O REI DA NEVE E A JOVEM ANÊMONA

O REI DA NEVE

E A JOVEM ANÊMONA

Traduzido do alemão, adaptado e versificado por WILLIAM LAGOS, 6 SET 2018

de um conto de ERNST ZAHN, 24/1/1867, Zürich – 12/2/1952, Meggen, Luzern, Suiça, publicado em Wien, Áustria, em 1917, sob o título de DER SCHNEEGREIS UND DIE JUNGE ANEMONE (O Ancião da Neve e a Jovem Anêmona), na coletânea LEGENDEN UND MÄRCHEN UNSERER ZEIT (Lendas e Contos de Fadas de Nosso Tempo). Ernst Zahn escreveu mais de 25 livros, dezenas de contos, foi radialista e cineasta, dirigindo três filmes.

O rei da neve e a jovem anêmona 1

Lá bem no alto, ali onde as montanhas

acariciam o céu, vivia o Rei da Neve,

já há milênios; e sua vida ainda deve,

por mais outras miríades tamanhas

ainda perdurar, salvo se o Sol, seu inimigo,

com seu exército de raios brilhantes,

sitiasse seu castelo em lancinantes

assaltos de ouro e o tornasse em seu jazigo.

Contudo o Rei da Neve, Firnhart,

sua fortaleza construíra com cuidado,

entre três altos picos montanhosos

e o sol entrava ali somente em parte,

mesmo no auge do verão, atrapalhado

por tais rochedos de cinza portentososos.

O Rei Firnhart erguera o seu castelo

com imensos blocos de gelo recortados

e para o prédio arduamente transportados

pelos seus servos, os Pingentes de Gelo;

e após o imenso palácio estar erguido,

bem protegido por três altos espigões,

seus pingentes adotaram os padrões

de Soldados, seu uniforme constituído

também por Gelo, em placas encantadas,

seus elmos e suas espadas eram geada

e seus escudos forjados de granizo;

mesmo nas épocas ao estio destinadas,

Firnhart tinha Brumas bem domadas

que evitavam do Calor qualquer prejuízo.

Contudo, a Luz também sendo necessária,

o Rei da Neve fizera abrir as suas janelas

e seu grande portão feito de estrelas

de Flocos de Neve, (de feição tão vária,

cintilantes aos milhões, que se dizia

não haver dois de formato semelhante,

em geral hexagonais a seu talante,

mais raramente algum deles se fazia

de quatro ou cinco pontas e até sete),

para o lado do moribundo sol poente;

contudo os raios dessa luz ele ampliava,

por lentes de Cristal e num confete,

o brilho alaranjado do ocidente,

em arcas de Permafrost armazenava. (*)

(*) O solo ártico eternamente congelado.

Para o nascente apenas havia seteiras

e uma porta estreita de uma folha,

também ali para que a luz recolha,

entrecortada por proteções certeiras,

dando todas para um largo parapeito

que sobre um grande vale se elevava.

Certa noite, o Rei da Neve ali passeava,

um manto branco da mais leve maciez

que suas servas de Névoa haviam tecido,

uma coroa a circundar-lhe a tez,

menos branca a deixar sua palidez

sobre o elmo em que um ourives esmaecido

trinta diamantes engastados fez.

Em seu rosto a usual severidade,

usando botas que tecera a Cerração

e uma espada a refletir cintilação

do luar, a projetar-se sem maldade

sobre o vale e ao correr do parapeito.

Com os pés o Rei da Neve então bateu

e toda a neve sobre o vale derreteu;

Firnhart esticou-se bem direito,

as duas mãos na cruz de sua espada

e inquietamente todo o vale observou;

a voz de Geada, seu mordomo, o interpelou:

“O que fazeis, Senhor, nesta sacada?”

“Estamos já em Abril e é tempo de calor,

porém o gelo cobre o vale com rigor...”

O rei da neve e a jovem anêmona 2

“Desde Março a Primavera já é esperada.”

“Aqui no alto ela costuma se atrasar,”

disse Geada, só o que sabia a lhe informar.

“Mas este ano ela está mais demorada;

minhas aliadas, as Tempestades hibernais,

vieram consultar-me muitas vezes,

mesmo depois dos costumeiros meses

e conferências até tivemos por demais...

Precisavam de combater os Maremotos

contra os Fiordes antes do Verão; (*)

minhas Borrascas entraram já em formação,

só uma está em portos ignotos;

dizem meus Ventos que em breve chegará

nova Nevasca consigo nos trará...”

(*) Braços de mar formados por geleiras.

Há muito era o Rei da Neve solitário,

mas nenhuma companhia desejava,

tinha os soldados e Geada lhe bastava,

mais as Saraivas, seu humor contrário...

Boas servas, contudo. As refeições

lhe preparavam e mesmo no seu leito

algumas delas apertava contra o peito,

quando mais fortes sentia as solidões;

e havia Granizo, que sua música tocava

nas cordas da harpa e que tamborilava

às vezes num pandeiro e elas dançavam,

mas quando as aquecia o movimento,

água pingavam sobre o pavimento,

sobre si mesmas assim escorregavam...

Com terra e neve fabricavam nutrientes,

amparadas na magia de seu rei.

“Qual o cardápio que hoje escolherei?”

indagou Geada. “Estão já impacientes,

para os soldados já prepararam alimento,

mas estão ansiosas pelo seu querer...”

“Meu caro Geada, você pode escolher,

tenho outras coisas em meu pensamento...”

Mas de repente, enquanto o vale contemplava,

de que acabara de derreter a neve,

foi perturbado por visão inesperada;

por um momento, quase dela duvidava:

uma jovem quase nua ali se atreve

sobre uma rocha do prado a estar sentada!

O seu aspecto era inteiramente humano,

muito bela de corpo e de feições,

vestes brancas brilhantes de ilusões,

o raciocínio a confundir do soberano;

cabelos louros desciam-lhe à cintura,

de um platinado quase feito de brancor,

sua expressão revestida de pudor,

toda gloriosa em sua belíssima figura!

Sob a túnica fina despida essa donzela,

naquele vale ainda banhado de luar;

Firnhart sacudiu barba e cabeça,

mas novamente contemplou a jovem bela;

quem sabe ele a moldara em seu sonhar,

quando a neve derretera à toda pressa!...

Do chão decerto brotara essa donzela!

e a portinhola que para o oriente dava

mandou abrir e logo já se encaminhava

em direção à criaturinha bela,

seus passos firmes, porém silenciosos,

embora a relva começasse já a brotar,

como um punhal os espaços a cortar,

diante dele a separar ventos brumosos,

enquanto ia a Cerração atravessando,

antes que a visse no ar se desfazer,

tão bela sendo a que o levara a percorrer,

mas já de perto a estava divisando

e com olhos azuis os seus fitava,

um par de adagas que a mente lhe cortava!

