Ciga - A Pulga Cigana

São Paulo - SP

Ciga

A Pulga

por Maycon Cypriano Batestin & Cristiane Rodrigues da Silva 

Agradecimento

À Francisco Batestin, Aurora Colombine, Tercilia Fiorio, Pedro Cipriano, Lúcia de Fátima Cypriano, José Luiz Batestin, Bárbara de Cássia Cypriano Batestin, Bento Cypriano, Daniel Brittes, Francisco Rodrigues da Silva, Leny Alves de Araújo, Suzelina Peixe da Silva, Fernando Rodrigues da Silva, Kelly Rodrigues da Silva, Mateus Araújo da Silva, Helena Rodrigues da Silva, Pedro da Silva Fonseca, Francisco Fonseca, e especialmente a Cristiane Rodrigues da Silva e ao Maycon Cypriano Batestin. Nossa adorável família cigana!

Sinopse

A história segue sobre uma família de pulgas ciganas chamadas Chsigacnos. Eles são conhecidos por seus espetáculos de mágica "pulgacíticos" e cada membro da família tem uma habilidade única. Ciga, um dos filhos, sente-se fora do lugar na família devido a sua falta de habilidades especiais. No entanto, ele ama sua família e se emociona com suas apresentações. A mudança é uma parte importante da vida das pulgas ciganas, pois significa que quando um cão encontra outro, uma travessia é possível. A mudança é a oportunidade para a sabedoria da mudança. Ciga precisará lidar com essa mudança em sua vida e descobrir sua verdadeira habilidade e lugar na família.

Capítulo I - Conheça os Chsigacnos

Não há muito tempo, e nem tão pouco assim, numa espessa camada de pelo de um não muito selvagem cachorro de rua, vivia uma família de pulgas ciganas.

Não era, também, qualquer tipo de família cigana. Eram os Chsigacnos, conhecidos por seus mágicos espetáculos "pulgacíticos" que, diziam eles, surpreendiam até mesmo os maltrapilhos carrapatos. Os Chsigacnos eram famosos e numerosos, habitando uma fantástica morada próxima ao Focinho, mas acima de tudo, eram tradicionais.

Cada geração de pulga tinha uma habilidade única e exclusiva. Por exemplo, Dona Romana, a vovó pulga, podia ler a sorte de qualquer outra pulga após uma boa dose de suquinho matinal (que ela tomava sempre para se manter esbelta). Rilda, a matriarca, tinha habilidade de prever o exato destino de qualquer pulga pelos próximos exatos vinte segundos. Tião, o vovô pulga, dizia ser capaz de se comunicar com fantasmas do passado, e sempre podia prever quando aconteceria a ‘Terrível-Era-da-Espuma-Branca’, uma espécie de profecia que dizia quando todas as pulgas deixariam de existir. Já Quaselito, o patriarca, era um mestre malabarista, capaz de equilibrar em suas antenas todos os seus 51 filhos. E sim, todos os filhos adoravam essa vida, com a exceção de uma. Ciga.

Ciga desde que era uma pequena larvinha habitando perto da distante região da Cauda-Anelar não parecia se encaixar na família. Não que não os amasse de verdade, pelo contrário, amava muito. Sempre se emocionava quando Pyro, seu irmão trapezista, realizava ‘Lo desafio del Morte!’ Um desafio que consistia em atravessar as duas orelhas do cachorro usando apenas um canudo como barra de equilibro. Ria quando Hurinha e Cocceirinha, realizavam suas cômicas apresentações em ‘patas stands’. Roía as pontas dos pelos das patas toda vez que Rômildi arriscava sua vida no ‘El Dent Encanado’, uma apresentação que consistia em disparar uma bola de canhão em direção ao Pescoço, sendo, a bola, na verdade, o próprio irmão. Os olhos brilhavam quando via seu pai erguer os filhos, e, do fundo de seu coração, desejava fazer parte do ‘pulgacítico’-uma apresentação que reunia toda família numa conversão de mágica, ilusionismo, força, beleza e muita coceira na região da Barriga.

O que fazia, no entanto, Ciga não se encaixar na família era apenas uma coisa que toda pulga cigana um dia tem que encarar: a mudança.

Como bem dizia Tião, o vovô pulga, em um momento de conjunção canina, quando um cão vadio, nem muito triste, nem muito alegre, mas devidamente abandonado encontra outro cão vadio, nem muito triste, nem muito alegre, mas, também, devidamente abandonado, é oportuno a sabedoria da mudança. Em linhas gerais, isso significa que quando um cão encontra outro cão, uma travessia é possível. Por isso, não importa o quão belo e mágico seja o espetáculo, ninguém fica para sempre no mesmo lugar.

Isso a entristecia, e muitas vezes, lhe zangava simplesmente porque, muito dessas vezes, qualquer amizade que fazia não durava.

Houve bons amigos, é claro. Por exemplo, Piguto, o pernilongo. Ela o conheceu no verão canino de Noventa e Oito, quando, após uma noite exagerada, ele não conseguiu levantar voo e acabou passando uma semana com os Chsigacnos para uma dieta extrema.

Piguto foi um bom amigo. Enquanto ali habitavam, tiveram boas risadas e muitas aventuras juntos. Contudo, um dia, Rilda, a matriarca da família pulga, gritou:

— Atenção, Chsigacnos! Vovô previu! Está na hora! Todo mundo arruma a mala, fecha o picadeiro e vamos para o próximo show!

Um misto de desapontamento e vergonha pulsou no coração da pulguinha.

— Olha, Piguto – respondia Ciga. Foi um prazer te conhecer, mas tenho que partir.

— Mas já? Ainda nem provamos a região do Sovaco!

— Eu já fui lá, não é tão apetitoso assim e nem cheira muito bem. E além do mais, é a família, né? Você entende.

— É... entendo! - dizia o pernilongo. Apesar de não ter família.

Sim, os pernilongos não possuem muitos laços com suas famílias. São indivíduos extremamente solitários, mas são boas companhias para parasitas e pulgas.

Houve também Hiduinda, a formiga que ela conheceu num terreno baldio encharcado de lama. Com Hiduinda, Ciga descobriu seu talento, uma herança de família: o dom de ficar invisível. Foi acidentalmente, é claro, enquanto tentava se esconder da família e, de fato, conseguiu. Aquilo, por mais divertido que parecesse, mostrou-se, na verdade, terrivelmente assustador. Era angustiante ver, entre sombras, sua família procurando por ela e não conseguindo encontrá-la.

Todavia, aqueles dias eram de muita chuva e pouca estalagem. Assim, mais uma vez, os Chsigacnos estavam de malas prontas.

E assim foi sua vida ao longo de todos os seus treze anos de pulga: treze mudanças, treze cachorros novos. Seu irmão, Magoli, diria, lendo em suas cartas, que isso é um sinal positivo. Especialmente porque, até agora, ninguém se perdeu ou algo de ruim aconteceu.

