A Verdadeira Máquina do Tempo

Férias! Sair em férias é sempre bom, melhor ainda quando se tem dez anos e a fazenda de um parente para passear. Foi assim que tudo aconteceu. Logo no início do ano fui para a "Laredo", fazenda que pertencia ao tio Luiz e ficava lá pelos lados de Ribeirão Preto. Janeiro começou quente e eu me deliciava com os banhos no rio, depois ficava secando o corpo sob o sol forte. Durante a tarde, me empanturrava de mangas coquinho. Quando sobrava tempo o tio Luiz me levava para pescar e o balaio voltava cheio de lambaris. Que saudade, naquele tempo os rios ainda eram limpos e a água era potável.

Ao contrário do que costumava fazer nas temporadas de escola, lá na Laredo eu acordava cedo, não tinha preguiça. Com a caneca de alumínio na mão, eu rumava para o curral e logo estava tomando o leite morno, ordenhado pelo Chico Preto. Depois ia brincar de índio com os filhos dos colonos, mais tarde mergulhava no límpido rio!

Só uma coisa me intrigava lá na fazenda: era um barulho estranho que só eu conseguia ouvir. Bastava descer lá para os lados das paineiras e o barulho começava: tup tup, tup tup,.... Às vezes o Clodoaldo, meu primo, me acompanhava, então eu perguntava:

- Que barulho é esse, Clodoaldo?

- Barulho? Não estou ouvindo nenhum barulho.

- Como não? Pare e ouça, parece um fordeco velho

- Não tô ouvindo nada, você é quem está com barulho na cabeça. Só ouço os passarinhos cantando.

Cheguei a pensar que era gozação do Clodoaldo, mas o mesmo aconteceu com o Zé da Pipa e com o próprio Chico Preto. Ninguém ouvia nada! Uma tarde acompanhei o tio Luiz enquanto ele juntava o gado. Quando chegamos perto das paineiras, voltei a ouvir o barulho e fiz a mesma pergunta:

- Que barulho é esse, tio?

- Barulho? Deve ser mugido de alguma vaca desgarrada.

- Não, não é mugido de vaca, estou falando de um barulho que parece ser de motor. O senhor não está ouvindo?

- Deve ser o som do "tempo", - falou enquanto se embrenhava na capoeira.

A explicação não me convenceu. A partir de então, resolvi que descobriria a origem de tal barulho a qualquer custo. No dia seguinte acordei cedo, como sempre fazia, tomei umas três canecas de leite e comi uns bons pedaços de broa de milho que tia Hemínia tinha acabado de assar. Decidido, rumei sozinho lá para os lados das paineiras.

- Tup tup, tup tup, tup tup, .......

Lá estava de novo o tal barulho! Acompanhando o som fui seguindo para o sul, atravessei a capoeira, depois o pequeno riacho, subi o morro da Criola, lugar do qual até então eu só tinha ouvido falar. Enquanto eu subia o som foi ficando mais forte:

- TUP TUP, TUP TUP, TUP TUP,.......

Eu estava ofegante, um pouco por causa da subida, e outro tanto pela expectativa de finalmente descobrir a origem de tal barulho. De repente, atrás das árvores, avistei um barraco de madeira. O som vinha de lá, mas não havia nenhum vestígio de fumaça do tal motor. Fui chegando perto, eu já não sabia se o som era do motor ou do meu coração. Na parte da frente do casebre tinha uma pequena varanda, mas logo percebi que o barulho vinha dos fundos. Me aproximei à moda do pessoal da região:

- Ô de casa, posso entrar? - gritei

Nenhuma resposta, a não ser o tal barulho. Fui então rodeando o barraco e logo enxerguei um pequeno galpão, o qual abrigava uma máquina esquisita, com muitos relógios, mas não esses que marcam horas. Possuía também muitas alavancas ao lado dos mostradores, mas ninguém por perto. Gritei novamente:

- Ô de casa, tem alguém ai?

Diante do silêncio, só quebrado pelo som da máquina estranha, me aproximei ainda mais. Olhei para um dos tais "relógios". Parecia ser uma bússola, tinha estampado no mostrador os pontos cardeais e um ponteiro, ao lado tinha uma alavanca. Vi um outro relógio, este marcava horas. À sua direita, um que parecia ser um termômetro cuja escala ia de -100 até +100. Pouco a pouco, fui vendo um por um dos tais instrumentos; num estava escrito "vento", num outro "chuva". No cabo de uma das alavancas lia a palavra "sol", numa outra "lua"; mais a frente um outro relógio que marcava os meses do ano. Me detive diante da tal máquina, eu não entendia nada, minha curiosidade era muito grande. Com medo de levar um choque ou de queimar a mão, relei levemente no cabo da alavanca do "sol". Não sentindo nada de anormal, agarrei-a firmemente com a mão direita. Quando me preparava para movimentá-la, um homem de cabelos brancos levantou-se de trás da tal engenhoca, deixando-me assustado:

- Você está com calor?