O rei da neve e a jovem anêmona 3

“Quem és tu?” – foi logo lhe indagando.

“Meu nome é Anêmona,” a jovem lhe falou;

com timidez e hesitação acrescentou:

”Estou sentada aqui, ainda pensando

de onde vim e não lhe posso responder;

tenho a impressão de um sonho me acordar,

sem saber como aqui me venho achar

e de onde venho nada posso lhe dizer...”

O Rei da Neve chegou mais perto dela,

com seus passos a estalar-lhe a armadura,

o seu elmo a refletir a luz da Lua,

brihante e clara, apagando cada estrela,

salvo uma ou outra de fulgor mais pura;

“Não sentes frio, sob a veste quase nua?”

A jovem o encarou em total confiança

e um perfume inusitado ele aspirava;

medo algum a sua face revelava,

só timidez, ingenuidade e esperança.

Falou Firnhart: “Bem cedo me chegaste,

pequena Anêmona, mas igualmente tarde,

tuas irmãs já contemplei em grande alarde,

porém em pleno frio hoje brotaste...

Na realidade, a Primavera se atrasou,

mas tua beleza enfim me revelou

e aqui te encontro, ante o luar noturno;

mais por acaso a tua presença me mostrou,

bela e singela neste Inverno ainda soturno,

sobre este prado de que a neve se afastou...”

A voz do rei retumbava como um sino,

a tanger alegremente em dia de festa;

com seu sorriso, Anêmona lhe atesta

plena confiança em seu rosto pequenino;

breve temor a lhe surgir no coração,

quando o semblante austero se inclinou;

e novamente a jovem o contemplou,

sem indagar-lhe o nome ou a condição.

“Jovem Anêmona, contempla o horizonte,

bem acima do castelo e do penedo,

pois já de lá se aproxima Tempestade;

de fortes ráfagas de vento sinto a fonte,

muito frio ela trará e tenho medo

que te alcance com ciúme e com maldade.”

“Ela é minha aliada, porém não serva minha;

de fato, só obedece ao Rei Inverno,

também aliado, mas competidor eterno;

cinza e feroz de nós já se avizinha;

se te alcançar, certamente morrerás!”

A jovem criatura de medo estremeceu

e algumas pérolas de pranto então verteu.

”Mas vem comigo, que a não encontrarás!”

E sobre ela seu manto colocou,

passando um braço por seus ombros estreitos

e em direção à fortaleza a conduziu.

“Vem comigo,” o Rei da Neve asseverou.

“Em meu castelo não estamos mais sujeitos

a qualquer dano que a procela produziu.”

Ambos partiram pela noite silenciosa;

tão fortemente Firnhart a estreitava

que com seus pés desnudos mal tocava

a terra úmida de frialdade tenebrosa;

do lado externo da altíssima muralha,

alguns Pingentes-Soldados se encontravam

e à voz do rei depressa contestavam:

“Sim, Majestade!” – a obedecer sem falha

e assim abriram-lhe a estreita portinhola

e após os dois, no castelo penetraram

e em duas fileiras então se perfilaram;

Anêmona branca igual que pomba-rola,

pleno contraste contra o tom cinza-azulado

dos blocos gélidos com que o castelo era formado.

O rei da neve e a jovem anêmona 4

Foram passando assim de sala em sala,

junto às paredes enfileiradas sentinelas,

brancas, silentes, emproadas como velas,

mas com feições humanas em sua gala;

seguia o rei a orientar-lhe o passo,

nenhuma fonte de luz perceptível

e no entanto claridade inexaurível

que o próprio manto que a cobria sob o abraço

do Rei da Neve parecia projetar;

até chegarem a um vasto salão,

em cuja ponta se abria uma janela,

de onde suave luz vinha brotar,

onde almofadas sobre um leito estão

macias e brancas como as vestes da donzela

Ali o rei convidou-a a se assentar,

ele mesmo a se acomodar numa cadeira;

a luz brotava, em magia feiticeira

dos marcos e caixilhos a assomar,

mas através dos vidros de cristal,

na noite escura, poucas estrelas a brilhar;

do outro lado permanecera o luar;

cristais de gelo notou serem, afinal.

“Nesta sala terás tranquilo abrigo,”

disse-lhe o rei e com a ponta de sua espada,

bateu no piso e seis criados já chegaram,

roupas de cinza-azulada, mas consigo

não viera sequer uma criada,

somente servos masculinos se inclinaram.

Os passos dos criados estalavam

sobre o piso de pedras cor de gelo

e a serviram com estudado zelo

das travessas de alimentos que portavam

e de uma jarra de prata que continha

líquido claro como água da fonte

que de um rochedo límpida desponte,

taça de prata apresentaram à jovenzinha.

Ela bebeu e depois, com um suspiro,

do rei fitou a austeridade das feições:

“Meu rei parece velho, branco assim,

mas forte é seu braço, firme seu respiro,

não demonstra cansaço nem fracas emoções,

seus olhos brilham, sua voz igual clarim!”

“Você também é branca, minha querida,”

disse o rei, com uma leve piscadela,

“mas só traz a palidez de uma donzela,

a mais formosa que encontrei na vida!”

Não havia lareira, nem lume sequer,

mas ali dentro não sentia o menor frio;

o rei sorriu-lhe e, com renovado brio,

bateu com a espada num ritmo qualquer

e prontamente apresentou-se o seu harpista:

“Melodia gentil, meu bom Granizo...”

Por um momento, ela se surpreendeu,

por vez primeira alguém ali avista,

sem a brancura das paredes e do piso,

mais como a noite o seu semblante pareceu.

Ele assentou-se no peitoril sob a janela

e já seus dedos as cordas percorreram,

como lágrimas as suas notas pareceram,

como estrelas deslocadas por procela,

que pingavam sobre o mármore do chão,

sua voz grave a entoar a melodia,

com as cordas da harpa em harmonia,

marrom-escura era a cor de cada mão;

soavam as notas quais vozes gentis

de crianças em seus momentos mais felizes;

a um sinal, o instrumentista se calou

e igual que o gelo suave como giz,

a noite azul e as estrelas em deslizes,

o Rei da Neve gentilmente começou.

O rei da neve e a jovem anêmona 5

Igualmente, havia mistério na sua voz,

com um toque de alto orgulho zombeteiro,

tal amargura a se mesclar ligeiro,

que à gentil menina pareceu atroz

e num impulso, segurou-lhe a mão,

numa espécie de consolo inexperiente;

fitou-a o rei com firmeza surpreendente,

de um modo tal que lhe tremeu o coração.

Mas a seguir, ele se ergueu rapidamente:

“Você deve estar cansada, pequenina.”

E novamente outro servo se aproxima,

trazendo um xale e um cobertor bem quente.

“Durma agora, Anêmona, minha menina,

que a manhã chega e a todos nos anima...”