E ele estava certo.

Mudar não era uma tarefa tão fácil quanto os Chsigacnos faziam parecer. Eram habilidades muito exclusivas deles e que foram, ao longo do tempo, aprimoradas. Como, por exemplo, fechar o picadeiro, arrumar as malas, conferir os filhos, verificar a nova pelagem, inspecionar o novo território, estabelecer-se, fincar a bandeira e, enfim, descansar.

Algumas vezes, quase sempre, algo se perdia nesse trânsito. Uma mala, um canudo, o picadeiro, mas eram coisas que, em sua maioria, podiam ser substituídas. Eles sempre tinham uma reserva ou uma solução improvisada. No entanto, houve uma vez em que algo se perdeu e não dava para ser substituído.

Essa é a história sobre esse algo perdido e insubstituível e a aventura que se seguiu para encontrá-la, e tudo começou numa estranha quinta-feira.  

Capítulo II - A Grande Travessia

A região do Focinho, como toda pulga cigana bem informada sabe, é famosa por suas paisagens visualmente deslumbrantes e por oferecer alguns desafios... digamos... peculiares em termos de higiene. Embora seja justo reconhecer que há margem para melhorias na limpeza, é impossível ignorar a magnificência das vistas que se revelam nesse lugar.

E ali, entre uma bagunça úmida e melequenta, encontrava-se o vovô Tião, um veterano de visões bizarras. Essas visões são um verdadeiro quebra-cabeça, não apenas porque seus olhos decidem seguir caminhos distintos, mas também porque a noção de idade e lucidez é algo passageiro para esse ancião peculiar.

Mesmo assim, ele fixava o olhar em um lugar de descrição impossível. Poderia ser uma praia paradisíaca, uma floresta encantada ou até mesmo um carrapato flutuante no ar.

Entretanto, em um momento inesperado, algo capturou sua atenção de forma totalmente diferente. Não era uma praia, nem uma floresta e, definitivamente, não um carrapato alado. Era algo completamente único e de suma importância.

Tião, erguendo suas patas no ar com uma mistura de determinação e desorientação que só ele poderia alcançar, partiu em direção à região da Nuca. Ah, a região da Nuca! Um campo selvagem de pelagem rasa, com um perfume peculiar de suor canino e coleiras abandonadas. Ali, ele tentou reunir sua família, que inicialmente o ignorou, mais ocupada que estava em suas próprias aventuras circenses.

No entanto, Tião não desistiu facilmente. Primeiro tentou com educação, depois com um pouco mais de barulho, e quando isso não funcionou, tentou gritar. Visto que nenhuma das soluções havia dado certo, ele fez o que um bom velho senil de muita experiência de vida tem que fazer quando a situação pede; prometer uma sobremesa.

E não é que sua promessa surtiu efeito?

Todos os olhares se voltaram para ele, curiosos e sedentos pelo doce prometido.

Claro que não havia sobremesa, mas ele sabia que depois do que iria dizer, ninguém iria se lembrar da sobremesa.

Com a garganta limpa de forma majestosa, como se um coro de pulgas entoasse uma sinfonia pelas anteninhas, Tião cravou seu cajado no solo e, em meio a um silêncio prolongado, começou a falar.

- Tá na hora da mudança, pessoal!!! Todo mundo pronto em uma hora para embarcar na maior aventura que esse focinho já viu.

E do silêncio, estabeleceu-se um alvoroço nunca antes visto na região da Nuca. Todos pararam suas apresentações e começaram a fazer as malas.

- Carlito, Juanilda, Pyro, peguem suas coisas e se aprontem! Gritava a mãe, desesperada com a bagunça.

- Meu santo pulguento! Onde estão meus barbantes? Gritava o pai, perdido em meio ao caos.

- E no espanto que todos apontam, vamos todos para outro rebanho - Tentava fazer graça Hurinha e Cocceirinha, os palhaços da família.

E no meio dessa confusão, um pouco mais afastada de todos, estava Dona Romana, a avó, lendo a sorte de sua neta.

- Oiá só, Ciganinha... algo está diferente aqui. Comentava a avó, intrigada.

- O que foi, vó? Perguntava Ciga, curiosa.

- Não sei dizer ao certo, mas é algo novo. Mistérios no ar! Dizia a avó com um sorriso malicioso.

- Aí fala logo, vó.

- Ah, desculpa, é só uma sujeira na sua pata mesmo. Devia limpar essa coisa aqui! Provocava a avó.

- Aff! Vó.. Resmungava Ciga, desapontada com a falsa revelação.

Então, de repente, ouviu-se barulhos vindos da Nuca.

- Vó... perguntava a pulguinha, intrigada - Parece que vamos ter que nos mudar de novo.

- Você fala como se fosse coisa ruim. Respondia a avó, já com seu novo drinque matinal em mãos.

- Ah, vó... A senhora não se cansa de mudar?

- Menina. Respondia a velhota, depois de dar um gole em seu drinque. Mudar é uma coisa boa, não sabe nosso lema?

- Não atar nem desatar, apenas mudar! Respondia Ciga, lembrando do lema peculiar da família.

- Viu! Você sabe. Agora sabe o que isso significa? Perguntava a avó, empolgada.

- Que a gente tem que mudar. Respondia Ciga, resignada.

- Que a gente precisa mudar! Respondia a avó, com um brilho no olhar. Nós, os Chsigacnos, sempre nos mudamos. É assim há mais de noventa gerações.

- Mas, talvez, dessa vez poderíamos ficar. Dizia a jovem, esperançosa.

- Ficar? Para quê? Ficar faz a gente envelhecer. Retrucou a velhota, após mais um gole em seu drinque matinal.

- Mas, vó... Aqui é nosso lar. Você não se sente assim?

- Olha, Ciga. Nosso lar não é onde nós estamos, é com quem estamos. Respondeu a vovó, sábia em seus ensinamentos familiares. E, olhando para Ciga, completou:

- Agora chega dessa palhaçada e vai fazer tua mala! Tá na hora de mudar!

Ciga não ficou muito satisfeita e, saindo da tenda da sua vó, pensou consigo mesmo: “Ah sim, claro! Tudo muda. Só não muda o fato da gente ter que mudar sempre” e viu, ao longe, o grande agito que se desenrolava na Nuca.

Olhou para a região do Sovaco, pensou um pouco e decidiu: "Talvez eu devesse ficar! Só dessa vez. Estou cansada disso." E, firme em sua decisão, escondeu-se entre os pelos fedidos e brancos, aguardando o término da confusão.

Então, como num passe de mágica canina, os focinhos se conectaram, formando uma ponte entre a Cauda e a nova morada. Um a um, os Chsigacnos pulavam para o novo território.

