrativa para dizer:
— Para mim esse menino estava empulhando Dona Wendy. Estou velha e só vi fada nas histórias.
— Cale a boca! — berrou Emília. — Você só entende de cebolas e alhos e vinagres e toicinhos. Está claro que não poderia nunca ter visto fada porque elas não aparecem para gente preta. Eu, se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda...
— Mais respeito com os velhos, Emília! — advertiu Dona Benta. — Não quero que trate Nastácia desse modo. Todos aqui sabem que ela é preta só por fora.
— É o pigmento — disse o Visconde. — Isso de brancuras e preturas não passa de maior ou menor quantidade de pigmentos nas células da pele.
Emília, que não sabia o significado de pigmento, veio logo com a sua célebre respostinha: — "Pigmento é o seu nariz" — mas Dona Benta apoiou o Visconde, dizendo que era aquilo mesmo, que os pretos são pretos porque têm muitos pigmentos na pele.
— Mas que é esse tal pigmento, vovó?
— Pigmento é como os sábios chamam qualquer substância colorida que tinge os tecidos duma planta ou dum organismo animal. A rosa vermelha é vermelha por causa dos pigmentos vermelhos que tem nas pétalas e os negros são negros por causa dos pigmentos negros que possuem na pele.
— Quer dizer — observou Emília — que se os pigmentos de tia Nastácia fossem cor de burro quando foge, ela não seria negra e sim uma burra fugida...
— Chi, meu Deus do Céu! — exclamou Narizinho. — Como a Emília está asneirenta hoje...
— É a lua — disse tia Nastácia. — Já reparei que em tempo de lua cheia Emília dá para espirrar bobagem que nem torneira aberta que a gente quer tapar com a mão.
Emílio botou-lhe a língua e Dona Benta prosseguiu:
— Mas vamos ao caso. Vocês me interrompem tanto que a história não pode chegar ao fim. Peter Pan contou a Wendy como as fadas nascem, e ao falar em fada lembrou-se da bola de fogo que havia entrado na gaveta. Era uma fada, essa bolinha, e muito sua amiga. Uma fada que fazia tudo que as outras fadas fazem, menos falar. Sua fala não passava daquele tlin, tlin, tlin, de campainha de prata.
Assim que Peter Pan se lembrou da bola de fogo, ou Sininho, como era o seu nome, um tlin, tlin zangado se fez ouvir dentro da gaveta.
— "A pobre!" — exclamou Peter Pan. — "Deve estar furiosa comigo por ter-me distraído com você e esquecido dela. Sininho é ciumentíssima."
De fato. Sininho saiu da gaveta furiosa. Esvoaçou pelo quarto por uns instantes, indo afinal esconder-se num canto, emburrada. Eram ciúmes de Wendy. Mas a menina não deu nenhuma importância àqueles maus modos; continuou a conversar com Peter Pan como se não houvesse visto nada.
— "Vamos, Peter Pan!" — disse ela. "Conte-me mais alguma coisa da sua vida. Conte onde mora, mas de verdade."
— "Moro com os meninos perdidos."
— "Fiquei na mesma. Quem é essa gentinha? Nunca ouvi falar em meninos perdidos."
— "Meninos perdidos são os meninos que caem dos carrinhos nos jardins públicos quando as amas se distraem a namorar os soldados. Se as mães deles não conseguem encontrá-los no prazo de quinze dias, eles são remetidos para a Terra do Nunca, onde quem manda sou eu.”
— "Que engraçado!" — exclamou Wendy. — "Terra do Nunca! Está aí uma terra que eu não sabia que existisse. As geografias não falam dela. E depois? Que idéia a sua, de aparecer por cá esta noite?"
— "Eu costumo vir sempre" — respondeu Peter Pan — "para escutar do lado de fora da janela as histórias tão lindas que sua mãe conta. Tantas vezes vim que sou capaz de repetir uma por uma todas as histórias que vocês já ouviram."
— "Mas como é lá na Terra do Nunca?"
— "Oh, uma terra linda, Wendy! Temos piratas terríveis num grande lago, temos alcatéias de lobos famintos que percorrem a floresta e temos uma tribo de índios ferozes, os Peles-Vermelhas, como são chamados. E temos ainda as sereias."
— "Sereias?" repetiu Wendy batendo palmas. — "Com cauda?"
— "Com cauda, escamas e tudo. Sereias iguaizinhas a essas que você vê pintadas nos livros. Uma lindeza, Wendy!"
Wendy não cabia em si de encantamento ante as maravilhas contadas por Peter Pan: Ele, porém, alegou que era tarde e tinha de ir-se embora.
