A MENINA CARIDADE
A MENINA CARIDADE – 28/5/2018
WILLIAM LAGOS,
Sobre conto em prosa inglesa de Frances Browne, início do século XIX
A MENINA CARIDADE I
Nasceu Frances Browne há uns duzentos anos,
sendo cedo afligida por cegueira,
por sorte em Braille logo aprendeu a ler;
poucos livros eram então codificados,
mas ela mesma se pôs cedo a escrever
cem belos contos que soubera conceber,
em seu Código Braille, com afanos,
para outros ceguinhos consolação certeira,
antes mesmo que os contos publicados
por Andersen e os Irmãos Grimm o pudessem ser.
Na maioria, apresentou um personagem,
certa menina chamada Brancaflor,
ou Whiteflower, no idioma original,
a qual vivia com a avozinha muito velha,
chamada Dame Frostyface ou, em Portugal,
Senhora Carafria; na narrativa inicial
sentava em um cadeirão, a sua roupagem
de um período do século anterior,
onde à netinha contava um cabedal
de histórias “que escutara de uma abelha...”
Mas ao sentir aproximar-se a morte,
Dame Frostyface despediu-se da menina:
“Viagem muito longa eu vou fazer
e por certo não poderás me acompanhar...”
“Mas, Vovó, quem histórias vai saber
que eu possa escutar com igual prazer?”
“Lembras o cadeirão que eu trouxe da Corte?
No seu assento deita a cabecinha,
mil histórias nela deixei para dizer,
a cada vez que fores me chamar...”
“Apenas pede: ‘Cadeira da Avozinha,
qual história hoje tens para contar?’
E em silêncio, presta toda a tua atenção
que minha própria voz hás de escutar...”
A Senhora Carafria tomou a direção
que todos nós seguiremos em ocasião,
mas Brancaflor ali deitava a cabecinha,
e lá de longe vinha a voz a acompanhar,
em histórias encantadas de emoção,
dia após dia, sempre mansa a confortar...
E Brancaflor muitas vezes retornou
a cabecinha a pôr sobre a almofada,
novas histórias num sussurro ouvindo,
igual que sua avozinha ali estivesse...
Todos pensavam ela estar dormindo,
olhos fechados nesse sonho lindo,
mas muita nova lenda ela escutou,
a gente em torno sem escutar nada,
cada uma delas num caderno redigindo,
à sua maneira, qual em doce prece!
A MENINA CARIDADE II
Certa ocasião, essa história que escutou
se referia à Menina Caridade,
ou Charity, conforme soa em inglês,
para ti a guardar no seu diário...
(Ou Frances Browne foi quem de fato o fez,
em Braille a redigir, mês após mês...)
Não foi coisa que Walt Disney adotou
e nem Perrault conheceu-a de verdade,
nem Madame de Ségur, em seu francês,
a registrou em seu famoso fabulário!
Não, meu amor, quem a contou foi a cadeira
e tão somente Brancaflor a escutou,
para em seu livro deixá-la registrada...
Mas já falei demais! Vamos contar
esta história tão simples e encantada,
em que a bondade será recompensada,
cada tristeza esquecida, bem ligeira,
que num cantinho da Irlanda se passou
e que merece ser de novo recordada,
nos gentis versos deste linguajar!
“Era uma vez...” é o começo mais frequente.
Era uma vez, portanto, uma menina,
a quem Destino dera infelicidade,
seu pai e mãe (os dois!) tinham morrido
de uma doença e, por fatalidade,
ela ficara sozinha... Só por necessidade
o irmão de seu pai, que era o único parente
e a obrigação social assim o inclina
foi acolher a menina, em triste caridade,
sem ter prazer em havê-la recebido!
Não que pesado lhe fosse seu sustento,
o lavrador mais rico a ser dessa região,
possuindo terras e rebanhos à vontade
e um grande número de casas, que alugava;
o dinheiro assim entrava em quantidade,
mas era um pobre avarento, na verdade,
o dote da esposa a lhe dar bom rendimento,
que em grande cofre guardava no porão;
tinha duas filhas, já de boa idade,
porém casá-las, de fato, o incomodava!