Em passos largos, caminhou até a porta,

onde o criado lhe entregou o manto,

ficara o harpista silencioso no seu canto.

Braços cruzados, sua visão comporta

certa ternura a desmentir a sua frieza;

a seu sinal, recomeçou o harpista

uma canção de berço que lhe insista

a despertar sua memória de incerteza;

mas o rei se calou, sem dizer nada

e as pálpebras de Anêmona pesaram,

a melodia a ficar sempre mais distante

e assim dormiu, ali acalentada;

do rei os olhos nunca dela se afastaram,

numa carícia toda pálida e incessante.

Por muitos dias Anêmona habitou

no castelo imenso desse Rei da Neve;

a tempestade aparecera em breve

e a neve sobre os montes agitou;

Anêmona a contemplar pela janela

como giravam as Aves do Nevoeiro,

com ágeis bicos a cobrir ligeiro

qualquer verdor que o prado já revela;

mas ali dentro, não sentia qualquer medo

e a cada vez que o rei lhe aparecia

era como se o vento se calasse,

cada floco de neve a deixar quedo,

enquanto a Tempestade estremecia,

mas só de leve sobre o chão tombasse.

Pois Firnhart cada vez mais lhe parecia

igual penhasco forte e poderoso

e quando o som da noite, tenebroso

a amedrontava e a menina estremecia,

vinha o rei assentar-se do seu lado,

com a expressão mais bondosa no seu rosto:

“Percebe, Anêmona, qual seria o seu desgosto,

se estivesse lá fora, sem cuidado?

Como o suflar da fera Tempestade,

em poucas horas, a destruiria?”

E para a distrair, então contava

histórias cheias de veracidade,

sobre as geleiras e as brumas que ali havia,

mas que firme a humanidade ainda enfrentava.

Então os caminhos das nuvens revelava

e numerava das montanhas os tesouros,

como os Homens caçavam por seus couros

os Animais que o Rei Inverno ali gerava

e que buscava destruir os caçadores

e sua ajuda para isso requeria,

mas que ele, às escondidas, protegia,

lançando a neve em brancos cobertores

e o próprio gelo fornecia a cada iglu,

em que pudessem proteger o corpo nu,

dentro do círculo dessas habitações,

em que jamais se acenderia uma fogueira,

combustível a escassear sobremaneira,

só aquecidos por seus próprios corações...

O rei da neve e a jovem anêmona 6

Também falava de mil gemas preciosas

a deslizar pelo leito dos ribeiros,

que outros homens cobiçavam, sobranceiros,

porém que valem muito menos do que as rosas;

e muitas outras lendas, em que fadas,

seus gênios, mais os elfos e os anões

se escondiam já das vastas multidões

das gerações humanas apressadas,

enquanto Anêmona nunca se cansava

de ouvir as suas histórias variegadas;

quando a donzela o escutava, se esquecia

da alva vastidão que ali a cercava

e as palavras bebia, consagradas,

como criança que carícias mais queria.

Certas histórias falavam de alegria

ou da tristeza na solidão achada,

a donzela tudo a ouvir, maravilhada

e o tempo todo mais e mais pedia;

às vezes, o rei a olhava, pensativo,

pois muito em breve chegaria a Primavera,

quando nenhuma tempestade mais se espera;

de devolvê-la a seu prado um tanto esquivo,

até que um dia, uma pedra ele lhe trouxe,

por fora grande, rugosa e ovalada

e com um gesto fácil, a partiu,

a revelar-se a maneira como fosse

a ametista no interior achada,

que da intempérie protegida ali surgiu.

“Como num lar, esta jóia aqui cresceu,

escondida do fragor da tempestade,

mas só nos pode ser útil, na verdade,

depois que desse seu abrigo se perdeu;

com as pedras te poderei fazer colar,

para de teu níveo pescoço a esbeltez

ou pulseiras para a idêntica alva tez

de teus braços... Ou em ouro as engastar

formando assim um roxo diadema

para enfeitar teus cabelos platinados...

Mas em seus olhos, Anêmona achou pena,

deixou os braços em sua cintura pendurados

e então suspeita sorrateira a envenena:

teriam em breve de serem separados?

Sobre seus ombros o rei passava os braços,

numa atitude protetora e carinhosa,

mas Anêmona era mulher... e assim, vaidosa,

bem satisfeita no calor de seus abraços,

seu calor a palpitar de gratidão,

inexperiente para avaliar um sentimento

e tomada pelo impulso de um momento,

em palavras doces traduziu a sua emoção:

“Meu rei,” pediu-lhe sedutoramente,

“deixai que fique permanente do seu lado!”

Mas Firnhart demonstrou sua confusão:

“Desejas mesmo estar comigo permanente?”

E o braço forte nos seus ombros enlaçado

deixou cair numa fraqueza sem paixão.

Mas ela apenas percebia o movimento

que perpassava por seu próprio coração

e por vaidade conquistada na ocasião,

mais insistiu em delicioso sentimento:

“Eu me sinto tão feliz aqui a seu lado!

Por que motivo iria querer partir?

Porque deseja para o prado me banir?”

Seu coração num bater descompassado.

Firnhart a escarou, cheio de espanto:

Ela sabia qual seria o seu destino?

Era uma flor, embora em forma humana!

E percebendo no próprio olhar o pranto,

ergueu-se bem depressa, em desatino,

deixando a sala, sem ouvir quanto ela o chama!

O rei da neve e a jovem anêmona 7

Ficou Anêmona extremamente perturbada

e em lugar dele só retornou Granizo,

mil canções executando em som de guizo

e a suas questões não respondia nada!

Com o harpista ela insistiu: “Eu sou feliz!”

Granizo então falou: “Não é o suficiente...”

Pela primeira vez ali se achava descontente:

Mas só falei o que de fato eu quis!

No outro dia, Firnhart retornou,

porém dela nem sequer se aproximou,

muito ereto, a segurar sua espada,

a sua barba muito branca ali pendia,

mas para Anêmona ainda mais jovem parecia,

em sua postura assim robusta e aprumada.

“Querida Anêmona, é por amor de ti

que em meu castelo não poderás ficar,

a Primavera custou muito a nos chegar,

mas as aves de arribação já percebi.”

“Se tens amor por mim, por que não posso?

Só o que desejo é contigo continuar...”

“Mas eu não devo à Natureza contrariar,

por mais que este dever me seja insosso!”

“Mas o que posso fazer para ficar...?”

“Só de uma forma posso atender a teu pedido,

porquanto a Primavera se avizinha;

se tens amor, deverás me desposar;

somente assim poderá ser atendido

e de meu reino te tornarás Rainha!...”

Sem mais outra palavra, deu a volta

e se afastou em caminhar ruidoso,

que o seu dever cumpriria prestimoso:

sobre seu prado deveria ela ser solta!