— "Os meninos perdidos já devem estar inquietos com a minha ausência, e ansiosíssimos por ouvir o fim da história que a Senhora Darling contou hoje. Já sabem a primeira parte. Eu venho cá, ouço as histórias ali da janela e depois conto-as a eles direitinho."
— "Não vá ainda!" — pediu Wendy. — "Eu sei mais de cem histórias, cada qual mais bonita, e se você ficar eu as contarei todas. Fique."
"Mais de cem histórias? Oh, que mina!" — exclamou Peter Pan, batendo palmas. — "Nesse caso o melhor seria ir você comigo para a Terra do Nunca. Poderá contar todas essas histórias aos meninos perdidos, poderá ainda remendar a roupa deles, pregar botões e de noite fazê-los dormir — tudo como a Senhora Darling faz aqui. Oh, Wendy, venha comigo..."
A tentação era enorme. Visitar um país daqueles, com feras e piratas e índios e sereias, e ter ainda toda aquela meninada para brincar! Que bom não seria... Mas a menina vacilava.
— "Não posso, Peter Pan. Mamãe não o consentiria nunca. E além disso deve ser muito longe essa terra."
— "Que importa que seja longe? Iremos voando, e para quem voa não há distâncias."
— "Voando? Mas eu não sei voar, Peter Pan! Que idéia..."
— "Eu ensino, não seja essa a dúvida. Em dois minutos deixo você voando que nem uma andorinha."
Aquilo era demais. Era ainda melhor do que ver sereias. Voar, voar... Wendy não pôde resistir à tentação: resolveu que iria. Em todo caso, duvidou um pouco.
— "Já disse que ensino" — assegurou Peter Pan com firmeza. — "Eu, quando digo, faço."
— "E ensina também ao Joãozinho e ao Miguel? Se formos para lá temos de ir todos."
— "Ensino, sim, claro que ensino. Está resolvida? Vai mesmo?"
— "Estou resolvida, vou!" — respondeu Wendy com firmeza — e pulando da cama foi acordar os irmãozinhos.
João Napoleão e Miguel sentaram-se na cama esfregando os olhos, e logo que souberam do caso, deram pulos de contentamento. Gostavam de piratas e sereias ainda mais que Wendy e portanto ficaram ainda mais assanhados. Queriam partir incontinenti.
— "Isso, não!" — disse Peter Pan. — "Antes de mais nada vocês precisam tomar umas lições de vôo."
— "É fácil voar?" — indagou Miguel.
— "É assim" — e Peter Pan deu uma demonstração, esvoaçando pelo quarto como se fosse uma borboleta.
Vendo a facilidade, os meninos tentaram fazer o mesmo. Subiram às camas, ergueram os braços e atiraram-se. Mas foi só tombo. Esborracharam-se no tapete.
Peter Pan riu-se.
— "Não é assim, meninos. Eu tenho de soprar em vocês um pó mágico que certa fada me deu" — e dizendo isto sacou do bolso uma caixinha do pó mágico e soprou uma pitada no nariz de cada um; depois mandou que experimentassem, que subissem às camas, erguessem os braços e dessem outro pulo para o ar.
Os meninos experimentaram e com grande assombro viram que estavam leves como plumas e que podiam equilibrar-se no ar com a maior facilidade.
— "Estou que nem esses balõezinhos de borracha que mamãe enche de gás" — disse Miguel. — "Estou sem peso nenhum!" — e voou quase tão bem como Peter Pan. Por falta de experiência os três voadores deram algumas cabeçadas no forro, mas alguns minutos depois estavam que nem uma andorinha que havia ficado presa no quarto dois dias antes.
Vendo-os nesse ponto, Peter Pan achou que não era preciso mais.
Podiam partir.
— "Muito bem" — disse ele. — "Podemos partir. Sininho seguirá na frente, para indicar o caminho. Em segundo lugar vou eu com Wendy. Depois vai João Napoleão e por último, Miguel. Aprontem-se para partir.
Foi uma correria. João Napoleão quis levar uma porção de coisas, mas teve que desistir porque ficaria muito pesado. Miguel correu ao vestíbulo da casa em busca dum gorro e como não o encontrasse veio com uma cartola do Senhor Darling na cabeça. Wendy resolveu ir como estava, de camisola mesmo.
— "Pronto?" — perguntou Peter Pan.
— "Pronto" — responderam todos.
— "Então vamos lá. Um, dois e... três!"
Ouviu-se um prrrrr... e ergueram-se nos ares os quatro meninos, na ordem mareada pelo chefe e com a bola de fogo voando à frente para indicar o caminho. E lá se foram para a maravilhosa Terra do Nunca...