Era costume então os pais darem um dote
e ainda pensava ter de pagar a festa
e também dar um donativo para a igreja,
mordida grande nesse seu tesouro
e a chegada da sobrinha enseja
novas despesas que no futuro veja;
à própria esposa pouco dava, que se note;
para o sustento dos rebanhos mais apresta,
que o leite e a lã de qualidade esteja,
boa receita a produzir em prata e ouro!...
A MENINA CARIDADE III
Se com as próprias filhas era avaro
o que dizer com a coitada da sobrinha!
De seus pais não trouxera rendimento,
seria apenas mais uma despesa!
E tinha, além disso, sentimento
de não ter filho homem até o momento.
Um sobrinho me seria bem mais caro,
ensinaria a administar minha fazendinha...
Mas é menina! Só me custa o alimento,
vai me causar problemas, com certeza!
Pensara mesmo em colocá-la num convento,
mas ao falar com a Madre Superiora,
esta cobrou-lhe um bom dote ou uma pensão,
bem conhecendo sua fama de homem rico;
feitas as contas, chegou à conclusão
que tê-la em casa e ensinar-lhe profissão,
sair-lhe-ia mais barato o provimento;
e insistia com ele a sua senhora:
“O que os vizinhos de nós dois dirão?
Se não se importa, envergonhada eu fico!”
“Ela pode até comer com as criadas
e usar as roupas que não servem mais
em nossas filhas! Cobertas vou arranjar
e lá no sótão existe um catre velho...
Se pensar bem, quase ou nada vai custar,
para o trabalho da casa a vou treinar;
talvez dispense uma das empregadas,
tenho uma que só come por demais!”
Assim o tio se viu forçado a aceitar:
“Se incomodar, vou-lhe passar o relho!”
A tia postiça fez como dissera,
mas sem lhe demonstrar qualquer carinho,
o que lhe dava era só de obrigação;
mas a menina era limpa e arrumadinha,
brincava quieta, sem fazer agitação;
tampouco as primas lhe davam atenção,
pois não se interessavam, porque era
muito pequena; e assim ficava no quartinho,
nas suas conversas sem ter aceitação:
começou logo a trabalhar, a pobrezinha!
Mas cada vez em que encontrava uma avezinha,
com pata ou asa quebrada, ela a cuidava;
e se acaso adoecia uma empregada,
levava sopa e a tratava com carinho;
muito em breve, já fora apelidada
de Charity, por ser tão dedicada
ou “Caridade” e até o nome que tinha,
em pouco tempo, ninguém mais lembrava,
em tudo sendo humilde e esforçada,
sem reclamar de um fado tão mesquinho!...
A MENINA CARIDADE IV
Ela levava para os porcos a ração,
dava o milho para todo o galinheiro;
assim que a altura lhe permitia alcançar,
lavava a louça na pia, com cuidado;
jamais se disse que ocorresse de quebrar
um prato ou copo, que depois ia secar
e em guardalouças, com dedicação,
ela os guardava empilhados, bem ligeiro;
contudo a tia nem pensava em a elogiar,
primas e tio sequer chegando do seu lado!
Logo aprendeu também a lavar roupa,
do poço a carregar baldes de água,
talvez até mais pesados do que ela;
só usava as roupas de segunda mão
e mesmo assim, andava sempre bela,
prometendo se tornar linda donzela;
cabelos negros escondidos numa touca,
tudo fazia sem demonstrar mágoa,
somente às vezes qualquer bichinho vela,
ao qual tratava na maior dedicação!
Finalmente, uma das primas foi noivar
com o filho de outro rico lavrador;
a fazer festa o tio foi obrigado,
convidando a maior parte dos vizinhos,
à sua maneira, cada qual mais enfeitado
com o trajo aos domingos consagrado,
mas Caridade foi posta a trabalhar,
servindo à mesa no maior fervor,
todos achando natural o seu cuidado,
ninguém lembrava mais de seus paizinhos!