A pobre Anêmona ficou até meio assustada

porém meio satisfeita com a proposta,

que a ideia dessa boda não a desgosta,

até, de fato, se sentia muito honrada!

E ao mesmo tempo, tristeza experimentava,

porém no engodo de sua perturbação,

o harpista retornou a seu lugar

e as melodias que ele agora executava

falavam muito de gentil separação...

Mas eu não quero ao prado retornar!

Seus sentimentos, aos poucos, se aclaravam:

sem qualquer dúvida, ela amava o Rei da Neve!

Mas tal certeza desvaneceu-se em breve:

Como pai e como filha os dois se amavam!

Era isso que precisava lhe dizer!...

E já tomara integral resolução,

quando o harpista empreendeu nova canção,

que descrevia o casamento com prazer,

alto e mais alto suas notas a soar,

do grande júbilo e vigor matrimonial

e com a música já mudou de pensamento...

Então Anêmona viu Firnhart retornar:

como um guerreiro armara-se, afinal,

já contrariando seu novo julgamento!...

Queria agora era lançar-se nos seus braços,

severamente, porém, ele a impediu,

mas o próprio afastamento a seduziu,

forte rubor já lhe cobria os traços;

“Tenho uma coisa para dizer, meu grande rei.”

“Então a dize,” o Rei da Neve respondeu.

Engoliu em seco e se fortaleceu:

“Majestade, com franqueza eu vos direi:

vós afirmastes que ficar aqui só posso

caso me ache disposta a me tornar

vossa Rainha, depois de o desposar.

Amor de filha no coração apenas ouço,

mas se me honrais ainda com a proposta,

a ser a esposa vossa estou disposta!”

O rei da neve e a jovem anêmona 8

“Pense bem no que me está dizendo,”

falou o rei, com tanta seriedade,

que encolheu seu coração. “Pois é temeridade

se a meu pedido desse modo está atendendo.

Caso venha a se tornar a minha rainha,

nunca mais me poderá abandonar,

na longa vida que terás de desfrutar;

sempre fiel terás de ser, minha pequeninha,

não é somente minha honra que está em jogo,

porém a honra da Neve e do Castelo;

pensa então nas consequências, eu te rogo.”

Anêmona lançou as vistas sobre o assoalho:

sua alegria em por marido tê-lo

era manchada por sentimento falho.

Por um momento, o harpista interrompeu

o toque de seus dedos sobre as cordas;

seu coração já estava cheio até as bordas

e para a barba branca o olhar ergueu.

Os seus olhos transbordavam de confiança

e percebeu, para a própria maravilha,

que embora ainda o amasse como filha,

de amor mais vasto havia uma esperança.

“Majestade, eu bem sei, perfeitamente,

ser impossível encontrar mãos mais queridas

a quem pudesse um dia me entregar...”

Firnhart respirou o ar, fremente,

suas próprias hesitações todas perdidas

e abriu os braços para a aconchegar...

A meiga e esbelta Anêmona abraçou

e ela aninhou-se, feliz, no seu amplexo;

por vez primeira a trocar beijo de sexo,

que entre os dois o juramento completou.

Em poucos dias celebrou-se o casamento,

mas o rei aos servos não mais permitiu

que a atendessem, porém lhe introduziu,

mesmo na véspera do dia desse evento,

três jovens belas para a acompanharem,

todas vestidas de roupas transparentes,

uma touca a salientar as suas feições,

cores diversas então a apresentarem,

uma em azul, outra em rosas permanentes

e a terceira em brancas vestes de ilusões.

“Serão estas as suas acompanhantes;

de três aias precisa uma rainha

Genciana é esta que de azul vinha,

a qual suas refeições trará constantes;

a de encarnado é a Rosa da Montanha,

encarregada de seu guardarroupa;

e a que brancos traz vestido e touca

é a Lírio das Neves, que a acompanha

no mesmo tom de roupa que escolheu,

que penteará seus cabelos platinados

e assentará seu diadema trabalhado

em ouro e prata com topázios engastados;

no orvalho da manhã cada um foi encontrado,

que meu ourives, com cuidado, concebeu.

O casamento foi sem pompa e circunstância,

mas como Anêmona jamais outro assistira,

pareceu maravilhoso o quanto vira:

um eremita de roupão sem elegância

a bênção deu para o novel casal;

o Rei do Inverno foi padrinho e a Tempestade

foi a madrinha, como prova de amizade,

embora ambos percebessem nele um mal.

O Rei do Inverno falou: “Eu os abençoarei,

mas acredito que vai cometer um erro.”

E disse a Tempestade: “Se houver algum desterro,

com minhas frieiras eu o consolarei...”

Nada dizendo da jovem aos ouvidos,

de seu amor não estando convencidos.

O rei da neve e a jovem anêmona 9

Uma canção de himeneu cantou o harpista:

“Quando Amor em Amor se frutifica,

a Primavera sempre junto deles fica,

mas se Amor do outro Amor não segue a pista,

falecerá o primeiro em amargura;

quando Amor a outro Amor abraça,

o Deus do Céu concede plena graça,

mas se de Amor o Amor não mais perdura,

só predomina sobre a Terra a Morte.”

E o Rei da Neve pousou as mãos na espada,

a entoar um verso de igual sorte:

“Quando Amor ao outro Amor não dura,

a Terra inteira pela morte é assolada

e o Deus do Céu contempla sua amargura.”

Tão poderosa sua voz então soou

que o coração da noiva estremeceu,

mas o rei a mão forte lhe estendeu

e muito alto seu coração voou;

então se ouviu um som como morteiro!

“São as Avalanches,” explicou o rei,

“cantando em seu louvor, bem sei:

os picos lançam seu branco travesseiro

para sua honra e para seu louvor...”

Entâo Anêmona riu de felicidade,

no coração, porém, um toque de tristeza...

Os padrinhos brindaram a seu favor,

o harpista e as damas sorriram com bondade,

mas os soldados mantiveram sua frieza.

Porém quando Firnhart retirou a armadura,

depois que os dois se encaminharam para o leito,

a contragosto, viu nele algum defeito,

orgulho e poderio a assentar mais que ternura,

pois ao dizer-lhe suas palavras de amor,

parecia reduzir-se em seu tamanho,

mas ao sua boca ter novo beijo ganho,

logo afastou de si todo o temor...

Mais na ternura do marido ela cresceu

e bem depressa aumentou a sua certeza

de que fizera realmente a escolha certa;

seu amor de filha noutro amor desenvolveu

e nela mais floresceu a sua beleza,

de Firnhart no carinho sempre alerta.

Algumas vezes, contudo, se afastava:

o seu reino era vasto e a Cordilheira,

Vento Norte e Nevoeiro, a Nuvem altaneira,

a seu comando, tudo se dobrava

e impedia das montanhas a erosão;

o Rei Inverno em lufadas se afastara,

a frialdade para o sul já carregara

e a Tempestade não soprava mais Trovão.