Justamente naquela hora Mrs. Darling estava na sala de jantar contando ao marido a história da sombra. O Senhor Darling sorria.
— "Impossível, querida. Isso há de ser sonho. É um absurdo."
Nisto soou o prrrrr... Julgando que fosse alguma coruja que houvesse entrado na nursery, a Senhora Darling correu para lá. Ao ver a janela aberta e as. três camas vazias, deu um grito e desmaiou.
Neste ponto Dona Benta interrompeu a história, deixando o resto para o dia seguinte. Todos gostaram muito daquele começo e Narizinho observou que as histórias modernas são mais interessantes que as antigas.
— Estou notando isso, vovó — disse ela. — Nas histórias antigas, de Grimm, Andersen, Perrault e outros, a coisa é sempre a mesma — um rei, uma rainha, um filho de rei, uma princesa, um urso que vira príncipe, uma fada. As histórias modernas variam mais. Esta promete ser muito boa. Peter Pan está com jeito de ser um diabinho levado da breca.
Dona Benta concordou que sim.
— Eu só não entendo uma coisa disse tia Nastácia. — Como é que a tal senhora... como é mesmo?
— Darling.
— Isso. Não entendo como é que a Senhora Darling foi deixar a janela aberta. Quarto de criança a gente não deixa de janela aberta nunca. Entra morcego, entra coruja — e entram até esses diabinhos, como o tal Peter Pan.
— Boba! — exclamou Emília. — Se ela não deixasse a janela aberta não podia haver essa história. Se você fosse a mãe · dos meninos deixava a janela fechada, não é? E que aconteceria? Cortava a cabeça da história logo no começo.
— Estou desconfiado — disse Pedrinho — que o tal pó mágico de Peter Pan era o nosso pó de pirlimpimpim.
— E quem nos garante que o tal Peninha, que deu a você o pó de Pirlimpimpim, não seja esse mesmo Peter Pan? Aquela história do Peninha ser invisível está me parecendo arteirice de Peter Pan para nos empulhar.
— Pode ser. Tudo pode ser — concordou Pedrinho, pensativo.
Houve um silêncio. Cada qual pensava numa coisa. Tia Nastácia pensava na franga que tinha de matar para o almoço do dia seguinte. Dona Benta pensava num remendo a fazer no paletó de Pedrinho. Pedrinho pensava num jeito de arranjar mais pó de pirlimpimpim. Narizinho pensava num meio de fazer Peter Pan vir visitá-la no sítio. O Visconde não pensava em coisa nenhuma. E Emília?
Emília saíra da sala pé ante pé sem que ninguém percebesse, e logo depois voltou com a tesoura de Dona Benta na mão, E deu jeito de cortar a cabeça da sombra de tia Nastácia, que enrolou e foi guardar no fundo de uma gaveta.
Ninguém percebeu a manobra, mas quando chegou a hora de se recolherem e tia Nastácia foi apagar o lampião:
— Ué! — exclamou ela espantadíssima, vendo projetar-se na parede a sua sombra sem cabeça. — Que coisa, Santo Deus! Será que perdi minha cabeça?
E apalpou-se para verificar se estava mesmo sem cabeça. Só então se lembrou da passagem contada por Dona Benta, e viu que alguém lhe havia cortado a cabeça da sombra.
— Isso também é demais! — gritou ela. — É judiação. Cortar a cabeça da sombra duma pobre negra velha que nunca fez mal a um mosquito... Mas quem foi o malvado?
Olhou para a cara de Pedrinho, de Narizinho, do Visconde e da Emília e não viu em nenhum deles o menor ar de criminoso. Emília, sobretudo, estava com uma carinha que era só botar num quadro e virava Santa Emília
de tão inocente.
Dona Benta foi de opinião que aquilo só podia ser arteirice do Peninha, ou talvez do próprio Peter Pan, que houvesse entrado na sala às escondidas, no momento em que todos estavam mais distraídos com a história.
A boa negra arrenegou, e lá se foi para a cozinha com a sua sombra sem cabeça, a coisa mais esquisita e feia que se possa imaginar.
— A gente não tem sossego neste sítio. — resmungava ela. — Estes meninos endiabrados não param com as reinações. Uma sombra que me acompanhava desde criança, tão direitinha, com a cabeça e tudo — e está agora essa coisa esquisita, que nem
aquela rainha Dona Maria Antonieta que Sinhá Benta contou que perdeu a cabeça na tal janela da guilhotina... Credo!...