- Pyro, Rômildi, Hurinha, Cocceirinha, Carlito, Juanilda... contava a mãe, liderando o grupo.

- Mulher, não seria melhor ir por número? É mais prático. Corrigia o pai, tentando impor ordem no meio da mudança.

-Trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro... continuava a mãe, sem dar ouvidos ao pai.

Longe dali, em algum lugar no Sovaco, Ciga, invisível aos olhos dos demais, ficava para trás. Um medo parecia lhe dominar, e também, a tal da curiosidade...

Será que ela realmente ficaria? Só o tempo (e alguns pelos fedidos) diriam. 

Capítulo III - Uma pulga perdida

Após um período, nem muito longo, mas também não muito curto, espreitando pelo Sovaco da espessa camada de pelo de um não muito selvagem cachorro de rua, escondia-se a Ciga.

De início, sua intenção era de experimentar uma aventura que, em seu entender, seria divertido. Mas, à medida que o silêncio e a ausência de outras pulgas começavam a ser notada (principalmente nos momentos em que ela chamava sua família pelos nomes), começou a perceber que não estava mais se divertindo.

Em um outro cachorro, não muito distante, Rilda, a matriarca, continuava a contar todos os seus 51 filhos.

- Quarenta e oito, quarenta e nova, cinquenta e…

Parou de repente.

- Ué.

Coçou a cabeça, olhou ao redor na certeza de que havia algo de errado que não estava certo.

Voltou os olhos para aquele amotinado de pulgas esperando um comando de ‘está tudo bem!’, e ficou confusa.

- Contou certo, mulher?! Perguntava Quaselito, o marido.

Um olhar ameaçador lhe foi dirigido. Um olhar do tipo que faz o marido questionar se tem alguém usando o banheiro porque subitamente lhe deu uma vontade imensa de usar.

- Sem problema, amor de minha vida. Tentou agradá-la. Eu vou contar, sim!

Olhou para todas as pulgas e gritou:

- Ninguém saí daí!

- Ah pelo amor de todas as Pulgas! - Externalizou Tião, o vovô pulga. - Vai demorar muito? Já tamo nisso há um século!

- Papa! Fica quieto, por favor. Tentava dialogar Quaselito.

- Quieto?! - Atonitamente olhava para algum canto que não era, particularmente, onde seu filho se encontrava - Diga isso para minhas antenas! Elas sentem que o dia da “Terrível-Era-da-Espuma-Branca” está chegando e, nós estamos aqui, parados.

era uma lenda ancestral entre os ciganos, transmitida pelos sábios mais velhos aos seus descendentes. Dizia-se que era o momento em que o cachorro vadio, que não era assim tão feroz, encontraria um lar ou seria capturado por um humano e submetido ao temido "banho de espuma". Quando esse evento ocorresse, se é que algum dia ocorreria, todas as pulgas seriam extintas.

Essa preocupação pairava constantemente sobre a cabeça dos velhotes da família cigana, que tinham o dom de conversar (e até mesmo enxergar) com fantasmas. Por isso, naquele momento, Tião estava mais interessado em suas próprias divagações do que nas palavras de seu filho Quaselito.

- Onde já se viu isso? Continuava o vovô, sem dar atenção a fala do filho - Uma pulga parada! Até parece que agora nós somos ácaros.

E assim, inúmeras pulgas se sentiram profundamente ofendidas. Comparar uma pulga a um ácaro era algo que simplesmente não era aceitável. As pulgas eram criaturas notáveis em muitos aspectos singulares. Por exemplo, elas possuíam patas traseiras longas, o que lhes concedia habilidades incríveis em trapézio, malabarismo, dança e, é claro, saltos ornamentais.

Houve uma história, há muitas vidas de pulgas atrás, sobre uma disputa épica entre Diogo Chsigacnos, o Saltador, uma pulga renomada, e Cromélio Grudents, o Não-Tão-Saltador-Mas-Até-Que-Bem-Alto, um ácaro presunçoso. Essa disputa ocorreu por causa de um pedaço de pele precioso entre as Nádegas, na época em que ambos os povos, os cigano-pulgas e os ácaros, ainda estavam buscando seu lugar no mundo.

A competição consistia em saltar de um cachorro para outro, realizando cinco piruetas e dezoito giros invertidos no ar. Por critério das patas traseiras, o pobre Comélio acabou perdendo e foi batizado como Cromélio Gudents, o Aquele-Que-Tentou-Saltar-Mas-Caiu-Naquilo-Que-Não-Era-Mar-Mas-Era-Molhado-Mesmo-Assim.

Essa história é contada pelos Chsigacnos para lembrar a todos que eles são diferentes dos ácaros em muitos aspectos. Além disso, ácaros são veganos, o que, sem dúvida, é uma dieta que nenhuma pulga gostaria de experimentar.

- Por favor, tenhamos calma pessoal. Tentava, em vão, apaziguar a confusão o Quaselito.

E neste desenrolar das coisas, entre a bagunça e tentativa de ordem, uma voz rasgou a barreira do som e gelou a espinha do cachorro. Era uma voz gritante, estrondosamente gritante, que penetrou em todas as antenas da seguinte maneira:

- TODO MUNDO EM SILÊNCIO!

E se fez silêncio.

Rilda era realmente uma mãe espetacular. Nenhuma pulga podia ser chamada de ‘La matriarca’ ou ‘La mama’, se não fosse ela. É necessário, além de prever o futuro de até vinte segundos, a capacidade de fazer-se entender através do grito. E que grito!

Todos estavam parados. Iguais a soldados.

- Eu vou contar de novo e se eu ouvir um piu sequer, vou fazer de suas antenas varas de tricô! Entendidos?

Ninguém respondeu.

Ela tentou de novo.

- Entendidos?

Como ninguém se mexeu, ela ajeitou a barriga de modo a suprimir todo ar dentro de si, deu três passos à frente e soltou o ar dizendo:

- ENTENDIDOS?!

- SIM SENHORA! Respondeu o coro.

Enquanto isso, não muito distante dali, em outro cachorro de rua não tão selvagem, uma pulga se encontrava solitária. Ela havia decidido que era hora de explorar o vasto território ao seu redor.

No entanto, ela não estava se saindo muito bem com tanto espaço, tanto pelo espesso e tanto silêncio. Então, teve uma brilhante ideia: brincar de teatro e interpretar sua família de pulgas.

Primeiro, ela tentou interpretar seu pai, o malabarista, mas não havia nenhuma outra pulga para ela lançar de pata em pata. Em seguida, ela tentou imitar seu irmão Pyro, o trapezista, mas a travessia de Orelha-à-Orelha era muito arriscado e ela desistiu rapidinho.