O Vento Sul por enquanto não silvara

e nesses dias de intensa calmaria,

cada avalanche totalmente se calara.

Certo dia, Firnhart aproximou-se:

“Quero mostrar-lhe a rude penedia,

que sob o sol inteira transformou-se...”

Realmente, verde relva ali crescera,

mas ao longo da tranquila pradaria,

que um regato murmurante percorria,

estranhas formas subitamente percebera...

“O que são essas?” – Anêmona indagou.

O rei sorriu: “Pois não as reconheces?”

Genciana murmurou-lhe, como em preces:

“São irmãs suas e nossas...” – informou.

Disse-lhe Rosa: “Não percebes com dançam

e os cabelos ondulam sob a brisa?”

Falou Lírio, das três a mais calada:

“Elas piscam um convite e não se cansam!”

A seu marido volveu a fronte lisa:

“Posso ir com elas até a esplanada?”

O rei da neve e a jovem anêmona 10

“Naturalmente, são suas acompanhantes,

contudo eu devo me quedar no parapeito;

sou o Rei da Neve e não tenho direito

de percorrer os prados verdejantes...”

Anêmona ficou um tanto perturbada:

estavam juntos desde o casamento,

salvo quando ele partia em julgamento;

alguma coisa a deixava amedrontada...

“Não se perturbe, Anêmona querida,

podes ficar por ali algumas horas,

sei bem que voltarás sem mais demoras...”

Saíram as quatro pela porta aberta,

sendo acolhidas por alegria desabrida,

que emoção desusada lhe desperta...

Porém Anêmona e suas três amigas

correram alegres pelo caminho estreito

e no planalto, em seu pleno direito,

dançaram todas, a entoar canções antigas.

A jovem esposa alegre se sentia

e assim as horas foram passando sob o sol,

mas sobre a torre já brilhava qual farol

e ela lembrou-se de que a Firnhart pertencia.

As suas centenas de amigas, já cansadas,

começavam as corolas a inclinar,

até as pétalas algumas a enrolar;

voltou ao castelo com as aias encantadas,

o Rei da Neve a acolheu, alegremente,

contou-lhe tudo o que fizera, bem contente!

“Não incorri em um mau procedimento?”

Indagou ela, inquieta, a seu marido.

“Em absoluto. Vá dançar o mais seguido

que lhe possa agradar o sentimento.

Só deve retornar em igual momento

que o de hoje por você foi escolhido,

quando o Sol estiver quase escondido,

por trás do teto do mais alto pavimento...”

E seu dançar repetiu ela muitos dias,

por suas três belas aias protegida,

sabendo que o marido se alegrava,

participando de suas puras alegrias;

do parapeito a sua visão contida,

hora após hora feliz a contemplava.

Firnhart sentia imensa gratidão

pelo prazer que Anêmona lhe dava;

somente às vezes, sem querer cantava,

sua voz ribombando no bordão,

que recordava de Deus a plena graça

quando Amor fiel a Amor permanecia

e a tristeza que no final surgia,

quando a Morte do Amor fazia pirraça.

Na verdade, nem sentia algum receio,

só lamentava ver seu desaponto

quando as florzinhas começassem a murchar;

não que o frio interviesse de permeio,

mas de Julho logo iniciava-se o reponte

e o calor não cessaria de aumentar.

De um certo teste tinha vaga lembrança:

seria na segunda quinzena do verão,

mas não quis assustá-la de antemão,

que em seu amor fiel tinha confiança;

não obstante, do parapeito ele vigiava

e um dia viu um brilho desusado:

sobre um rochedo surgiu vulto dourado,

nova estranha criatura ali sentava;

mas no regato Anêmona se banhava

com suas aias, suas ricas vestimentas

depositadas com cuidado sobre a margem;

mas logo o brilho sua atenção chamou:

“O que é aquilo?” – disse às aias desatentas.

“Algo real ou somente uma miragem?”

O rei da neve e ajovem anêmona 11

As aias voltaram o olhar na direção

para a qual a bela Anêmona apontava:

“Mas é um homem! Desde quando ali se achava?”

“Eu o vi antes, mas pareceu-me uma ilusão...”

“Estamos nuas!” – assustou-se Genciana

e bem velozes as roupas colocaram;

para o castelo, às pressas, se afastaram;

Anêmona, rubra como rubra chama,

não mencionou a visão para o marido,

que a estivera todo o tempo a contemplar,

mas absteve-se de igualmente a mencionar,

igual que nada tivesse percebido

e a tratou com a mesma gentileza,

enquanto as aias se calavam de incerteza.

Mas no outro dia, Anêmona não quis ir:

“Caro marido, quero ficar junto a seu lado...”

Granizo, o harpista, depressa foi chamado,

as notas doces do instrumento a refulgir;

após três dias, disse-lhe Firnhart:

“Não quer mais usufruir do belo sol?

São só três meses dessa época de escol,

Já por Setembro depressa o Verão parte...”

Então ela desceu de novo com as amigas

e depois de dançarem e cantarem,

sem das roupas se despir para banharem,

muitas florzinhas cochichavam já intrigas

e lá se achava de novo o viandante,

poeira dourada cobria o viajante...

Contrastava com seus cabelos encarnados,

mas era um jovem de beleza singular,

que se mantinha somente a observar,

sem um só passo atentar para seus lados;

deixando-se tomar pela curiosidade,

acompanhadas pelas aias timoratas,

por suas vidas a sentir-se ingratas:

O que diria o rei, na realidade?

Mas Anêmona, em plena ingenuidade,

só ali queria entabolar uma conversa...

“Graças te dou por chegares, jovem bela”

Anêmona gracejou, em meia vaidade:

“Como sabe se minha razão não é diversa?

Passeio apenas...” – disse-lhe a donzela.

O belo jovem tão somente lhe sorriu,

certa malícia cintilando em seu olhar.

“Quem é você?” – quis Anêmona indagar.

“Sou um peregrino que o mundo já seguiu

de Algum-Lugar para Nem-Sei-Onde,

todos os anos o globo inteiro a perlustrar,

com meus onze irmãos a me alternar,

meu nome é Junius e aqui chego de outro Donde...

Todos os anos ocupo este lugar...

Por que não senta, para me acompanhar?”

Mas à distância, sobre o parapeito,

seu marido a contemplava com direito...

Deu meia-volta e voltou para o castelo,

em seus olhos a guardar o rosto belo...

Lá estava o rei, austero no entretanto,

mas em seu semblante nada havia de mesquinho,

tratou-a mesmo com idêntico carinho,

mais uma vez a elogiar o seu encanto

e nada lhe indagou do que fizera,

somente o harpista tocar veio novamente;

no coração sentiu uma dor plangente,

pois o rei pedras preciosas lhe trouxera,

que nas cavernas colhiam as Estalactites,

mas de seus passos nada lhe indagou;

só no outro dia, como não saísse,

deu-lhe cristais tomados a Estalagmites

e sem rancor, novamente perguntou:

“Por que não vais ao prado, igual te disse...?”

