O PINTOR DE GATOS

O PINTOR DE GATOS &+

Sobre conto em prosa atribuído a Lafcadio Hearn, traduzido do italiano e versificado por William Lagos – 13/5/2019

O PINTOR DE GATOS I – rabisco a 10 de maio de 2019

Em uma pequena aldeia do Japão

Vivia uma pobre família camponesa;

Eram felizes, a despeito da pobreza,

Com alegria e paz no coração.

O problema é que eram numerosos:

Quatorze filhos tinham no total;

No Japão ter muitos filhos não faz mal,

Prestam ajuda, sem serem preguçosos.

Pois os mais velhos já no campo trabalhavam,

Firmes ao lado do laborioso pai

E cada menina mais velha também vai

Ajudar as menores – assim todos se apoiavam.

Mas o número quatorze era um menino

De ossatura muito fina e delicada;

Não poderia na lavoura fazer nada,

Salvo tocar, às vezes, algum sino,

Para espantar um faminto passarinho

Que viesse ali ciscar a sua semente

E se assustasse com o tanger frequente,

Provocado pela mão do garotinho.

Ele ficava numa pedra sentadinho

E não dormia, por mais sono que tivesse,

Para espantar qualquer pardal que aparecesse

Naquela parte do campo semeadinho...

Alguma vez, porém se distraía,

Quando no chão desenhava com o dedinho

A figura elegante de um gatinho

Que pela estrada passeando percebia...

Seus desenhos eram muito cuidadosos

E os mostrava em variadas posições,

Algumas vezes permeio a agitações,

De outras feitas em bocejos preguiçosos...

Era, de fato, muito mais inteligente

Que qualquer de seus irmãos, pois repetia

De forma exata quanto ao redor ouvia;

Tudo aprendia de forma permanente.

Contudo, do tanger de seu sininho

Se esquecia, no afã de desenhar,

Seus pais acharam ser melhor encaminhar

Para um trabalho bem menos mesquinho.

“É muito esperto, mas tem pouca energia;

É só uma boca a mais em nossa mesa...”

Diziam os irmãos, sem mais delicadeza,

Para as tarefas do campo não servia...

“Ele só quer é fazer esses desenhos,

Um gato aqui, outro gato mais adiante!

Se desenhasse coisa mais interessante!

Para paisagens demonstrasse mais engenhos!”

O PINTOR DE GATOS II

“Caso fizesse, as poderíamos vender

E comprar alguma coisa, facilmente,

Ou se esboçasse fisionomia de gente...

Mas só gatos ele consegue perceber!

As meninas os achavam bonitinhos,

Os irmãos tendo apenas complacência,

Porém a mãe já perdera até a paciência,

Pois desenhava nas roupas com espinhos!

As paredes da casa já cobertas

Por gatos grandes, médios e pequenos;

Em cada canto ao redor de seus terrenos,

Faces de gatos na poeira descobertas!

Finalmente, combinaram de enviá-lo

Ao sacerdote de seu templo local,

Como aprendiz do são serviço divinal:

Talvez o padre dispusesse-se a aceitá-lo!

E de fato, após o ofício religioso,

Apresentaram o garoto ao sacerdote,

Muitas perguntas apresentou ao pequenote,

Que as respondeu com engenho cuidadoso.

“Fico com ele,” o sacerdote consentiu.

“Inicialmente, há de ajudar-me na limpeza,

Poeira de incenso varrerá com mais presteza

Do que a visão que já em parte me fugiu...”

De fato, ele aprendia facilmente:

Logo as funções de acólito assumia,

Mas de uma coisa não se desfazia,

Outros gatos a pintar constantemente.

Mesmo nos livros que deveria estudar,

Riscava gatos no menor cantinho,

Roupas que o padre lhe dera com carinho

Estavam cheias de gatos a pular!

Foi repreendido e parou de as macular,

Mas a seguir, nas paredes começou

E quando o sacerdote reclamou,

Foi restringir à poeira o seu pintar!

Desse modo, até deixava de estudar;

É bcm verdade que era um ótimo desenho,

Contudo o bonzo franzia sempre o cenho

Por todo o tempo que o via dissipar...