Durante a festa, alguém bateu à porta,
implorando por gamela de comida:
era a mendiga mais pobre e esfarrapada
que alguém havia encontrado no lugar;
e já estava para ser escorraçada,
mas a menina, sua piedade despertada,
levantou-se da mesa e a conforta,
no seu lugar entre as criadas deu guarida
e como as outras não lhe davam nada,
a metade de seu prato lhe quis dar.
Quando a mendiga se assentou à mesa,
as empregadas torceram-lhe o nariz!
Mas de fato, apesar de seus farrapos,
a criatura não cheirava mal
e até um perfume se exalava de seus trapos.
À Caridade mandaram comer sapos,
mas a menina tinha boa natureza
e à maldosa sugestão nem sequer quis
responder. Foi lavar os guardanapos,
as criadas tudo achando natural.
A MENINA CARIDADE V
Pois a mendiga nem sequer agradeceu,
só indagou: “Onde é que eu vou dormir?”
Elas disseram: “Lá na palha do galpão,
no nosso quarto não existe mais lugar!”
Mas Caridade, com seu bom coração,
a levou até o sótão, sem reclamação
e a mendiga ligeiro se estendeu
na sua caminha e com as cobertas se cobriu;
Caridade precisou dormir no chão:
logo a mendiga começou a roncar!
A roncar seu estômago igualmente,
ela desceu depois que todos já dormiam,
mas realmente, depois que os convidados
haviam saído, o alimento que sobrara
tinham guardado em armários bem fechados,
que no outro dia as sobras aos criados
seriam dadas, coisa bem frequente;
mas nas panelas restos ainda haviam,
pela criança faminta a ser raspados,
que para disfarçar, depois lavara!
No dia seguinte, no momento de acordar,
viu que a mendiga do sótão havia sumido;
quando desceu, a porta ela encontrou
trancada por dentro, como era o costume;
surpreendeu-se, porém não se abalou:
Por janela decerto ela pulou!
Durante a ceia, restos só a aproveitar,
as criadas reclamando ao seu ouvido,
novamente umas batidas escutou:
era a mendiga, a pedir comida e lume! (*)
(*) Fogo, calor.
As criadas novamente recusaram:
“A comida está hoje muito escassa!”
Mas Caridade fez a velha entrar,
outra vez sem mostrar-lhe gratidão;
novamente em seu lugar a viu sentar,
a sua comida inteira a devorar
e as criadas da menina só troçaram;
direto ao sótão a mendiga logo passa,
Caridade no assoalho a se deitar,
passando fome, mas sem reclamação!
E novamente, ninguém dela sentiu pena:
“Estás fazendo regime, Caridade?”
Por mais seis noites a pedinte apareceu,
de Caridade a comer todo o alimento
e em sua caminha cada noite se estendeu
e nem sequer uma só vez agradeceu!
Por sorte, havia leite de manhã para a pequena
e a refeição do meio-dia, na verdade,
porém à noite nunca mais comeu,
as caçarolas já vazias no momento!
A MENINA CARIDADE VI
No outro dia, na hora da ceia,
“Caridade, chegou a tua visita!”
zombaram as criadas, com maldade.
De novo à porta encontrava-se a mendiga,
com um cachorro muito feio, de verdade!
“Não vim comer minha janta, Caridade!”
Do cachorro a menina não receia,
lambeu-lhe a mão, enquanto a velha a fita:
“Mas tem mais fome do que eu, na realidade,
dê-lhe minha ceia e a minha cama, amiga!...”
“Hoje eu tenho de fazer uma viagem
e ninguém quer tomar conta do meu cão:
é muito feio, mas até se porta bem...
No dia mais curto do ano, voltarei!”
Virou-lhe as costas, quase a correr também,
sem Caridade acescentar um só porém!
Muito mais já protestou a criadagem:
“Vais botar fora de novo a refeição,
mas lá no estábulo! Aqui ele não vem!’
“Lá no galpão o cãozinho acolherei...”
De fato, estava perto do Natal
e muito frio em Dezembro faz no Norte;
pela manhã, ao lhe levar comida,
viu que o cachorro tremia, enregelado!...