O rei da neve e a jovem anêmona 12

Os seus olhos rebrilhavam de confiança

e nessa tarde, suas três acompanhantes,

lhe trouxeram cogumelos deslumbrantes

e os musgos que cresciam em abundância

e assim, saiu com elas novamente,

no dia seguinte, a tornar-se mais ousada,

e ao mesmo tempo, a sentir-se mais cansada,

de tais conversas a sentir-se inconfidente

e por dez dias com o jovem conversava

sobre as distantes terras lá do Sul,

seus prados verdes, mesmo no rigor do Inverno,

quando a Neve em tempo algum tombava

onde o Mar se balouçava, sempre azul,

onde ele mesmo era um Verão eterno...

No undécimo dia, ela se retardava,

o sol raiando sobre o prado em calor forte,

sem compreender por que estranha sorte

esse calor sua energia lhe roubava.

Perguntou Junius: “Por que tanto demorou?

Hoje é meu último dia neste prado;

por muitas horas temos conversado,,

mas amanhã nosso tempo se acabou!

Parte comigo para a terra mais florida,

o mês de Junho por lá é sempre terno,

trinta dias te darei de amor eterno!”

Ela falou, lastimando a despedida:

“Meu caro Junius, eu tenho meu marido,

sou sua Rainha e é ele o meu querido!”

Junius apenas assentiu, sem insistir,

mas seu olhar a seguiu até a distância;

de Firnhart a vista em prima instância

a atraía e a seu refúgio ela fugiu.

Nuvens gris ela notou sobre suas torres;

ela hesitou e chamaram-na suas aias;

“Anêmona!” – gritavam flores como em vaias:

“Feio é o castelo! Se retornares, morres!”

Porém seus caules não impediram sua passagem

e para os braços de Firnhart ela correu;

sem a menor reprovação, ele a acolheu,

fortaleceu-a dos calores em voragem...

“Conta-me histórias!” – ela pediu, em meigo tom.

Ele assentiu e ela entendeu quanto era bom.

Passou a chuva. Chegou o dia seguinte.

Genciana, Rosa e Lírio a convidaram:

“Vamos ao prado. As flores renovaram,

com as novas cores que a água nelas pinte!”

Olhou para o marido e este assentiu.

Com roupas novas as quatro caminharam;

vago o rochedo rápido encontraram:

“Ele se foi...” – disse Genciana e lhe sorriu.

Mas antes que passasse uma semana

em que cantava e bailava com as flores,

da tentação já esquecidos os temores,

nova presença com a anterior se irmana:

era outro jovem, alburno seus cabelos, (*)

curto bigode sobre os lábios belos...

(*) Louro-avermelhado. como gema de ovo.

Durante um dia, eles só se contemplaram;

Lírio das Neves deu o primeiro passo;

ele a acolheu, gentil em seu abraço,

logo depois Rosa e Genciana se achegaram;

“Quem eu desejo mesmo é sua Rainha,”

disse o rapaz, com sua voz brejeira,

sua insistência a se tornar mais altaneira

e enfim Anêmona também com elas vinha.

“Quem é você?” – indagou, igual que antes.

“Meu nome é Julius e sou um navegante

nos amplos mares das terras do Verão;

nada mais sei sobre onde estava dantes,

contudo aqui sou anualmente viandante,

de sentinela no lugar de meu irmão...”

O rei da neve e a jovem anêmona 13

E novamente, quis Anêmona fugir,

mas as três damas tinham cumplicidade

com este Julius e insistiram, sem maldade,

que ela ficasse, constantes a pedir;

já não temiam que Firnhart se zangasse,

de Julius tendo a maior curiosidade,

porém Anêmona se foi, tal sua velocidade,

que seu correr mal e mal se acompanhasse.

O Rei da Neve as recebeu, sem dizer nada;

em seu abraço, sentia-se Anêmona abençoada

e as três damas quase exaustas pareciam,

a sua seiva parcialmente já esgotada,

enquanto sob o sol elas corriam,

porém Anêmona inteiramente descansada.

Nessa noite, os dois dormiram abraçados,

mas de manhã Firnhart lhe informou:

“Preciso viajar. Um maremoto já chegou

e meus Fiordes estão sendo ameaçados.”

“Mas vai de novo deixar-me aqui sozinha?”

“Você tem Granizo e suas companheiras;

pode manter conversações ligeiras

com o novo jovem que do prado se avizinha.”

“Senhor meu rei, não sente algum ciúme?”

“Pequena Anêmona, sempre dei-lhe liberdade

e lhe demonstro toda a minha confiança.”

Falou Anêmona, com uma pontinha de azedume:

“Quase excessiva é sua liberalidade,

que não seja demasiada é minha esperança!”

Mas Firnhart por uns dias se afastou,

sem temer que ela caísse em tentação;

o Rei da Neve não mandava no Verão,

por maior angústia que então experimentou.

Mas Anêmona por sua honra tinha zelo

e nao importa o quanto conversasse

e por mais que este Julius a elogiasse,

era leal ao Rei da Neve e Gelo!...

Passou-se um mês e então Julius lhe falou:

“Parte comigo. A Primavera e o Inverno

juntos não podem jamais permanecer.”

E ainda acrescentou: “Julho é atento,

trinta e um dias de eterno sentimento

eu te darei, sem que jamais possa morrer!”

Mais uma vez, Anêmona se despediu.

“Eu a amo,” disse o jovem ternamente.

“Parte comigo e viverás contente

nessa terra em que o frio jamais surgiu!”

“Não, caro Julius, leve uma de minhas damas.”

“Eu não as quero, somente a vós desejo;

serás rainha também lá. Dá-me um só beijo

e sentirás o ardor desta minha chama...”

“Não,” disse Anêmona. “É tempo de partires.”

E a passos rápidos voltou para o castelo,

as três damas a segui-la em contragosto.

“Fizeste mal desses dois jovens desistires,”

segredou-lhe Genciana. “Bem pior será o zelo

quando chegar o quente mês de Agosto!”

Firnhart retornara e já a esperava

e nos seus braços a acolheu com emoção,

sem um murmúrio de reprovação;

contudo, inquietação experimentava,

mas não podia conter a Primavera,

não enquanto perdurasse esse Verão;

sofrer teria mais uma tentação,

enquanto o Inverno ficaria à espera,

mas Setembro traria em breve o Outono,

todas as flores a dormir profundo sono

e se Anêmona vez terceira retornasse,

em seu castelo vida eterna teria certa,

sem que em anos seguintes precisasse

sua velha alma manter assim alerta.