A pulguinha tentou contar piadas como Hurinha e Cocceirinha, mas não conseguia se lembrar de nenhuma coisa engraçada. Ela tentou ler cartas, mas não dominava o idioma da sorte ou azar. E tentou, até mesmo, dançar Rumba, Ghawasse e Romanê, famosas danças ciganas pelas quais sua irmã mais velha, Bibinha, era conhecida. No entanto, a dança não era uma habilidade em que Ciga se destacava.

Por fim, a pulga decidiu interpretar a si mesma, ficando invisível. E, surpreendentemente, essa ideia funcionou! Ela teve um sucesso estrondoso em sua performance de não ser vista.

No entanto, mesmo obtendo um enorme êxito, Ciga percebeu que não havia ninguém ali para aplaudir ou ovacioná-la. Era como se estivesse em um teatro vazio, sem plateia. E um vazio tomou conta de seu coração.

Naquele silêncio, ouviu o eco das palavras de sua vovó, ditas horas atrás: “Nosso lar não é onde nós estamos, é com quem estamos”, lembrou a pulga.

Pensou nela. Lembrou de sua mãe, do seu pai e dos seus cinquenta outros irmãos que estavam neste momento, provavelmente, se apresentando em um novo cachorro.

O que ela não sabia, e não tinha como saber, é que enquanto lembrava de sua família, ela estava percebendo a sua falta.

- Está faltando uma pulga! Dizia, agora de forma aflita, dona Rilda.- Tem exatos cinquenta pulgas aqui! Tá faltando uma!

Ao seu redor, todas as pulgas checavam a si mesma para terem certeza de que não eram elas mesmas que estavam desaparecidas.

- Mas quem está faltando? Perguntava-se o pai.

Uma sensação familiar, do tipo que os bons ciganos podem sentir, quando os astros colidem no céu, passando como um vento entre os pelos do cachorro, arrepiou suas patas e, subitamente, se deram conta de quem estava faltando. Ambos olharam um para o outro. Quaselito e Rilda. Papai e mamãe. E falaram ao mesmo tempo:

- CIGA!

Capítulo IV – Habilidades

Em toda história da família Chsigacnos, a mudança nunca foi um fardo, ou um erro, era uma tradição.

O lema era: Não atar nem desatar, apenas mudar!

E mudar significa, em todas as palavras, fazer ou sofrer alteração. Variar a habitação. Sair de um lugar para outro. E isso, apesar do que parece, não era uma tarefa fácil.

A toda conjunção canina, o momento em que a família se muda, pulgas de todos os cantos diziam: “Começou a loucura!”. Isso porque apesar de todas as malas, acessórios, picadeiros, e, muita agitação e estresse, sempre havia algo de novo a ser explorado e algo de velho a ser abandonado.

Acontece que, neste momento, em uma não muita espessa camada de pelo de um não muito selvagem cachorro vadio - que há poucas horas havia esbarrado em um outro cachorro vadio não muito selvagem - eles encontravam-se em uma situação que jamais foi vivenciada até então; uma pulga havia sido deixada para trás.

Não era, simplesmente, qualquer tipo de pulga. Era Ciga, a caçula.

Por ser considerada eternamente “a larvinha da família”, a caçula tinha alguns privilégios que os demais não tinham, como, por exemplo, o direito de ser mimada.

Não que as outras pulgas não fossem paparicadas. A seu tempo, todas um dia foram. Contudo, mesmo Ciga, não teve esse privilégio de forma duradoura.

Vejam…

Quando uma pulga Chsigacnos nasce, muitas expectativas são geradas.

A avó, por exemplo, pede aos astros caninos que sua neta seja igual a ela, capaz de ler a sorte de qualquer outra pulga. O avô, contudo, espera que ela seja especialista em falar com fantasmas. Do mesmo jeito, Rilda e Quaselito, esperavam que sua filha herdasse suas habilidades.

Essa expectativa, apesar de nunca ser totalmente suprida, era, de algum jeito, recompensada quando uma nova habilidade era revelada.

Tomem o caso de Dalila, a trigésima quarta filha, por exemplo.

Dalila nasceu durante uma conjunção tipicamente canina, dessas que toda família está acostumada a ser mudar. Muitos acreditaram que ela herdaria, enfim, as habilidades de seus pais, que ela seria ou uma malabarista, ou uma vidente temporária. No entanto, ela nasceu cantando. E do seu canto, muitos sorrisos foram surgindo ao redor.

É assim que as pulgas nascem na família. Nascem com talentos. E apesar dos talentos não serem iguais, ainda sim, são únicos e encantadores.

Ciga não nasceu com talento. Nasceu completamente normal – nos padrões de quem nasce sem qualquer tipo de talento.

Isso criou uma proteção maior da família em relação a ela. Assim, a ordem de dona Rilda para todos os seus filhos e filhas era bastante simples: TODOS DEVEM CUIDAR DA CIGA!

Se a Ciga quisesse uma ‘mamadeira’ iria lá, Rômildi buscar. Se a Ciga quisesse uma vareta para brincar, iria lá Juanilda buscar. E por um bom tempo, todos, incluindo os pais, cediam ao seu desejo. Contudo, em um certo dia - precisamente após a primeira mudança da família - ela desejou algo diferente:

- Quero ficar! Disse a pequenina pulga.

Todos ficaram atônitos naquele momento. Era como se o dia da ‘Terrível-Era-da-Espuma-Branca’ caísse sobre todas as pulgas em apenas um segundo. Apenas seu pai, imaginando que se tratava de um equívoco, respondeu com outra pergunta:

- Neném não quer uma varetinha para brincar?

- Não, eu quero ficar!

E foi a primeira vez que as expectativas da família Chsigacnos não correspondeu. Havia um ar de decepção, e imediatamente, associaram que toda paparicação, todo mimo, toda atenção havia desenvolvido uma habilidade que fosse contrária as tradições da família.

Ficar não era o lema, era o pesadelo.

Ciga cresceu com este desejo, e, depois de muito tempo, ele finalmente foi atendido.

Capítulo V – Coragem

Rilda, a matriarca, agora se encontrava totalmente perdida em seus pensamentos.

“Minhas pulgas santinhas! O que foi que eu fiz?”, “Como eu não vi?”, pensava a mãe. Do mesmo jeito, o pai começava a roer os pelos de suas seis patas pensando: “Minhas pulgas santinhas! O que foi que eu fiz?”, “Como eu não vi?”.

Enquanto isso, no outro cachorro, a muitas patas de distância, Ciga já estava arrependida.

- Mãe, pai, vô… Desculpa! Falava sozinha.

Ciga estava assustada, porque apesar de ter realizado o seu desejo, não era bem o que ela estava querendo.

Uma coisa é desejar “ficar”, outra coisa é ficar e estar sozinha.

Ela precisava fazer alguma coisa, e lhe ocorreu apenas uma ideia, fazer uma nova conjunção canina para encontrar sua família.

