Decelei, no pé do Rei

Todo mundo teve sua infância, eu sei, mas com decelei, celei, passei, ao menos nos

sonhos de cantiga de roda, a gente sentia estar perto do rei. E não era o da jovem

guarda, pois ele provavelmente ainda refinava sua voz em algum coro de Cachoeiro. E

tampouco era o do futebol, que não terá tido tempo de dar bola pra cantiga de rua, tão

prematura que foi sua ascensão aos templos do mais apaixonante esporte do mundo.

Menos para os americanos, claro.

Decelei era uma brincadeira, com cantoria, de que os meninos já de uma certa

idade não mais se envolviam, metidos que estavam em fases mais avançadas de

sua irrequieta puberdade. E já achavam aquela brincadeira meio maricas. Mas os

menores, que ganhavam licença impoética para entrarem na liça se se comportassem,

fascinavam-se com a chance de se mesclar com as meninas, dar-lhes as mãos,

formarem arcos que se interpenetravam e reviraram rua afora, numa evolução digna

de um carnaval sem limites à imaginação.

E às vezes, de raspão, em meio à confusão, algum bom encontrão, não fazia mal

não. Tudo era levado em brincadeira, só a fantasia era verdadeira. Até que os pais

anunciassem o toque de recolher, chamando a meninada para o berço, que requeria ao

menos lavar dentes e pés, ou o terço, que exigia fé, pelo menos pra quem já não fosse de berço...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 05/01/2022
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