O rei da neve e a jovem anêmona 14

Contudo Agosto era o mês de sua fraqueza,

na conservação do castelo gastaria

uma vasta porção de sua magia,

mesmo que o Sol pouco tocasse a fortaleza;

porém Anêmona, já cheia de confiança,

pediu a seu amado permissão

para voltar ao prado em procissão

com suas três damas, gozando sua bonança.

“Eles se foram, meu rei e meu marido,

só permanecem as florzinhas a dançar

e o regato ainda alegre a suspirar...”

“Pequena Anêmona, podes ir, naturalmente,

sou teu marido e rei, mas não teu dono:

do parapeito a minha canção ressono...”

Mas neste mês, o Sol não mais acalentava

e ela sentia verdadeira lassidão,

suas companheiras dançavam sem paixão,

sob a canícula que agora as desgastava;

muitas das flores já nao dançavam mais,

algumas murchas, outras já tombadas

sobre o solo, suas sementes dispersadas:

outras viriam, porem estas jamais...

E de repente, lá no alto do penedo,

surgiu terceiro jovem, todo louro,

de armadura resplendente como ouro,

a contemplá-la com olhar feroz e quedo;

Anêmona não se atreveu a visitá-lo,

Mesmo as três damas a sentir igual abalo.

Mas como ele ali ficasse imóvel

e ela sentia que embora ainda quente

já havia sinais de em breve estar ausente

esse Verão, já de calor tão ignóbil;

assim voltou com as damas no outro dia;

a maior parte das flores já murchava,

enfraquecidas pelo sol que as maltratava:

“Somos flores do frio,” Lírio dizia.

Mesmo que o jovem as olhasse simplesmente,

dardejando de seus olhos mil convites,

Anêmona não mais queria retornar,

Mas Firnhart lhe disse, tristemente:

“Para que sempre aqui comigo habites,

até o final este Verão tens de enfrentar...”

E assim, no abafamento do Verão,

Anêmona retornou à pradaria,

mas do jovem chegar perto não queria,

mais temor a sentir que sedução.

E quando o mês de Agosto terminava,

o rapaz levantou-se do rochedo,

vindo até ela. “Por que de mim tem medo?

Eu sou Augustus,” a seguir se apresentava.

“Meus dois irmãos você antes recusou,

mas comigo terá de vir agora!...”

“Mas eu não quero!” – Anêmona gritou.

“Eu não te peço. Porém seu corpo é meu,

venha comigo, logo tenho de ir embora

que só ao Verão a Primavera pertenceu!”

Ao compreender que haveria violência,

deixou Firnhart, às pressas, seu castelo.

Nunca Anêmona o vira assim tão belo,

nem percebera o amplo vigor de sua potência.

“Devolva minha Rainha!” – ele clamou,

nuvens surgindo sobre sua cabeça,

já um Vento a assoprar com certa pressa,

mas a sua voz à Tempestade superou!...

“Anêmona é minha!” – proclamou o guerreiro,

“Retorne, velho, para a neve e o gelo,

ela conservará dentro de mim a energia,

na asa do vento partiremos bem ligeiro,

pois não percebe, em seu seu ciúme e zelo,

que o Verão está no fim e no Outono murcharia?”

O rei da neve e a jovem anêmona 15

A voz de Augustus era como uma cachoeira,

a voz de Firnhart como avalanche da montanha,

espadas desembanhadas em sua sanha:

“Somos iguais! Não temos vida inteira!”

Bradou Augustus. “Ela tem uma estação

e eu só tenho de um mês a permanência;

se vier comigo, conservará plena consciência,

sem precisar dormir até que chegue outro verão!”

“Mas eu a amo e a energia lhe darei,

comigo a permanecer o ano todo!”

Golpes de espada estalavam já a rodo.

“Que a arrebate nunca permitirei!”

Anêmona e suas damas companheiras

temiam das vidas estar nas horas derradeiras!

Mas Augustus, ao perceber-se superado,

deu um assobio e de um desfiladeiro,

surgiram cavalos a galopar ligeiro

e embora se afastassem para um lado,

foram as damas pela cavalhada atropeladas,

somente Anêmona ilesa ainda a ficar:

“Eu trouxe o Foehm para me acompanhar, (*)

com suas quentes lufadas atreladas!”

Mas Firnhart convocou os seus soldados,

em suas armaduras cinza aparelhados

e embora o calor os perturbasse,

eram Pingentes e atravessaram os cavalos,

somente alguns a sofrer quaisquer abalos,

até que Augustus quase sozinho se encontrasse!

(*) Vento quente que sopra no verão através dos Alpes.

Então o guerreiro tirou um chifre da cintura

e de seus lábios um vasto som brotou

e lá do alto, o Sol se requeimou,

lançando raios portentosos de loucura,

já transformados em guerreiros de armadura

e diante deles se derreteram os Pingentes,

por mais que então lutassem bem valentes,

desse calor sem superar a agrura!...

Não obstante mais soldados a estar descendo

da fortaleza, ingressando no combate,

o Rei da Neve apelou, a contragosto,

ao Rei Inverno; com ele a Tempestade já crescendo,

enquanto outra Borrasca de Verão se abate,

em defesa do calor do mês de Agosto!

Nesse momento se travou uma batalha

que fez os picos da montanha estremecer,

Tempestade em Borrasca a se esbater,

as Nuvens apagando a Luz sem falha!

O calor do Vento Sul ataca a Geada,

mil Ráfagas a Saraiva a digladiar,

o Granizo contra o Tufão a pelejar,

a pradaria sendo assim toda assolada!

Buscou Augustus contruir uma muralha

em proteção a Anêmona e a si mesmo,

poucos Raios de Sol descendo a esmo

e na Escuridão de parte a parte,

firme a avançar na mais bélica arte,

o exército da Neve igual metralha!

O Rei da Neve estendeu seu braço forte

e seu manto oscilava qual geleira;

Augustus fez tentaiva derradeira:

brilhante chama projetando como um corte,

lançando-a firme contra o elmo do rei!

Alguns diamantes então se derreteram,

mas frios Coriscos então o acometeram,

tombando Augustus com sua quente grei;

e segurando um dos Ventos por cabresto,

montou de um salto, a cavalgar bem lesto,

abandonando o vasto prélio finalmente!

Porém Anêmona no solo igual jazia

e enquanto o Rei Firnhart combatia,

as três damas a abraçavam tristemente...

O rei da neve e a jovem anêmona 16

Desse modo, quando o combate terminou,

agradecendo ao Inverno e à Tempestade,

Firnhart recobrou a sobriedade

e sua esposa foi ansioso procurar...

Lá estava Anêmona, partida e alquebrada,

suas feições e seu corpo emurchecidos,

pétalas secas em lugar de seus vestidos,

cada dama a lastimar, desesperada!

“Em vão eu quis protegê-la desse Inverno...”

Porém a Rosa das Neves lhe falou:

“Não foi o Inverno, o Calor é que a matou!