- Não! Desculpe! Eu só .... estava olhando!

- Pode olhar, rapaz, daqui a pouco eu explico o funcionamento. Agora, por favor, me passe a chave de fenda. Não consigo regular o sol.

Ainda assustado, entreguei a chave de fenda. Embora tivesse cabelos brancos, o tal homem parecia bastante forte. Permaneci em silêncio enquanto ele voltou a entrar debaixo da máquina. Minutos depois ele se levantou e veio em minha direção falando coisas que a princípio eu nada entendi:

- Ah! Agora sim! Parece que consegui regular o sol!

- Regular o sol? - perguntei

- Isso mesmo, não são nem dez horas da manhã e a temperatura já estava chegando a trinta graus! Imagine se eu não fizesse a regulagem, ao meio dia ninguém iria agüentar o calor!

- O senhor é quem regula o sol? - perguntei achando que o homem estava brincando comigo.

- Claro! Faço isso há muito tempo, bem antes do bisavô do seu tataravô nascer. Aliás muito tempo antes disso!

- Quem é o senhor?

- Ah! Desculpe, esqueci de me apresentar, meu nome é Pedro. Qual é o seu?

- Ricardo.

- Muito prazer Ricardo. Se você quiser, pode chamar-me de "Tempo"!

- Tempo?

- Sim esse é o meu apelido por causa da máquina.

- O que faz a máquina? - perguntei

- Ora! É a máquina da dona Natureza!

- Dona Natureza? Nunca ouvi falar dela aqui na Laredo.

- É pode ser! - exclamou. Quase ninguém mais dá atenção a ela! Penso que é por isso que ela está tão doente eu tenho cada vez mais trabalho para regular essa máquina!

- A dona Natureza está doente? Perguntei pensando tratar-se de uma pessoa idosa.

- Muito, rapaz, muito! A fumaça irrita seus olhos e lhe causa bronquite, a derrubada de árvores lhe causa eczema na pele, a poluição dos rios lhe tira o apetite, e os ruídos a estão deixando completamente surda. Tudo isso sem contar com o mal provocado por acidentes nucleares, etc, etc, etc......

Não me contendo diante de tanta confusão, resolvi pedir ao tal homem que me explicasse tudo aquilo:

- Desculpe, senhor Pedro, digo senhor Tempo, não entendi nada do que disse.

- Eu explico, Ricardo, eu explico. Como eu disse antes, essa máquina pertence à Dona Natureza, proprietária de tudo o que os seus olhos podem ver....

- Até da Laredo ela é dona? - perguntei indignado, pois eu tinha a certeza de que a fazenda era do tio Luiz.

- Da Laredo e de todas as outras fazendas do mundo, das montanhas, das matas, dos vulcões, dos rios, dos oceanos, de todo o ecossistema.

- Eco.... o quê?

- Ecossistema, o conjunto de relacionamentos mútuos entre a flora, a fauna e os microorganismos.....

- Ah! entendi!

Pensando tratar-se de história de um velho maluco, continuei a ouvi-lo:

- A dona Natureza construiu esta velha máquina. No princípio ela funcionava automaticamente, não precisava de ninguém para operá-la; mas, aos poucos a poluição foi desrregulando os instrumentos e então eu fui contratado para tomar conta dela. Desde então eu não tenho mais sossego, ora eu não consigo mandar chuva para o Norte, ora é a engrenagem do vento que emperra na velocidade máxima, tudo por causa do desequilíbrio do ecossistema. Para dizer a verdade, as únicas coisas que funcionam direito, são as alavancas do dia, da noite e dos meses do ano, apesar do meu erro.

- Erro?

- Sim, nunca fui muito bom em aritmética. Quando Dona Natureza me ordenou que fizesse a divisão dos dias entre os meses do ano, me atrapalhei todo. Comecei dividindo os 365 dias por 12, mas sobraram 5 dias e 6 horas. Distribuí esses 5 dias através de um sorteio mas, aí aconteceu a briga. O Rei Júlio, dono do mês de Julho, não foi sorteado, veio tirar satisfações e acabei cedendo; logo depois foi o Rei Augusto, vizinho do Rei Júlio e dono do mês de Agosto; acabei cedendo também, pois fui convencido que, aumentando um dia em seu mês, o inverno seria menor no hemisfério Norte. Depois de tudo acertado refiz as contas e aí percebi que o mês de Fevereiro, pertencente ao Rei Momo, estava só com 28 dias. Fiquei preocupado, pensando que o Rei ia ficar furioso mas, qual nada! Ele é muito brincalhão, aceitou ficar apenas com 28 dias, impondo apenas uma condição, queria as seis horas restantes. Para diminuir a confusão, depois de aceitar sua condição, combinamos que a cada 4 anos eu lhe daria um dia a mais.