Sem que ninguém lhe quisesse dar guarida,
trouxe um monte de palha, bem escondida,
depois ao sótão conduziu o animal,
ninguém de novo percebeu esse transporte,
mas o cachorro pulou, logo em seguida
para a sua cama e ficou bem enroscado!
Porém tendo o coração tão generoso,
e também porque o bicho lhe rosnava,
sobre a palha quem dormiu foi Caridade
e suas cobertas com ele repartiu...
A mendiga reclamara, é bem verdade,
que sua cama era dura! “Na minha idade
é preciso um cobertor mais volumoso!”
“É só o que eu tenho...” – a menina lhe falava,
mas o cachorro não mostrou contrariedade
e toda a noite sobre a palha ela dormiu...
Mas de manhã o cachorro já sumira,
do mesmo modo que sua dona mendiga.
Caridade não acordara um só instante,
mas as criadas tinham curiosidade:
“Que luz era aquela tão brilhante
lá no sótão? E a conversa tão constante!”
Caridade respondeu que nada vira,
nem uma luz, nem qualquer conversa amiga.
“Se acendeu fogo, foi coisa delirante,
podes queimar a casa toda, na verdade!”
A MENINA CARIDADE VII
“Mas eu não sei do que vocês estão falando!
E certamente não acendi fogo nenhum!
Quem sabe vocês viram a luz da lua,
a minha janela só tem vidro, é sem postigo!
Eu lhes digo a verdade, nua e crua:
dormi a noite inteira e só flutua
luz nos meus sonhos que passei sonhando!
Vocês sonharam se ouviram som algum,
qualquer voz me acordaria como pua
que me espetasse no ouvido um inimigo!”
“Eu confesso que ao cachorro dei abrigo,
mas estou certa de que nunca ele latiu!”
Curiosa, uma criada nessa noite foi espiar,
viu o cachorro deitado na caminha
e Caridade sobre a palha a ressonar!
Não havia luz e nem som para escutar...
Mas de repente, escutou o som antigo
e a janela devagar se abriu;
pelo buraco da fechadura a espreitar,
o aparecimento percebeu de cabecinha!...
E logo outra! Logo o sótão já continha
uma pequena multidão de cavalheiros
e belas damas do mais fino trato,
trazendo cada uma sua lanterna de cristal!
Diante do cão e no maior recato,
todos pisando levemente, como um gato,
a assembleia inteira logo vinha
curvar-se com meneios bem maneiros
perante o animal, que estranho fato!
Saudando-o todos como a um príncipe real!
“Real príncipe, já preparamos o salão
para o banquete que El-rei nos ordenou,
o que mais quer Vossa Alteza que façamos?”
“Está bem,” falou o cão. “No dia marcado,
A princesa e eu já retornamos
e um visitante igualmente convidamos,
que nunca esteve em nossa comunhão...”
“O solstício depressa já chegou
e para ele sempre preparamos
esse festim a ele dedicado!...”
Que eram homens bem pequenos percebeu,
muito espantada, a criada mais curiosa,
com roupas finas e as damas muito belas,
depois cantaram na mais plena harmonia;
e então partiram, a cruzarem as janelas,
os cavalheiros e as lindas donzelas;
a mais formosa junto ao cão permaneceu,
indagando, em voz clara e deliciosa:
“Já fiamos as tapeçarias e as baixelas
estão polidas... Algo mais ordenaria...?”
A MENINA CARIDADE VIII
E disse o cão: “Nada mais é necessário,
mas conosco seguirá a visitante
que em nosso reino jamais antes pisou.”
Ela saiu também, com reverências,
mas Caridade nem por instante se acordou.
No outro dia, para a patroa ela contou,
no seu rosto ainda espanto visionário...
Disse a senhora: “Mas isso é coisa delirante,
o vinho do patrão você tomou?
Melhor parar com tais impertinências!”
E quando às companheiras revelou
a experiência que narrara à sua patroa,
supersticiosas, meio a se assombrar,
elas disseram: “Você está ficando louca!”