Isso era não era uma tarefa fácil. Até porque, o seu avô sempre lhe fizera entender que este tipo de coisa era extremamente aleatório, e acontecia de repente, não sendo passível de previsão. Mas ela não tinha escolha. Tinha que dar um jeito. E a primeira coisa que precisava fazer era encontrar o cão onde a sua família se encontrava.

- Mas como eu farei isso? Perguntava a si mesma.

Olhava ao seu redor e não tinha a menor ideia de como proceder, até que lhe ocorreu uma ideia que nenhuma pulga jamais havia pensado anteriormente; perguntar ao cachorro.

A relação da pulga com um cachorro é milenar. As pulgas, pelas tradições, sempre trataram o seu terreno como algo temporário e inativo. Nunca como um ser vivo.

Seu avô, Tião, costumava dizer: “um chão nunca fala. Estamos passageiros para ele, como ele está passageiro para nós”.

Por isso falar com cachorros não era algo que uma pulga pensaria em fazer, até que Ciga o pensou!.

- Será que é possível? Perguntava a si mesma -Tem que ser!

Tentava se auto encorajar. Mas, ainda que conseguisse coragem, restava a pergunta de “como?”. “Como conversar?”, “Será que o Cachorro vai me entender?”, “E se ele me devorar?”, “E se ele não entender?” Enquanto essas dúvidas perpetuavam por sua cabeça, um encorajamento também surgiu.

“Oras, até agora nenhuma pulga havia se perdido, e isso se mostrou possível. Eu me perdi! Então, também é possível falar com os Cachorros!”

E assim, com essa lógica, Ciga partiu para dentro da região do Ouvido e arriscou sua única chance.

Enquanto isso, em outro cão, a família se reunia no centro da barriga para uma decisão.

- O plano é o seguinte. Dizia Rilda, a matriarca, enquanto desenhava no chão com alguns pequenos canudos de pelo que haviam feito. Ciga está à vinte patas de distância. Precisamos ir até ela. Gonçalo é inventor da família, ele criou essas varas mecânicas que vão nos ajudar. Pablo vai desviar atenção do cachorro com uma ilusão de salsicha temperada para que ele dê meia volta e possamos voltar. É bem possível que não haja uma conjunção canina, por isso, prestem bem atenção. Quando estivermos a apenas um ou duas patas de distância, vamos usar as varas mecânicas que Gonçalo criou para fazer uma ponte e atravessar até Ciga.

- Mas, e se a Ciga não estiver lá? Perguntou Natasha, sua irmã barbuda.

- Ela está lá sim! Disse a bisavó Petrolina. Acabei de ler nossa sorte e nós vamos encontrá-la.

Petrolina é a pulga mais velha da família. E conhecia a sorte, segundo ela, desde que foi inventada. E algumas pulgas dizem que ela mesma inventou a sorte, mas nunca puderam provar isso. O fato é que, em se tratando de algo tão aleatório quanto a sorte, ninguém melhor do que Petrolina para saber ler, traduzir e confortar todas as pulgas.

E com uma confiança renovada, a mãe olhou para todas ao seu redor e exclamou.

- O que nós somos?

Todos respondiam gritando

- CHSIGACNOS!

- O que nós somos? Perguntava mais alto a mãe.

Todos respondiam ainda mais alto

- CHSIGACNOS!

E lá estavam todas as pulgas se abraçando. Com um plano traçado, entusiasmo renovado, e uma coragem que nenhuma delas jamais vivenciou. E, se a Ciga estivesse ali, veria que naquele momento, algo mágico estava acontecendo, pela primeira vez na história de uma pulga, os Chsigacnos estavam voltando atrás!

Capítulo VI – Uma parceria improvável

A região do Ouvido, como toda pulga bem sabe, possuí uma paisagem vasta e cheia de desafios. As ondas sonoras que permeiam o ambiente criam uma sinfonia peculiar, constantemente em movimento. É como se estivéssemos imersos em um concerto contínuo, onde cada ruído e cada latido têm sua própria melodia.

As paredes do Ouvido são forradas com um emaranhado de pelos finos e delicados, criando uma espessa floresta em miniatura. Esses fios capilares proporcionam um verdadeiro parque de diversões para pulgas habilidosas que não é o caso da Ciga.

Ciga pode não ser uma habilidosa pulga olímpica, mas é corajosa como nenhuma outra antes dela. E ali, naquele acústico ambiente cheio de cera e precisando urgentemente de uma higiene, ela encontraria a maior de todas as coragens.

- Oi, tem alguém aí? Perguntava a pulga. E sua voz ecoava como sussurro numa gruta.

Ninguém respondia.

Ela tentou entrar mais a fundo no Ouvido.

-Oi, tem alguém aí?

Naquele momento, desfrutando o doce aroma de um poste de eletricidade, estava o cachorro. Não era nenhum tipo de aroma comum, desses que você mete o nariz em qualquer lugar, era um aroma doce e delicado que lhe dá uma vontade de esticar sua pata traseira e dizer a todos os outros cachorros que aquele lugar era seu.

Essa euforia foi estagnada com um arrepio na coluna, quando a pulga, em seu Ouvido, começava a falar.

Seus olhos se esbugalharam, e um zunido atravessou seus ouvidos. A pata traseira já não estava mais na direção do poste, e de repente, sentou-se.

Um breve e quieto espaço no tempo aconteceu. Nada acontecia. E tão subitamente quanto havia parado, ele começou a se coçar freneticamente ao pé do Ouvido.

- Socorro! Socorro! Terremoto! A pulga se balançava da esquerda para direita, de cima para baixo, e gritando!

O cachorro estava ouvindo e, olhou ao seu redor para ver se estava acontecendo algum terremoto.

- Puxa, essa foi por pouco! Falava a pulga, toda ofegante.

- Quem está falando? Perguntava o cachorro.

- Ai santa pulga! Você está me ouvindo?

O cachorro achou que estava enlouquecendo. De onde estava vindo aquela voz? E “pulga”? Por que ouviria “pulga”? Começou a imaginar que havia comido alguma comida estragada. No fundo, sabia que não podia confiar no que encontrava no lixo, mas é que o cheiro é tão irresistível que nenhum cão consegue evitar.

- Oi. Está me ouvindo? Continuava a perguntar a pulga.

Sem saber o que fazer, e aceitando o fato de que estava ficando louco, o cachorro respondeu.

- Oi.

- Aí santa pulga! Você consegue me ouvir de verdade! Eu sou a Ciga, qual é seu nome?

E sem saber como proceder, o cão decidiu seguir com a conversa.

- Eu sou Bingo.

- Prazer Bingo, é muito bom saber que você pode me ouvir.

- E você é o que?

