A aração
Não havia hora específica para a sua manifestação, mas era menos frequente pela manhã, quando em tese, antítese e síntese, estávamos na escola. Mas o mais certo é que ela viria, começando como o venticello da calúnia da ópera, até chegar ao grau de avassaladora das barrigas operárias mesmo. Afinal éramos todos petizes e as guloseimas da casa de vovó nos atiçavam o desejo.
E à volta da mesa, acompánhavamos de olhos compridos a faca de Tibebé partindo o bolo, ou a sua colher de ferro metendo-se na panela para pescar a carne "muciça", que de tão maciinha desfazia-se antes até das gulosas mordidelas. Biscoito frito, creme de leite Moça ou um pedaço de pão de sal que tia Rita fatiava e guardava na lata de cera Parquetina no quarto degrau da prateleira compunham também objetos de nossa insaciável cobiça. Não avançávamos, ou subtraíamos na clandestinidade contudo, mas mais até que os nossos lábios, era o olhar cúpido que nos traía e, embora raramente não atendido, ou repetido, o desejo valia-nos o apodo de meninos arados, que pareciam ter vindo do Ceará...Arado do Ceará...
E o distante Ceará, de Alencar, e da Musa HLuna de nosso Recanto, entrava ali mais do que por mera aliteração, eu infiro. Devia ter a ver com o quadro que Raquel de Queirós, entre outros, viera a entronizar com a sua descrição das secas calamitosas que engendravam tanto sofrimento e tanto êxodo do Estado...os retirantes. Só que eles não contavam com a despensa generosa - embora caprichosa - do pessoal da vovó...