Mas a tia postiça ficou a se indagar,
sem nessa noite o sono a conciliar,
até que, à meia-noite, levantou
subindo a escada e suspirando à toa,
para uma idêntica cena contemplar,
que ao marido foi contar, com sua voz rouca!
“Estás maluca, mulher?” – falou o marido
“Ou por acaso em sonâmbula viraste?”
“Não, querido, eu não tive um pesadelo,
bem ao contrário, fiquei maravilhada!”
“Dorme, meu bem,” disse ele, com desvelo.
“Pois então, foi somente um sonho belo...
Mas vou pegar esse cachorro atrevido
amanhã cedo, que tu não autorizaste
e jogá-lo na rua!” “Há um frio de gelo,
querido! Vai morrer enregelado!”
E como sua mulher intercedeu
e o cão nem latia e nem sujava,
com Caridade deixou-o o tio ficar.
Mas a menina insistia não saber nada:
“Senhor meu tio, eu lhe dei o meu lugar,
fui com metade de minha comida alimentar,
mas nada disso, que eu saiba, aconteceu
e acreditei que a ninguém incomodava...
De manhã, nem sequer o vou encontrar,
só de noite outra vez está na entrada...”
O tio de Caridade era avarento,
mas lá no fundo, tinha bom coração
e se o cachorro não lhe custava nada,
não via mesmo razão para o escorraçar,
mas sua mente ficou um tanto perturbada
e se acordou, durante a madrugada,
subindo a escada, com passo manso e lento
e novamente chegou a estranha multidão.
O avô lhe contara haver entrada,
perto dali, para uma terra singular!...
A MENINA CARIDADE IX
E se são gente do país das fadas
ou elfos ou duendes do lugar?
Por via das dúvidas, vou cuidar melhor do cão!
Mandou assar bom pernil de carneiro
e o foi levar, com até boa intenção,
para ao cachorro dar boa refeição.
E se é um príncipe das terras encantadas?
De modo algum convém o maltratar!
E quem sabe, se com essa boa ação,
algum tesouro me mostrará ligeiro?
Nessa noite, após chegar o animal,
com o pernil foi subindo pela escada,
mas seu presente o cachorro rejeitou
e começou a rosnar e até a ladrar!
O tio de Caridade se assustou,
no chão do sótão o pernil deixou,
descendo a escada em confusão total.
Será que achou a carne mal assada?
Ou quem sabe, minha avareza adivinhou,
só por cobiça o querendo alimentar?
Mas essa noite, chegada a hora da ceia,
O silencioso cão pôs-se a latir
e ao mesmo tempo na porta bateram:
era outra vez a mendiga esfarrapada!
Já com medo, as criadas se esconderam,
até os parentes sua ceia suspenderam!
Caridade foi abrir. Nada receia
e a mendiga quis na casa introduzir.
“Os nove dias que falei se completaram
e o solstício chega nesta madrugada!”
“Conforme disse, meu cão eu vim buscar,
sei de certeza que o trataste muito bem;
minha gente a cada noite o veio saudar
e uma festa já nos foi bem preparada.
Para nossa própria terra eu vou voltar
e comigo esse cão negro vou levar
e a ti convido a nos acompanhar,
que a festa se destina a ti também!”
Caridade aceitou, sem hesitar
e iniciaram todos três a caminhada.
Logo a seguir, toda a estrada rebrilhou,
com a luz de lanternas e carruagens
e logo as damas e aqueles cavalheiros
apareceram, em seus trajos deslumbrantes.
Tocavam cem clarins e trombeteiros,
harpas da Irlanda e dezenas de gaiteiros;
xairel dourado cada cavalo ostentou, (*)
pedras preciosas e ouro nas roupagens,
mais uma escolta de brilhantes mosqueteiros
e arqueiros em uniformes mais galantes!
(*) Cobertura no dorso do animal
A MENINA CARIDADE X
Vinha vazia a primeira das carruagens,
lacaios e cocheiro de librés suntuosas;
para dentro, de imediato, o cão saltou
e a Caridade a mendiga conduziu...