E o advertiu diversas vezes mais;

Com mais afinco estudava suas lições;

Gatos merecem certas devoções

Entre os nipônicos, que amam animais...

Mas, finalmente, o sacerdote descobriu

Vários desenhos de gatos lá no altar,

Um sacrilégio que não podia perdoar

E a contragosto ao pequeno despediu...

O PINTOR DE GATOS III

Comida deu-lhe e também algum dinheiro,

Porque ao garoto acabara se afeiçoando,

Não partiria com as mãos só abanando,

Mas um conselho deu-lhe, derradeiro:

“Meu caro filho, nunca durma à noite

Em um lugar aberto e muito vasto,

Busque lugar pequeno, limpo e casto

Ou sofrerá pior dano que um açoite!”

Pouco entendeu o menino esse conselho,

Porém não se atreveu a perguntar,

Por teimosia fora enfim desapontar

As expectativas gentis do pobre velho.

Deste modo, enrolou a sua trouxinha,

Poucas as roupas, menos os haveres;

Voltar à casa, fracassado em seus deveres

Nem sequer perpassou sua cabecinha.

Porém lembrava que na vizinha aldeia,

Muito maior que aquela onde vivia,

Imenso templo de fato ali existia,

Talvez mesmo o recebessem em sua ceia!

Grande número de monges ali havia;

Se qual noviço não o desejassem

Para outro ponto quiçá o encaminhassem:

Que eram bons há muito tempo ouvia!

Assim se despediu, com reverência,

Sem mencionar ao padre quais seus planos;

Só não sabia é que passados alguns anos

Um espírito de grã maledicência

Se introduzira no templo, com astúcia,

E com blandícia e até mesmo violência,

Ou pela tentação da incongruência

Forçara a fé dos montes em sua argúcia.

E assim, um a um, foram partindo,

Até expulsar dali até o abade,

Pedindo esmolas, sujeito à caridade,

Todos dispersos pelo mundo infindo!

A outra aldeia apresentava boa distância;

Quando chegou, todo o povo já dormia,

Ninguém informá-lo destarte poderia!

Buscou do templo a silhueta com constância...

Subiu o outeiro, duas milhas e até mais

E então notou que lá havia luz acesa:

Os monges irão receber-me, com certeza...

Seguiu em frente, cansado até demais...

Mas não sabia dos espíritos malvados:

Com seu gosto habitual por carne humana,

Acendiam dessas luzes a ímpia chama,

Forasteiros a assaltar, desavisados!

O PINTOR DE GATOS IV

Se o coitadinho chegasse ali de dia,

Teria sido alertado, certamente;

Um outro templo se construíra realmente

E alguns heróis para ali se chamaria...

Fortalecidos por muitas orações

E muito bem armados, natural,

Para enfrentar o cruel bando infernal,

Mas sem vitória em qualquer das ocasiões!

A maior parte morrera, simplesmente,

Outros fugiram, cheios de terror;

Um até mesmo endoidara de pavor:

Ficara o templo abandonado inteiramente!

Mas o menino não fazia ideia

E vendo o brilho fraco da luzinha

Até o alto da colina se avizinha,

Esperando acolhida para a ceia...

Não que de fato achasse-se esfaimado,

Pois seu mentor lhe dera um bom farnel,

Mas o guardaria, se nenhum quartel

Recebesse nesse templo demandado.

Bateu à porta, sem resposta ouvir;

Bateu de novo, porém nada escutou;

Timidamente, então, ele a empurrou:

Só encostada, fácil foi de abrir...

E lá brilhava, realmente, a lamparina,

Que uma certa claridade transmitia;

Teias de aranha e poeira porém via,

Acumuladas devido à triste sina!

Bem, pensou ele, para boa limpeza

Bem certamente me podem contratar!

Mas percebeu nas paredes e no altar

Mil superfícies alvas de clareza!...

E sem pensar duas vezes, viu no chão,

Ao redor da lamparina bruxuleante,

Vários pedaços de carvão – e, delirante,

Pintou cem gatos, sem qualquer moderação!

Finalmente desgastou seu entusiasmo

E varreu um quadrdinho em pleno chão,

Para deitar-se. Sem qualquer preocupação,

Já do sono vencido pelo pasmo!

