Preta

A vida é tão bela quanto uma noite escura estrelada. Ah, como Preta amava aquele manto negro no céu sem fim! Deitava-se de barriga para cima com as patinhas esticadas.

- Mamãe, como a noite é linda, pretinha, pretinha igual a mim!

Pintada, a mamãe onça, lambia a Preta, deixando seu pelo brilhoso.

- Um dia, filha, você será a rainha desta mata, minha linda princesa.

Preta já se sentia rainha, porque vivia num mundo maravilhoso. No escuro do céu, via a própria beleza. Já era rainha, tinha certeza.

A curiosidade de Preta era do tamanho de sua alegria. E brincando de conhecer o mundo acabou indo aonde não devia. Chegou perto demais de uma fazenda, já quase saindo do Pantanal. Os homens a capturaram. Viram lucro naquele belo animal.

Preta tentou se defender, mas era muito pequenina para isso. Foi amarrada e em uma caminhonete, transportada. Pela primeira vez, sentiu medo. E chorou por causa disso. Ficou desesperada por não saber para onde era levada.

Quando chegou à fazenda, a oncinha estava muito assustada. Olhava ao redor com as grandes pupilas negras dilatadas. A bicharada se aglomerou para observar a pequena forasteira. Admirados, tagarelavam todos juntos numa grande barulheira.

Antes, Preta respirava liberdade. Agora, uma jaula era seu mundo. Mas não ficava sozinha. As visitas não pararam um segundo. A oncinha, mesmo triste, conversava e brincava com outros filhotes. Os pequenos queriam ajudá-la a escapar, mas não eram tão fortes.

No entanto, havia um bicho que não gostou nadinha da novidade. Era o Ardiloso, um gato angorá trazido há algum tempo da cidade. Peludo, com um olho azul e o outro mel, o gato era a grande atração. Agora, ficava de lado, porque a oncinha recebia mais atenção.

O gato planejou um jeito de deixar a onça-preta pra baixo, mal de verdade. Começou a falar com um e outro, buscando aliados para seu plano de maldade. Teve pouco sucesso, porque todos admiravam a onça e seu pelo negro lindo.

- Apreciam demais essa onça! Mas já sei o que fazer – pensou o gato, sorrindo.

Ardiloso e seus poucos aliados decidiram, então, agir assim: tentaram convencer a todos de que tudo que é preto é ruim. Queriam tornar motivo de dor o que a oncinha mais amava: a sua cor. Sabe-se lá por que razão, mais e mais bichos viram nisso uma diversão.

Certo dia, caiu de uma árvore um ninho de graveto, que estava mal feito. Um pato grasnou deste jeito:

- Quá, quá, isso é serviço de preto! Veio uma seca e faltou comida em toda a região.

- A coisa tá preta! – cocoricou um galo sobre tal situação.

- Iiiirrrrí! Você tá na minha lista negra! – um cavalo relinchou.

O cavalo brigava com uma vaca. No mesmo tom, a vaca avisou:

- Ah, é? Múúúú! Então, você tá na minha lista negra também.

- Mas foi você que denegriu minha imagem. Eu sei muito bem!

Os bichos aprendiam essas palavras e expressões com o gato. Ele ouvia isso tudo das pessoas, com as quais tinha muito contato. E de tanto, de tanto repetirem que o preto é uma cor ruim, muitos bichos passaram a acreditar que era assim porque sim.

Preta foi ficando cada vez mais isolada e sentia muita tristeza. Não entendia o porquê da maldade se no mundo há tanta beleza. Tudo é muito lindo. Por que os bichos queriam enfear a vida? Apesar da dor, tinha grande força e não se dava por vencida.

A oncinha se alimentava do céu escuro que morava dentro dela. À noite, deitava-se em sua jaula e o universo lhe sorria boas-vindas. Sentia-se parte do infinito. Era o que era. Era negra. Era bela. As estrelas eram suas pintas cobertas da pele do céu. Era linda.

Em seus sonhos, Preta via sua mãe e se sentia protegida e amada. Fortalecida, entendeu que as palavras eram apenas isso: palavras.

- Acredita mesmo no que está dizendo? – perguntava Preta à bicharada.

A simples pergunta confundia, muitas vezes, quem a discriminava.

Sempre que possível, Preta convidava algum bicho para olhar o céu escuro. No início, só os filhotes fizeram isso e, estranhamente, sentiram-se mais puros. A oncinha suspirava:

- Vejam como a noite é linda! É uma beleza negra e sem fim.

Curiosos, outros bichos quiseram saber o que havia no céu de tão diferente assim.

Com o tempo, a beleza noturna do céu deixava mais e mais bichos interessados. Admiravam a escuridão estrelada e chegavam a ver lá no alto os seus antepassados. Aos poucos, abriram os olhos e viram a beleza negra lá no céu e aqui na terra. Não havia mais sentido forçar palavras para enfear o que a natureza fez bela.

A bicharada admirava o céu à noite e, de dia, via a noite na pequena felina. É como se a noite tivesse descido à terra e dado à onça sua celeste melanina.

- Ela é um pedaço da noite. É uma rainha! – diziam os bichos, encantados.

Com isso, Ardiloso foi perdendo aliados, o que o deixou muito chateado.

Durante esse tempo, a rainha Pintada procurava a filha em todo o Pantanal. Perguntando aqui e ali, conseguiu descobrir o paradeiro de Preta, afinal. Um dia, animais e homens se assustaram com um estrondo vindo da mata. Eram bravos felinos liderados por Pintada, que buscava sua filha amada.

Armados, os homens já iam atirar. Mas perceberam que o melhor era fugir. Onças, jaguatiricas e gatos do mato derrubaram a jaula e Preta pôde sair. Os bichos da fazenda ficaram estarrecidos com tanta força reunida. Pintada acarinhou Preta e as duas sorriam e pulavam, festejando a vida.

Vendo os bichos assustados e paralisados, a rainha Pintada perguntou assim:

- Então, bicharada, como vocês trataram minha filha? Foram bons ou foram ruins?

Os bichos, dos menores aos maiores, fizeram silêncio, com medo da própria voz. Preta, então, falou:

- Mãe, tá tudo bem. Antes, eram eles e eu. Agora, somos nós.

Com o clima mais leve, a oncinha se despediu de todos, mas faltava alguém ali. A pequena felina pediu:

- Mãe, preciso falar com alguém que não está aqui.

- Preta, é melhor não – negou a rainha, temerosa de perder a filha outra vez.

Como Preta insistiu, a mãe deixou, mas disse que iria junto. E assim o fez.

De longe, Preta viu Ardiloso próximo de um lago. Parecia estar conversando sozinho. Na verdade, ele olhava seu reflexo na água e nem notou que Preta estava ali, pertinho.

- Como ela é linda! E isso é revoltante! – reclamava Ardiloso para a própria imagem.

Preta se aproximou mais para falar com o gato e lhe dar um pouco de coragem.

- Você aqui!? – miou Ardiloso assustado, com os pelos eriçados e dentes ferinos.

- Calma! Só quero me despedir – disse Preta, serena e com toda sinceridade.

Tempo depois, o gato branco e a onça preta eram, nas diferenças, só dois felinos. E Pintada, atenta a tudo, estava certa de que ali nascia uma forte amizade.

- Sinto muito, Preta. Eu fui muito mau com você – desculpou-se o Ardiloso.

- Mau comigo e com você – disse a onça. E lambeu o gato num gesto carinhoso.

No espelho do lago, gato e onça, céu e terra se abraçavam numa plural unidade. O mundo bailava cores na água. E o preto e o branco completavam a diversidade.

FIM

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 04/06/2023
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