Mas de imediato o cão se transformou
em jovem príncipe e diadema o coroou
e a mendiga, em iguais visagens,
virou princesa, com jóias fabulosas!
Caridade, em puro espanto, se calou,
e então o par principesco lhe sorriu...
“Somos irmãos da dinastia real
que o país das fadas há miríades governa.
Mas sempre desconfiamos dos humanos,
que ou nos perseguiam ou adulavam,
na esperança de presentes soberanos
e um com a outra então nós apostamos...
A humanidade eu julgava muito mal,
pensando terem só maldade eterna,
em um teste logo ambos concordamos,
ela afirmava que alguns disto se salvavam...”
“Mas eu dizia que não havia caridade
e ela jurava que ainda existia;
fazer a prova nosso pai nos permitiu,
El-Rei das Fadas e Elfos Irlandeses!
De feios trapos ela se revestiu
e eu fui o cão a quem tanto assistiu.”
“E para o teste ter maior intensidade,”
disse a princesa, “eu a tratei com grosseria,
comi o dobro do que me repartiu,
tomei sua cama todas essas vezes!”
“Perdi a aposta,” o príncipe falou.
“Não é em vão que a chamam Caridade!
Terei portanto de a festa financiar,
também pagar por todos os presentes!
Nosso pai quis assim determinar,
quem perdesse com os gastos devia arcar,
com as riquezas que dos avós herdou;
mas vou pagar sem animosidade,
pelo prazer que tive em a encontrar,
com tantas graças no coração assentes!”
Ao país subterrâneo foi levada,
igual que a superfície luminoso
e num palácio de luxo inigualável
ela ficou durante uma semana,
a divertir-se, com prazer inimitável,
dançando muito, sentindo-se incansável;
pela manhã estando ainda descansada,
porém deitando no leito mais formoso,
para dormir gentil sono inefável,
que dos melhores sonhos se recama!
A MENINA CARIDADE XI
No dia seguinte a fazer belos passeios,
aquela imensa terra a conhecer,
por toda parte sendo acompanhada
pelo princípe, que por ela se encantava,
por quem também já estava apaixonada,
por silkies e hobgoblins a ser saudada, (*)
sem de qualquer má criatura ter receios,
sempre o príncipe a lhe dar vasto prazer
que, finalmente, ao final de uma jornada,
o seu amor por ela declarava!
(*) Criaturas mágicas da mitologia irlandesa
“Você agora tem a altura exata,”
disse o Príncipe, adulto, mas pequeno,
como ali eram todos os habitantes.
“Há muito tempo eu procurava namorada!
Encantamentos faremos, como dantes,
porte e altura a conservar interessantes,
sem que mais cresça, a partir desta data.
Essa altura dos humanos é um veneno,
traz-lhes doenças e dores incessantes
ou então falecem de forma inesperada!”
“Já nós vivemos por séculos dos seus
e caso aceite me entregar sua mão,
será comigo igualmente uma princesa...”
“Mas eu ainda sou uma menina!”
“Não vai crescer, mas com toda certeza,
de uma mulher logo terá toda a beleza!
Quero apenas escutar dos lábios teus
que me desposará nesta mansão!”
“Eu nada tenho senão a minha pobreza...”
“Meu pai lhe deu de diamantes uma mina!”
“Todo ouro tem que possa desejar,
porém teremos de adiar o casamento,
até que atinja sua maioridade,
muito mais cedo do que possa imaginar!”
disse a princesa, beijando Caridade
com um sorriso pleno de bondade.
E depois de nove dias ali se achar,
Caridade se acordou com um sentimento
de não mais ser criança sem vaidade,
pois seus encantos podia observar!
Chegaram logo o rei e a rainha,
com o belo príncipe e a irmã formosa.
“Nove anos se passaram, minha querida,”
disse o príncipe. “Quer casar comigo agora?”
“Não sem a permissão ter conseguido
do senhor meu tio, para a boda consentido.”
