A CURA DO REI -- PRIMEIRA PARTE
A CURA DO REI
WILLIAM LAGOS, 21 MAR 2018
(Para minha linda neta, Sophia Eleonora Guedes,
baseado num conto em prosa do Thesouro da Juventude.
A ilustração mostra El-Rei Dom Affonso Henriques, mas a lenda
não menciona a qual rei se refere.
A CURA DO REI I
Dizem que houve um rei de Portugal
que muito jovem ascendeu ao trono;
vencera os mouros e, como é natural,
de suas fronteiras com a Espanha era o dono.
Depois de mil escaramuças, afinal,
um tratado assinara com Aragão,
reconhecida a sua independência;
pelo comércio a ganhar grande potência,
vastos impostos depositados em sua mão.
A CURA DO REI II
E obtendo pelo comércio grã riqueza,
desenvolveu uma frota poderosa
e um grande exército, para maior proeza,
bem equipado para a arte belicosa;
De outras vitórias para ter maior certeza,
contratou igualmente mercenários,
cavaleiros, infantes, balestreiros,
comprou canhões, treinou arcabuseiros,
organizados em regimentos vários.
A CURA DO REI III
Algumas vezes conduziu expedições
a dar combate aos inimigos muçulmanos,
com estratégia dirigindo essas missões,
trazendo espólio, belas jóias, ricos panos,
moedas de ouro e prata em medalhões,
que distribuía entre os vassalos mais fiéis,
ainda mais próspero o seu real erário,
belas igrejas a construir, mas de ordinário,
fazia visitas tão somente a seus quartéis.
A CURA DO REI IV
Era, de fato, um jovem orgulhoso,
a honra e glória julgando apenas suas
ou dessas tropas de que era tão vaidoso,
em seus desfiles brilhantes pelas ruas,
demonstrações de quanto era poderoso.
Se, por acaso, bispo ou sacerdote
o reprobasse por nunca se ajoelhar,
com donativos logo os fazia calar,
a suas igrejas oferecendo um novo dote.
A CURA DO REI V
Por mais que o aconselhassem, não casara,
pois facilmente pudera namorar
as mais belas mulheres que encontrara,
mas a nenhuma querendo desposar,
que amor real jamais nelas achara,
bem percebia que somente por ser rei
é que elas facilmente o abraçavam;
perfume e jóias dele apenas esperavam,
nobres que fossem nos termos de sua lei.
A CURA DO REI VI
Contudo, um processo surpreendente
ocorrer começou com sua pessoa,
viu-se assombrado por pensamento permanente,
sendo alguns planos de consequência boa,
mas outros de repetição inconsequente,
com o resultado de não poder dormir
e durante os Conselhos da Coroa,
ou nas caçadas que empreendia à toa,
vagava a mente num constante distrair...
A CURA DO REI VII
Finalmente, o pobre rei se descobriu,
inteiramente incapaz de adormecer;
sua saúde, aos poucos, diminuiu,
toda a paciências acabando por perder
e a dar sentenças sem motivo então se viu,
para depois arrepender-se dessa ação,
a insônia a lhe afetar o julgamento,
tornado errático o seu pensamento...
(de sua loucura alguns até murmurarão).
A CURA DO REI VIII
Mas como tinha amplo apoio da nobreza,
sendo por todos recordado como herói
e da Marinha e do Exército a inteireza,
apesar dessa insônia que lhe rói,
aos boateiros condenavam por vileza,
os dignitários mais altos de sua igreja
diariamente a celebrar em sua intenção
muitas missas de bem longa duração:
mas cura alguma tal ladainha enseja...
A CURA DO REI IX
Muito o amavam seus reais conselheiros,
que se atreveram a fazer-lhe sugestão:
“Quem sabe, nobre rei, nos travesseiros
com uma esposa carinhosa, acabarão
seus pesadelos, somente sonhos verdadeiros
e não seus tão confusos devaneios
que a cada noite vos impedem de dormir...”
Porém o rei não queria se iludir,
um casamento só lhe dava mais receio...
A CURA DO REI X
E como era nessa época o costume,
alguns trataram de lhe fazer sangria;
outros tentavam com algum forte lume,
que o aposento real aqueceria,
o soberano curar desse azedume;
tisanas e emplastros receitavam
e as drogas mais fortes conhecidas;
nada adiantava, sempre eram vencidas
por essa tropa de ideias que o assaltavam
A CURA DO REI XI
Alguns disseram que se exercitasse,
seu real corpo deixando bem cansado;
e embora o rei aos javalis caçasse,
ou marchas longas a pé, como um soldado,
ao se deitar, por mais exausto que ficasse,
seus pensamentos pelo cérebro corriam:
“Não são de medo, de fome ou de desejo,
porém me acordo se lembro de algum beijo...”
Quaisquer ruídos também ao rei perturbariam...
A CURA DO REI XII
Foram chamados os mais ilustres menestréis,
que melodia interpretassem delicada;
também conjuntos de câmara fiéis,
nenhum galo a anunciar a madrugada,
todo o silêncio no palácio e nos quartéis...
Porém o rei não conseguia dormir,
andando às tontas pelos corredores,
batalhas planejando em estertores
e em vão os bobos o fazer tentavam rir...
A CURA DO REI XIII
Finalmente, um edito publicou:
Que caso alguém adormecê-lo conseguisse
a noite inteira, ele assim determinou,
metade das riquezas que possuísse
concederia e até mesmo mencionou
que a metade de seu reino cederia
se sua insônia lhe curasse totalmente...
mas que ninguém o perturbasse inutilmente,
pois numa forca ao infrator penduraria!
A CURA DO REI XIV
Mesmo assim, era tão grande a recompensa
que alguns tentaram a cura pretendida,
sem contudo aliviar-lhe a mente tensa
e assim forçados a pagar com a própria vida
os fracassados, qual se o fôra por ofensa...
Chegou o momento em que já ninguém mais
se apresentava, por temor desse castigo;
deitava o rei qual um morto em seu jazigo,
fechava os olhos, devaneando por demais!
A CURA DO REI XV
Muito tempo deste modo se passou
quando ao palácio chegou bela pastorinha;
mas tão logo o rei doente a contemplou,
sabendo realmente por que vinha,
ao vê-la bela e jovem, lhe falou:
“Retorna agora a teu lar, minha menina,
nem tentes sugerir-me qualquer cura:
sabes a pena para quem descura,
sabes que a forca deverá ser a tua sina!”