A arte do menino Vovozim
O Vovozim foi também menino, como qualquer um de nós. Nascido em 1932 ou 33, frequentou escola primária e há de ter sido um bom aluno, pelas lembranças tão vivas que tem e que expressa de forma tão nítida e pormenorizadas.
Seu pai, o Zé Vovô vivia como hortelão no Beco dos Canudos, no que era ajudado pela esposa, Aurora, a Dona Lóia, e a penca de filhos, duas meninas e três meninos.
A merenda ordinária que o guri Vovozim levava à escola era invariavelmente uma banana, abundante no quintal do pai. O que, de ordinário, matava-lhe a fome.
Mas maior que a fome, segundo confessa o próprio Vovozim, foi a sua cobiça pela bela laranja, já descascada, que a colega de classe, a graciosa Ana levara à escola naquele fatídico dia.
Ana, no dizer de Vovozim, sentava-se na mesma altura que ele, em fileira paralela, e sua pele escurinha era o encanto maior - maior até que a suculenta laranja - aos olhos azulinhos do Vovozim...
Unir a cobiça a um ardil não lhe foi muito difícil: ele pediu que Ana lhe desse a metade daquela laranja. Diante da negativa da menina, foi reduzindo o pedido, limitando-o a um único gomo. Nada, Aninha não se comovia, e muito menos cedia.
Vovozim partiu para o último recurso: foi até a mesa da professora e lhe perguntou em clara voz se uma promessa devia ser cumprida. Diante da resposta positiva da mestra, afirmou que Ana lhe havia prometido a metade da laranja, e agora recusava-se a cumprir sua promessa.
A sentença veio como um raio, fulminando Ana, a quem restou não mais que o choro convulsivo, e meia laranja...
Ao jactar-se do logro em casa, o sermão de dona Lóia foi implacável com o filho, proporcional ao tamanho de sua maldade, sua perfídia e soez. Vovozim não chega às lágrimas ao tecer o relato mais de oitenta anos passados. E no entanto, como comove.
Fico a pensar no que se terá passado com o menino Sergim quando contou pra sua mãezinha sobre o que tinha feito pra botar Luizim de castigo brabo...