Até o ribeiro secou no vasto inferno,

já não há relva a verdejar na pradaria,

ferida eu estava, sem poder dar-lhe energia!”

E em vão o Rei da Neve a segurou,

entre seus braços foi depressa consumida,

logo em poeira, pelos dedos escorrida,

até que dela só a lembrança lhe restou...

Em desespero, Firnhart então bradou,

as três damas a se encolher perante o ardor:

“Ela viveu muito mais do que uma flor!”

Entre soluços, Genciana lhe explicou.

“Mas pouco importa! Não a verei jamais!”

E com passos pesados se afastou,

ao seu castelo destroçado contemplou...

Mas a tristeza fortaleceu-o ainda mais,

seu coração a transbordar de frio

e o castelo soergueu-se em pleno brio!

Foi recolher-se na câmara nupcial,

em que Anêmona tivera, em amor ardente...

Só a memória que agora me sustente,

nestes mil séculos gelados do hibernal!

Ouviu os passos do mordomo, como outrora.

“Geada, me deixe, quero ficar sozinho...”

“Senhor meu rei, conceda só um minutinho,

as Damas da Rainha estão lá fora...”

“E que me importa? Não mais quero vê-las!

Também você que se retire agora!”

“Senhor meu rei,” o mordomo se atreveu,

“Elas insistem que possais recebê-las,

que têm recado a lhe dar de sua senhora...”

“Como assim? Pois não sabes que morreu?”

“Triste verdade, senhor, porém falou

antes da morte, segundo me disseram

e destarte seu recado lhe trouxeram:

pedem urgência, pouco tempo lhes restou...”

“Por mim, que todas em poeira se transformem!”

Mas num aceno de vã curiosidade

ou por um autoimpulso de maldade,

Firnhart concedeu: “Então, que entrem!”

Em sua câmara só entraram três velhinhas,

roupas em pétalas totalmente ressequidas,

os passos trôpegos, perdido seu vigor.

“Que me quereis? Nenhumas graças minhas

haveis de receber! Nem acolhidas,

nem energias que lhes dêem qualquer calor!”

“Não, meu senhor, pedir nada viemos,

ao contrário, aqui estamos para dar,”

falou Genciana, sua voz a tremular.

“Somente algo da Rainha lhe trouxemos.”

“E porque nada me dissestes lá no prado?”

“Senhor, tememos, ao ver a angústia sua,

a dor e a cólera que em seu olhar estua,

como tocar em seu peito atribulado?”

“Pois bem. Estais aqui. Que me quereis?”

“Majestade,” falou Rosa, por sua vez,

“Antes que Anêmona junto de nós morresse,

ela falou: ‘Todas três me jurareis,

mesmo que seja a última coisa se que fez,

que a meu bom rei a mensagem se trouxesse...’”

O rei da neve e a jovem anêmona 17

“Bem, que mensagem, então, vocês me trazem?”

Lírio avançou, já no piso tropeçando,

uma espécie de canudo lhe alcançando:

“Nem sua cólera, nem dor, nada nos fazem,

pois em breve morreremos, todas três,”

disse Genciana, “mas a Rainha nos pediu

que lhe falasse do amor que lhe surgiu,

amor de esposa, não mais de filha, assim se fez.”

“Mas senhor, seu próprio caule ela rasgou,

para entregar-lhe agora este presente...”

Insistiu Lírio. O canudo era rugoso...

“Abra, senhor,” Rosa lhe suplicou,

“mas o conteúdo sustenha firmemente,

tocar não deve seu piso prestimoso...”

Firnhart as encarou, com desconfiança...

Abriu o estojo e meia dúzia de sementes

viu na palma de sua mão já estar presentes.

“Essas sementes são frutos da bonança

desses três meses que de seu leito partilhou,

quando Vossa Majestade a fecundou...”

“Senhor meu rei, Anêmona engravidou:

são filhas suas que em sua palma segurou!”

“Pode guardá-las, se quiser, ou jogar fora,

se as for plantar, que seja uma por ano,

pois outra Anêmona surgirá, sem desengano!”

“E se sua filha amar, qual a amou outrora,

embora morra, ao fim de outro verão,

novas sementes talvez deixem na sua mão...”

“Mas Anêmona nunca irá ressuscitar!”

“Não, Majestade, seca-se a erva e cai a flor,

porém jamais se perderá o seu amor,

caso as sementes decida-se a plantar...”

“E agora”, disse Genciana, “partiremos,

mas estamos fracas demais. Mande um soldado

amparar-nos na estradinha até o prado,

em que as cinzas todas as três derramaremos.”

Ficou o Rei da Neve comovido,

ao ver como já emagreciam e murchavam:

“O seu pedido será pronto conecedido.”

E deu a Geada as ordens necessárias

e as três velhinhas, em curvaturas várias,

lhe agradeceram pelo tempo decorrido.

“Como Anêmona, nós vivemos por demais,

mas se tombarmos no prado como poeira,

nossa morte não será a derradeira,

mas as sementes deixaremos naturais

e ao chegar de mais uma Primavera,

brotarão lírios, rosas e gencianas,

da mesma terra em que formos humanas...”

“Cada uma delas será, porém, uma flor vera...”

“Outras anêmonas também ali irão brotar,

mas nenhuma delas como humana criatura,

salvo, meu rei, se demonstrar a sua ternura

e com cuidado as sementinhas vá plantar...”

Ficou o rei entre feliz e desolado,

Pondo as sementes em seu estojo bem fechado.

E num impulso, marchou até o parapeito:

três Pingentes as velhinhas auxiliaram,

até o prado, em que depois se desmancharam.

seu gelo em água sobre o chão desfeito,

sobre a poeira das três acompanhantes,

Geada e Granizo postados do seu lado,

o terreno a contemplar, ainda encharcado,

pelos Pingentes de Gelo, servos constantes,

que na defesa de seu Rei tinham morrido,

sob o calor tantos se haviam derretido!...

“Logo a Neve chegará, rei e senhor,”

Disse Geada, “e todo o solo cobrirá,

a sua brancura os acalentará

e ao solo fértil darão todo o seu vigor.”

Epílogo

Logo chegou a neve silenciosa

e Granizo a tocar recomeçou.

Não mais de Amor e Morte ele falou,

porém da Neve branca e majestosa,

que recobria Genciana e Rosa,

Lírio das Neves e sua Anêmona querida,

a quem o Fado, por seu Amor, trouxera à vida,

nunca outra Flor a ser igual viçosa...

Mas quem sabe? Talvez no Outono ele plantasse

apenas uma dessas seis sementes...

Seria sua Filha igualmente bela?

Mandou então que o harpista se calasse

e que esquecesse as canções de amor ardentes,

e só cantasse as da Neve e da Procela.

William Lagos

Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com

Recanto das Letras > Autores > William Lagos

Brasilemversos > William Lagos

No Facebook, procurar também por William Lagos