- Oras, eu sou uma pulga. Ciga Chsigacnos, e estou precisando de ajuda.

- Pulga? Do tipo pulga mesmo?

- Sim, algum problema?

- E de onde você está falando?

- Estou dentro do seu Ouvido.

Neste momento as coisas começaram a fazer sentido para o Bingo, que, sem pensar muito, decidiu dar um fim aquela loucura de conversa com uma pulga.

Pôs as patas na orelha e começou a se coçar. Lá dentro, porém, a pulga começou a se chacoalhar.

- Pare! Por favor, pare! Implorava Ciga. E o cão desejando voltar a suas atividades normais (que neste caso consistia em deixar a sua assinatura ao poste de eletricidade a sua volta) continuava.

- Pare, por favor! Eu vou vomitar!

O cão, imediatamente, parou.

Bingo apesar de ser vadio e ter pelos espessos era, em muitos aspectos, preocupado com sua higiene (ainda que do ponto de vista das pulgas não parecia). A vaga noção de ter um vômito de uma pulga em sua orelha não lhe dava prazer em continuar a se coçar.

- Muito bem. Não vomite, apenas, por favor, saia de meu ouvido.

- Obrigada Bingo. Desculpa, mas eu não posso.

- Por que não? Respondia o cão.

- Eu preciso de sua ajuda para encontrar minha família.

- Como é que é?

- A minha família. Eu me perdi dela. E preciso de sua ajuda para encontrar.

- E por que você precisa de mim? O que foi que te fiz?

- Eu vou te contar…

E a pulga começou a contar a sua história, desde o começo. Enquanto ela falava sobre a origem de sua família cigana, muitas coisas passaram pela cabeça do Bingo.

Como que poderia haver pulgas vivendo, brincando, se divertindo em suas costas? E além do mais, como elas faziam isso há milênios?

De todo esse novo universo de pulgas e ciganos que se expandia em sua mente, algo minúsculo lhe chamou a atenção: A frase “perdida da família”. E esse sentimento ele entendia muito bem.

Quando era um apenas um filhotinho e nem sequer pudera abrir os próprios olhos, ele fora separado de sua mãe, e colocado, junto aos seus cinco irmãos em uma caixa de papelão no final de uma rua sem saída.

E ali, naquele final de rua, os cãezinhos cresceram e aprenderam a cuidar um do outro.

Apesar de ser um lugar sem saída, feio, e, definitivamente sujo, era aconchegante porque não era solitário.

Com seus irmãos, havia brincadeiras. Suas brincadeiras incluíam morder as patas uns dos outros, às vezes as orelhas, e também latir para os pombos - que até hoje não entendem muito bem por que isso acontece! - e, de vez em quando, uivar para a Lua.

Ele adorava aquela vida.

Em um certo dia, enquanto dormiam na velha caixa de papelão a qual foram abandonados, diversas “patas sem pelos” (que entre nós, chamaremos de mãos de humanos) começou a pegar os seus irmãos.

Um a um, Bingo viu seus irmãos sendo levado e uma sensação de medo lhe atingiu.

Antes que a próxima “pata sem pelo” viesse ao seu encontro, ele fugiu. Correu o mais longe possível daquele lugar, sem jamais olhar para trás.

E fugindo daquele lugar, encontrou outra rua sem fim bem distante de onde estivera. Lá, ele ficou. E o dia se transformou em noite, e a noite em outro dia, e uma chuva veio, e a chuva foi, e depois disso tudo, tudo se repetiu por várias vezes até que Bingo entendeu que não adiantaria mais fugir; ele estava perdido e, pior, estava sozinho.

Isso foi há muito tempo, e nesse período, ele cresceu e virou um cão vadio de pelo espesso que, sem se dar conta, abrigava uma família de pulgas ciganas em si.

- Muito bem pulguinha. Eu vou te ajudar! Interrompeu Bingo antes mesmo que Ciga terminasse a sua história.

- Vai me ajudar? Perguntava toda emocionada a pulga.

- Vou sim!

- Buá!!!! A pulga chorava em voz alta.

- Que houve? Que aconteceu? Está tudo bem aí?

- Buá!!!! A pulga chorava, ainda mais, em voz alta.

- Fale comigo! Está tudo bem? Perguntava o cão.

- Sim, desculpe. É que eu fiquei emocionada. Achei que você não iria me ajudar e que jamais veria a minha família novamente.

- Ciga é seu nome, correto? Perguntava o cão.

- Sim…

- Ciga, ninguém merece ficar perdida da sua família. Nem mesmo as pulgas.

A pulga abriu um sorriso tão brilhante que ali, dentro do ouvido, conseguiu iluminar todo ambiente.

- Agora me conte, como posso ajudar? Perguntava o cão.

A pulga se recompôs. Suspirou um pouquinho e respondeu:

- É simples. Algumas horas atrás você se encontrou com um outro cachorro. E a minha família se mudou para lá.

- Outro cachorro? Bingo ficou se indagando.

- Sim, era um outro cachorro. Tinha mais pelo que você.

- Ah, lembrei. Você está falando do Rex.

- Rex? Perguntou a Ciga. Você o conhece?

- Sim, ele é meu amigo. De vez em quando a gente se encontra. Dividimos uma pizza estrada na rua de baixo.

- E pode me levar até ele?

- Claro. Sem problema.

A pulga pulava de felicidade dentro do Ouvido. Isso incomodava Bingo, que fazia uma grande luta interna para não se coçar e machucar Ciga.

- Mas só tem um problema. Alertava Bingo.

- O que foi?

- Se tudo o que me contou é verdade, nós não temos muito pouco tempo Ciga. Rex não é um cachorro vadio como eu. Ele tem humanos.

- Como que é?

- Sim, de vez em quando a gente se encontra, divide uma pizza estragada, mas ele sempre volta para o que ele chama de ‘família’.

- E o que isso significa?

- Significa que, se eu estiver certo, e você estiver certa, e hoje for realmente quinta-feira, temos que nos apressar.

- Por quê? O que há com a quinta-feira?

- Porque é o dia que ele vai tomar banho!

- E qual o problema disso?

- Nós chamamos de banho, pulguinha, mas vocês chamam de ‘Terrível-Era-da-Espuma-Branca’!

- Aí minha santa pulga! Nós temos que correr!

- Segura-se em algum lugar pulguinha, nós vamos encontrar sua família.  

Capítulo VII – O Resgate

Em algum ponto dessa história – na verdade a alguns capítulos atrás - um bando de pulgas havia se reunido na região das Costas de um cachorro não tão selvagem e devidamente abandonado para traçar um plano de resgate que agora estava em curso.

O plano, como bem sabem, era o seguinte: Desviariam a atenção do tal cachorro com uma miragem de salsicha temperada e, controlando a sua direção, voltariam algumas patas de distância para um outro cão (também abandonado, mas que agora sabemos se tratar de Bingo), onde poderiam fazer uma travessia invertida para resgatar seu ente perdido, a pulga Ciga.