“Respeito a decisão, minha jovenzinha,”
disse o rei. “Em sua terra perigosa
por meu séquito serás bem protegida.”
Bateu com o pé no chão: “Vamos embora!”
A MENINA CARIDADE XII
Pois Caridade, vestida de veludo
e adornada de joias e tiara
viu-se de novo sentada na carruagem,
para a casa de seu tio em direção;
tudo era igual e diferente na pastagem,
haviam crescido as árvores da paisagem.
Ao vê-la, o tio ficou de espanto quase mudo.
“Não pode ser! És Caridade, minha cara?
Há nove anos deixaste esta paragem,
mas não cresceste, só mudaste de feição!”
Ela notou que haviam envelhecido
o tio e a tia e ainda perguntou:
“Minhas duas primas, onde elas estão?”
“As duas casaram,” disse a tia, comovida.
“Foram morar em distante plantação...
De seu retorno qual é hoje a razão?”
O estentóreo comando do rei foi ouvido:
“Só aqui viemos porque ela desejou
para seu próprio casamento a permissão,
embora a “minha” já tenha conseguido!”
Cairam os tios de joelhos, nesse instante:
“Perdoe minha tolice, Majestade!
Foi imperdoável não poder reconhecê-lo!
Mas dote à altura eu não poderei pagar!”
“Para notar que é um tolo, basta vê-lo,
não necessito de si qualquer desvelo,
a sua bênção para ela é o bastante.”
“Mas é claro! Tem nossa bênção, Caridade!
Mas toda essa multidão me causa zelo,
festim adequado não posso organizar!”
“Vejo que continua avarento, fazendeiro!
Mas quem precisa de qualquer festim?”
O seu cetro estendeu com majestade,
caindo chuva de moedas sobre o chão:
“Eu lhe darei o dote, na verdade!
Vai precisar, quando passar necessidade
e se esvaziar seu cofre bem ligeiro!...”
E com um gesto, chamou toque de clarim,
partindo todos, na maior solenidade,
deixando o ouro a reluzir sem proteção!
E no país das fadas celebrou-se
o casamento, com pompa e circunstância,
a jovem noiva na maior felicidade
e como se vive nessa terra longamente
é bem provável que a formosa Caridade,
viva feliz com seus filhos, sem maldade...
E se você com esta lenda regalou-se,
repita a história, em total veracidade,
que nunca mais seja esquecida novamente!
Entre os povos de língua inglesa, o número nove tem o mesmo valor simbólico e mágico que entre nós o número sete. Até o gato tem nove vidas! A expressão “maravilha de nove dias” é muito antiga. Em 1600, William Kemp, ator cômico elizabetano que interpretou Dogberry na estreia de Much Ado About Nothing, de Shakespeare (1599), foi desafiado a dançar entre Londres e Norwich, distância de cento e tantas milhas (mais de 160km) que realmente cobriu em nove dias; amigos lhe davam comida e água ou vinho e ao chegar em Norwich desmaiou de cansaço e dormiu por outros nove, só se acordando para as refeições. Como duvidassem, apresentou as testemunhas e escreveu Kemps’ Nine Days’ Wonder, relato publicado em 1600, iniciando por Em que a jornada de cada dia é alegremente descrita para satisfazer a verdade e seus amigos, contra as mentiras dos compositores de baladas: o que ele fez, como foi recebido e por quem foi alimentado. As atas do Conselho Municipal de Norwich registram o pagamento de seu prêmio. Mas a origem da expressão é anterior, indicando alguma coisa maravilhosa realizada em nove dias ou algo que se torna aborrecido após esse período. O primeiro registro manuscrito consta em 1325 dos Harley Lyrics, mas o primeiro impresso é de 1465 quando o Duque de Orléans, enquanto aguardava resgate na Inglaterra após a batalha de Azincourt, mencionou que seu cativeiro foi uma maravilha de nove dias “como diz o antigo provérbio”. Em 1633, George Herbert escreveu que O orgulho e a vaidade da vida são uma maravilha de nove dias e após a morte, o corpo de um homem comum vale tanto quanto o de um famoso rei.
William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
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