- Então é o senhor que controla tudo?

- Eu tento, rapaz, eu tento! Mas está cada vez mais difícil. Antigamente, a Natureza me ajudava muito, mas depois que ficou doente está quase impossível controlar as coisas. Os homens derrubam as árvores, deixam os campos parecendo um deserto, ai ficam reclamando por chuva. Eu aciono a alavanca de chuva, e pronto! Lá vem reclamação; sem vegetação, a chuva carrega a terra para o leito dos rios e estes ficam entupidos, acabam alagando tudo! Outra hora é a poluição do ar que acaba emperrando o instrumento de temperatura e todo mundo reclama de calor. Confesso que estou desanimado! É trabalho demais para mim. Fico preocupado com a doença da Natureza.... Ôpa! É hora de acionar a alavanca do sol, já e quase meio dia. Você quer aprender como se faz?

- Quero sim, senhor tempo.

- Então venha cá. - falou dirigindo-se para perto da máquina. Vou deixar você fazer a mudança de ângulo do sol. Abaixe a alavanca até o número doze. Bem devagar.

Ainda não dando muito crédito ao que o homem havia dito, segurei firme na alavanca e com movimentos suaves eu a movi em direção ao número doze. Foi incrível! A cada centímetro que eu movia a alavanca, o sol foi ficando mais forte e instantes depois formava um ângulo de 90 graus com a terra.

- Então é verdade!- exclamei.

- Claro, Ricardo! Pegue a minha agenda, vamos fazer as tarefas encomendadas por dona Natureza. Você quer me ajudar?

- Quero sim!

- Muito bem, vejamos....Gire o botão do relógio dos pontos cardeais para que o ponteiro marque "Nordeste".

- Já girei - respondi

- Muito bem, precisamos mandar chuva, acione a alavanca de chuva bem devagar.

Fui subindo a alavanca bem devagar, mas de repente ela parecia estar emperrada. Coloquei mais força, mas ela não se mexeu. Segurei-a com as duas mãos e joguei todo o peso de meu corpo. Subitamente, a alavanca foi até o fim do curso, de uma só vez. O senhor Tempo percebeu o acidente e logo correu para me socorrer:

- Me ajude voltar a alavanca, Ricardo. Ela está emperrada, acabamos de provocar uma tempestade, ao invés de chuva.

- Desculpe! Não foi minha intenção!

- Tudo bem, rapaz, a culpa não é sua, a alavanca está emperrada por causa da poluição que os homens fazem.

Logo depois a alavanca voltou para a posição certa e pouco a pouco fui aprendendo a lidar com a máquina. O dia foi passando e vendo o que o senhor Tempo tinha tanto trabalho, me propus vir ajudá-lo todos os dias, enquanto estivesse de férias mas, ele falou-me;

- Sabe, rapaz, o que quero mesmo, é que você cresça e respeite a dona Natureza. Só assim você pode ajudar-me de verdade. Faça o que puder pela Natureza, ela merece.

- Senhor Tempo, porque só eu ouço o barulho da máquina?

- Poucos têm a sua sensibilidade e só os sensíveis conseguem ouvir a Natureza. Fique feliz por isso, rapaz!

Quando dei por mim, o anoitecer já se aproximava, fiquei preocupado com a caminhada de volta por causa da escuridão. O senhor Tempo percebeu, e logo tranqüilizou-me:

- Você está preocupado com sua volta, eu sei. Mas fique tranqüilo! Eu vou deixar a alavanca do sol nesta posição até você chegar em casa.

- Posso voltar amanhã?

- Talvez eu não esteja mais aqui. Faça o que lhe pedi, respeite e divulgue o respeito que se deve ter para com a Natureza. Isto será fundamental no futuro.

Fui caminhando apressadamente para a sede da fazenda, andei por uns quarenta minutos, já era tarde. Quando coloquei meus pés na varanda da casa, o sol se apagou, mas antes deu uma espécie de piscada para mim. Até hoje não havia contado a ninguém meu segredo, mas respeito e peço que todos respeitem Dona Natureza. Muito tempo se passou desde aquele dia, a poluição aumentou muito, fico a imaginar quanto trabalho deve estar tendo o senhor Tempo com a máquina. Como estará a saúde de Dona Natureza?

Agora que você já sabe o meu segredo, ajude a recuperar a saúde de Dona Natureza e, se qualquer dia desses você se encontrar com o senhor Tempo, dê lembranças minhas.

Laerte Russini
Enviado por Laerte Russini em 28/10/2007
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