O que essas pulgas não sabiam era que: A) a miragem da salsicha temperada não funciona, e B) este não era um cão nem tão selvagem, nem tão vadio, e muito menos devidamente abandonado.

Era exatamente o contrário.

Pelo que se lembra, Rex sempre teve família. Ele era o contrário do Bingo. Tinha mais pelo, era mais limpo, e tinha uma família. Além disso, Rex tinha uma rotina.

Aos sábados, ele passeava com os seus humanos, sempre os guiando para onde os postes da rua levavam. Nos domingos, praticava o exercício de latir para lugar algum. Nas segundas-feiras, dormia o dia inteiro. Às terças-feiras, perseguia os gatos da vizinhança. Nas quartas-feiras, remarcava territórios já marcados. E nas quintas-feiras, ia tomar banho.

Sim, as quintas-feiras eram terríveis para ele também.

As pulgas não sabiam disso.

Quando deram por conta de que a salsicha temperada não estava dando certo, primeiro culparam o Pablo, o ilusionista da família.

- Como que tu me vens com essa ideia e não sabia que não funcionava em cachorros? Perguntava o pai ao filho.

- Ora pai. Funcionou muito bem no Arlindo esses dias atrás. Respondeu Pablo.

- Mas Arlindo é teu irmão!

- Pois é, por isso achei que iria funcionar!

- Santa pulgacita!!!

Depois de perceberem que não adiantaria reclamar com Pablo, a família sentiu-se aflita.

Como poderiam resgatar a filha perdida? O que os Cshigacnos não podiam imaginar era que, na verdade, a própria Ciga estava correndo contra o mundo para salva-los. E não estava sozinha.

- Falta muito Bingo? Perguntava Ciga enquanto se segurava nos pelos do Ouvido do cão.

- Já estamos chegando, é só virar aquela esquina ali.

A velocidade que estavam correndo justificava toda sensação de adrenalina que a jovem pulga estava sentido, e junto dessa sensação, medo e preocupação. Afinal, se ela soltasse os pelos será que sairia voando? Era bom não arriscar.

No momento em que viraram a esquina mencionada, Bingo viu uma viatura grande e branca que estava parada em frente a casa de Rex. Ele viu também que humanos estavam levando o Rex numa gaiolinha para dentro da viatura.

- Essa não! Gritou Bingo.

- O que foi?

- Chegamos tarde! Eles estão levando o Rex para o banho!

- E agora? O que faremos?

- Não se preocupe pulguinha. Vamos resgatar sua família!

E saíram em disparada atrás da viatura.

Isso era uma boa especialidade de Bingo. Ao longo do tempo, ele se aperfeiçoou na arte de perseguir carro. Sabia atalhos, técnicas, táticas e inclusive dava palestras na sarjeta para outros cães de rua de como perseguir um carro sem ser atropelado. Ele era muito popular nesse assunto.

Esta é uma sequência de ação. E pulando os detalhes que a prescrevem, chegamos ação dentro da viatura. Onde a família Cshigacnos via tudo ao seu redor escurecer.

Uma vez que estavam dentro do carro, e não havia luz naquele veículo. É normal supor que as pulgas ali pensassem que era noite. E que a noite veio rápido demais.

- Mulher tenho um mal pressentimento sobre isso! Dizia o velho Tião para sua esposa.

- Você sempre tem um mal pressentimento para qualquer coisa. Respondia vovó Romana.

- Ah vê se me escuta. O dia escureceu muito cedo! Isso é um mal sinal!

- Mal sinal é deixar aquela pobre pulga perdida em algum canto qualquer. Isso nunca aconteceu com os Cshigacnos. Como vamos superar isso?

- Oras, você é a cartomante da família. O que as cartas lhe dizem?

- Que vamos encontrá-la novamente. E você que fala com fantasmas, o que eles lhe dizem?

- Que alguém esqueceu a frigideira na geladeira.

- O que?

- Esses velhos nunca dizem coisas com sentido.

- Santa pulgacita!

- Olha mulher! Está amanhecendo!

- Mas já?

Sim, a viatura havia chegado ao seu destino. E ao abrir a porta para tirar o Rex de dentro, a luz do dia havia alcançado e penetrado os pelos do cachorro fazendo com que diversas pulgas que estavam dormindo, acordassem e se espantassem com o que se seguiu.

Capítulo VIII – A Terrível-Era-da-Espuma-Branca

Era um lugar frio e revestido de cor branca por todo ambiente. Também havia diversos outros cães ao redor. Todos chorando, latindo e alguns até se mordendo. Havia um monte de outras coisas que nenhuma pulga entendia muito bem o que era, mas além dos Cshigacnos não havia nenhuma outra pulga naquele lugar para tirarem suas dúvidas.

Diversos cães. Nenhuma pulga.

O medo se instalou no coração de cada um dos Cshigacnos, mas foi só depois que o velho Tião, perdido em seus olhares, disse em alto e bom som as palavras: É O DIA DA TERRÍVEL ESPUMA BRANCA!!!! Que todas as pulgas se entregaram a loucura.

Hurinha e Cocceirinha já não faziam mais graça, Pyro não se equilibrava em mais nada, as cartas de Magoli se embaralhavam e não mostravam nada com nada. Os fantasmas do Tião fugiram correndo e Quaselito e Rilda se abraçavam em meio aquele caos.

Do lado de fora deste cenário Bingo e Ciga ficavam encarando uma estranha porta de vidro que abria e fechava sem ser cutucada.

- O que vamos fazer Bingo? – Perguntava a pulguinha.

- O plano é o seguinte! – Cochichava o cachorro. – Acho que essa porta abre quando a gente se aproxima dela e fecha quando a gente se afasta dela. Vamos testar.

E assim o cachorro começou a adentrar o ambiente e ficou bastante surpreso quando conseguiu entrar.

- Ai que bom, pulguinha! Deu certo. – Agora, se tivermos sorte, nós vamos encontrar o Rex e você vai pular para dentro dele e de lá, vai trazer sua família para cá e ninguém vai nos perceber.

A sorte era uma coisa que Ciga entendia muito bem. Tinha vários membros na família que viviam falando desse troço. E todos tinham o mesmo consenso, desde que um Cshigacnos existe, a sorte lhe acompanha.

No entanto, naquele dia específico, a sorte decidiu visitar sua prima distante e o azar tomou conta da situação. Os humanos notaram o Bingo, e na tentativa de pega-lo, um alvoroço se instalou.

Bingo correia se atrapalhava pelos corredores, cães se soltavam da coleira e mordiam os humanos, e no meio daquela confusão, Rex notou o Bingo!