Mas de súbito, sentiu um sobressalto

E recordou do conselho sobre o açoite:

Não dormir em lugar vasto qualquer noite!

Aquele templo era imenso em seu ressalto!

E sem saber ao certo o que fazia,

Encontrou uma capela lateral,

Abriu-lhe a porta, como era natural,

Lugar pequeno este sem dúvida seria...

O PINTOR DE GATOS V

Limpou o chão, demonstrando algum cuidado;

Não resistiu, e mais três gatos desenhou;

Da comida no farnel enfim lembrou

E comeu com parsimônia algum bocado.

Depois, fechou as portas devagar,

Acreditando ali estar seguro;

Acostumado estava com chão duro;

Dormiu depressa, sem maior preocupar.

Mas de repente, pela fresta da portinha,

Notou que se apagara a fraca luz;

Uma certa inquietação isso lhe induz:

Será que algo malvado se avizinha?

Mas de repente, escutou vasta gritaria:

Mil ganidos e rugidos ao redor!

Uma batalha se travava! Em seu terror,

Firmou a porta com toda a força que possuía!

E os sons continuaram, sem parar,

Até que enfim o vasto embate serenou...

Mas dominado pelo medo ainda ficou,

Não pode o sono de novo conciliar...

Só de manhã, percebendo a luz do sol

E o silêncio só quebrando os passarinhos,

A fresta abriu, alargando-se aos pouquinhos,

Talvez temendo que só fosse algum farol...

Pois luz vermelha parecia ali brilhar,

Mas percebeu que a luz era normal:

Estava o piso de encarnado inatural,

Poças de sangue tudo ali a avermelhar!

E no meio de tudo, havia um rato,

Imenso ser e até descomunal,

Com mil feridas, mesmo sobrenatural:

Era o espírito maligno de fato!

Saiu com todo o cuidado da capela,

Já a sola das sandálias em vermelho,

Agradecendo o conselho do bom velho,

Só de fitar, seu próprio sangue gela!

Se não tivesse o lugar pequeno achado

E fechado, com cuidado, sua portinha,

Bem protegido naquela capelinha,

Aquele rato o teria devorado!

Mas de que forma o monstro perecera?

Tinha mais de mil feridas no seu pelo!

Olhou ao redor, com o máximo de zelo:

Perigo havia que ali não percebera?

O que notou, para seu grande espanto,

Foram semblantes dos gatos desenhados,

De cada boca a correr, avermelhados,

Traços de sangue a luzir em rubro pranto!

EPÍLOGO

Num impulso, foi então tocar o sino

Que vira antes, junto à porta pendurado;

Após um tempo, chegou homem assustado:

Era o padre do novo templo pequenino!

E após ele, foi chegando toda a aldeia;

Em medo entraram, o cadáver divisaram,

Pelas paredes cem gatos contemplaram

Para que a prova de sua história então se leia!

Logo o cadáver foi em poeira transformado;

Vieram fiéis para ali limpar o chão;

Vendo dos gatos a vasta procissão,

Nem um só deles dali foi apagado!

Foi o menino louvado imensamentr

E o sacerdote acólito o nomeou;

Por muitos anos por ali ele ficou,

Papel de arroz lhe forneceram suficiente...

Nele pintou de seus gatos multidão

E só mais tarde foi partir para a cidade,

Glória e fama alcançando de verdade:

Suas pinturas mostradas ainda são!...

O seu nome, porém, não é lembrado.

Ele é “o Pintor dos Gatos”, simplesmente.

Por modéstia, talvez fosse indiferente,

Queria apenas seu labor ver consagrado!

Pois até hoje se mostram kakimonos,

Grandes painéis de papel bem encerado,

Cada gato mais belo ali mostrado,

Vasto motivo de orgulho têm seus donos!

E nas paredes do templo consagrado,

Cada desenho já um pouco esmaecido,

Algum bigode já não sendo percebido,

Cada felino ainda sendo venerado!

O que era aquele rato, realmente,

É um enigma ainda indecifrado;

Por vários séculos tem o templo prosperado,

Cada felino ali encarado reverente!