Ao Relento
Quando o inverno chegou à cidadezinha, '' Parco'', os flocos de neve mancharam de branco as árvores e plantas, abafaram a euforia dos animais que tiveram de se esconder e obrigou os moradores mesquinhos a tirarem os casacos empoeirados do guarda-roupa. Digo que os moradores eram mesquinhos, porque ali ninguém se preocupava com ninguém. Para eles pouco importava a dor e o sofrimento alheio, apenas olhavam para o próprio umbigo e para as próprias necessidades.
As primeiras noites trouxeram um terrível frio como presente. E não demorou muito para os lagos congelarem junto aos peixes escamosos, os pássaros suspenderem os cantos, as formigas reservarem alimentos, e as crianças se entreterem com bonecos de neve. Haviam bonecos e outras esculturas de neve espalhadas por todas as ruas, ( a maior delas estava na rua Ipê, ao lado do mercadinho) e no chão anjinhos construídos por braços e pernas como ferramentas.
Um dos responsáveis por estas obras marotas era o Felipe. O garoto vivia com os pais, a sra. Marcela e o senhor Luís, em uma boa casa. A sra. Marcela raramente saia do quarto onde acompanhava pela TV a novela das sete chamada Sonho Febril, os filmes da tarde, e o jornal da manhã. Fazia questão de ter conhecimento de todos os fatos, tragédias, ocorridos no mundo, mesmo não se interessando. O sr. Luiz (advogado famigerado) trabalhava mais do que conversava, abrindo a boca apenas durante os cincos minutos de descanso mental para falar de futebol com o amigo ao lado. Para ele o mais importante da vida era o dinheiro, pois sem dinheiro não poderia pagar as contas, viajar, e comprar arranjados ternos. E sem estas coisas citadas, não haveria motivos para levar a vida adiante (segundo ele, é claro).
O rr. Luiz e a sra. Marcela sentavam-se todas as noites por volta das nove horas na sala de estar, horário em que o gordo jantar devorado já não pesava tanto a barriga. Nem se que interagiam entre si, apenas jogavam caça palavra, telefonavam para parentes de vez em quando, e liam revistas. A sra. Marcela comprava todas as terças um exemplar da revista de bolso, As Donzelas, para aprender a produzir forros de mesas (mas nunca colocava os dedos em uma agulha, por mais fácil que fosse o tutorial).
Enquanto os pais gastavam o tempo inutilmente, o pequeno Felipe olhava o quintal pela janela imaginando o que faria na companhia dos amigos quando acorda-se no dia seguinte; tinha em mente jogar xadrez bebendo chocolate quente. E Felipe bocejava sonolento quando fitou a figura miúda se aproximar. Ouviram o barulho da campainha. '' Ding-Dong.''
_ Quem será esta hora? Com certeza um xexelento desprovido de obrigações. _ Vociferou o patriarca, a ponto de rasgar as anotações que concluía e disparar as veias de nervo na testa.
_ Verei quem é, querido.
A matriarca sacudiu o vestido rosa que pegava no joelho e abriu a porta de pouco em pouco espiando pela fresta. Temia ser um ladrão a incomodá-los, que poderia apontar uma arma para ela. Mas se enganou! Os seus olhos lhe mostrou a imagem de um velho de aproximadamente oitenta anos, vestindo calça, camisa rasgada e toca de lã na cabeça. A pele coberta de rugas, a boca ressecada chegando a sangrar por minúsculos cortes, os joelhos magros trêmulos lutando para sustentar o peso do corpo. E os braços...estes, encolhidos para minorar o frio que lhe arrepiava dos pelos nos dedos dos pés aos do pescoço.
_ Olá. _ Rouco, comprimentou-a demasiado simpatico_ Peço encarecidamente que me deixe entrar e passar apenas esta noite... com vocês. Caso não for possível acolher-me, dê-me uma reles coberta. _ Tossiu.
O Sr.Luiz veio de encontro a porta e a bateu xingando o velho de , ordinário, maldito e outros terríveis nomes conhecidos que prefiro excluir desta narração.
O velho se entregou ao frio, os ossos de seu corpo travaram, os dentes bateram um contra o outro, de cima contra os de baixo, e ali faleceu transformando-se em uma grande planta carnívora, e, devorando a casa da egoísta família, tijolo por tijolo, como castigo.
Os três(pai, mãe e filho)correram desesperados implorando por ajuda, berrando aos altos '' socorro, socorro!'' Porém os vizinhos ignoraram o pedido. E no final, fora a Sra. Marcela, o Sr.Luiz, e o pequeno (pagando amargamente pelo erro cometido pelos pais)que passaram a noite perambulando feito mendigos, tremendo de frio.