- Bingo! Gritava Rex! Aqui!

- Encontramos pequenina! Encontramos o Rex! Falava Bingo para Ciga, enquanto corria em direção ao Rex. - Preste atenção pulguinha. Quando chegarmos lá, você não vai ter muito tempo! Pula direto para ele e traga sua família para cá.

- Certo! Respondia com determinação Ciga.

Bingo escapava de um, de dois, de três humanos que sempre se atrapalhavam na hora de pegá-lo e, por fim, conseguiu encontrar o Rex numa mesa de banho.

- O que você está fazendo aqui, amigão? Perguntava Rex, balançando o rabinho com muita felicidade.

- Rex, é muita coisa para você processar no momento, mas preciso encostar em você o mais rápido possível! Respondia Bingo.

- Encostar? Eu não sei o que está acontecendo, mas vamos lá!

- Agora é sua vez Ciga! Vá encontrar sua família! Gritou Bingo enquanto Rex se encostava nele.

E ali, naquele caos de cães que acabam de tomar banho e dos que iriam tomar, uma conjunção canina nada ortodoxa aconteceu e a pulga Ciga fez o que nenhuma pulga antes dela havia feito até então, a travessia contraria. O retorno a família.

- Mãe! Pai – Gritava a jovem pulga desde o momento em que aterrissou no corpo do Rex.

Ciga havia migrado pela região das Cabeça, pois é onde a conjunção canina havia acontecido. E de lá caminhou para as Costas para encontrar sua família.

A família toda estava alojada perto da região das Caudas. Onde imaginou-se estarem mais seguras. Quando Ciga os encontrou, muitas emoções aconteceram!

- Você nos deu um baita susto! Dizia a vovó Romana.

- Desculpa vovó. Respondia a Pulga.

A pulga sorria. Olhou para a mãe e para o pai e falou.

- Eu senti saudade. Desculpa por ter ficado, eu só não queria me mudar. Queria ficar aqui onde é nossa casa.

- Ora Ciga. Você entendeu tudo errado. Nossa casa não é onde estamos, é com quem estamos. Respondeu a mãe.

Ciga então limpou as lágrimas, tomou uma coragem inédita para ela, olhou para cada membro da sua família e falou.

- Mãe, pai... pessoal! Nós temos que fugir daqui!

- Mas como vamos fazer isso Ciga. É tarde demais! A Terrível-Era-da-Espuma-Branca chegou! Dizia o vô assustado.

- Não vô! Enquanto estivermos juntos, nós vamos escapar! Respondia a jovem pulga.

- Mas como? Perguntou a mãe!

- Nós somos os Cshigacnos e os que os Cshigacnos são especialistas? Olhou para cada pulga ao seu redor, notando que os olhos estavam começando a brilhar – Nós somos especialistas em mudanças!

Todas as pulgas começaram a sorrir um pouco.

- E para nossa sorte! Neste exato momento, está acontecendo uma conjunção canina! Dizia com confiança a jovem pulga. – É hora da mudança pessoal! Brandou com toda força de seu coração e todas as pulgas ao seu redor começaram a pular de alegria.

A mãe orgulhosa da coragem da filha, disse então em voz alta.

- Atenção pessoal, sigam a Ciga, cigana!

E todos seguiram com amor em seus corações.

E foi uma correria para voltar a região da Cabeça e fazer a travessia, mas dessa vez, nada de desmontar picadeiro, nada de arrumar mala, a viagem tinha apenas um proposito, não se desgrudar da família.

Quando enfim todas as pulgas conseguiram se alojar novamente no Bingo, Ciga foi até a região do Ouvido e falou com o cachorro.

- Bingo, estamos todos aqui!

O cachorro sorriu para si mesmo.

- Rex foi ótimo conversar com você, mas tenho que ir. Falou Bingo em direção ao amigo canino.

- Mas já? Depois você me conta mais dessa coisa de conjunção canina e pulgas circenses.

- Pode deixar! Bingo olhou em direção a porta de saída, viu aquele amontoado de humanos caídos ao chão, lidando com outros cães ainda mais aglutinado que os humanos e começou a correr para fora daquele ambiente.

- Pulguinha, pede sua família para se segurar! Nós vamos escapar agora!

Pula um recinto, dobra um corredor, escapa de um humano, adentra a porta e ponto! Bingo escapou!

Dentro de seus pelos uma família de pulgas ciganas gritava de felicidade!

Capítulo IX – O Grand’Finale

É um fato interessante de notar que aquilo que mais procuramos está geralmente dentro de nós mesmos. Por exemplo, Bingo passou a vida procurando uma família, alguém para brincar, rir e chorar junto. E nunca imaginou que dentro de seus pelos, mais precisamente na região das Costas, havia uma família.

A família, contudo, sempre buscou um lugar para estar, sem perceber, é claro, que onde estavam já era um lar desde sempre.

Também é óbvio que essa não era uma família qualquer. Eram os Cshigacnos conhecidos por seus mágicos espetáculos "pulgacíticos" que, diziam eles, surpreendiam até mesmo os maltrapilhos carrapatos. Eles eram famosos e numerosos, e sobretudo, especiais.

Cada pulga tinha uma habilidade. Por exemplo, Dona Romana, a vovó pulga, podia ler a sorte de qualquer outra pulga, Rilda, a matriarca, tinha habilidade de prever o exato destino de qualquer um pelos próximos exatos vinte segundos. Tião, conversava com fantasmas (apesar destes não terem muita coisa útil a dizer), e Quaselito, o patriarca, era um mestre malabarista, capaz de equilibrar em suas antenas todos os seus 51 filhos. No entanto, uma pulga se destacava dos demais. Não porque podia ficar invisível, mas porque podia unir a família toda. E o nome dela é Ciga.

Ciga entendeu o lema da família: Não atar nem desatar, apenas mudar! E ela mudou! E para sempre será agora conhecida como Ciga, a pulga cigana!

Fim

Personagens

Dona Romana, a vovó pulga.

Tião, o vovô pulga

Rilda, a matriarca.

Quaselito, o patriarca.

Ciga, a pulga. 

Sobre os autores

Maycon Cypriano Batestin é autor dos livros Desventuras Poéticas e Canções Não Cantadas, ambos lançados pela editora Biblioteca 24x7. Contudo, em suas horas de folga, ele é um Tardígrado escrevendo uma biografia sobre sua incrível capacidade pulmonar de respirar metais pesados.

Cristiane Rodrigues da Silva. Ilustradora do livro HISTÓRIAS DA TIA CELESTINA da editora All Print. Contudo, em muitas ocasiões da vida, é um girassol que dança toda vez que o dia nasce.

Maycon Cypriano Batestin e Cristiane Rodrigues da Silva
Enviado por Maycon Cypriano Batestin em 22/09/2023
Código do texto: T7891414
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