SUA MAJESTADE NO REINO DA BOBAGEM
O rei não é bobo. Ele pode até fingir que não está vendo, mas bobo ele não é. Anda com suas pantufas para não sujar os pés, mas bobo ele não é.
Bota as luvas para tocar em tudo, não quer sujar as mãos. Ele sabe que as mãos se sujam, algumas sujeiras saem com água e sabão, outras não, ele sabe porque bobo ele não é.
Gosta de usar óculos escuros, a claridade o incomoda, sabe disso e sabe de tudo além das aparências, não se senta em qualquer lugar, apenas nas suas almofadas de veludo, gosta de conforto, sabe que nem todos do seu reino têm direitos a conforto, ele sabe porque o rei não é bobo.
O rei sabe bem de cálculos, para ele é um para mim, outro para mim, depois um pouco para ti e o resto para mim. Ele sabe que falta um tanto de tudo para os outros, porque os cálculos dele são meio esquisitos, sabe porque ele não é bobo.
O rei toma banho na banheira, almoça quase sempre um banquete, descansa em um quarto enorme, de cama confortável e climatização agradável, sabendo que em muitas casas dos seus súditos não têm banheiro, falta a eles comida e muitos dormem nos bancos das praças ao relento, no frio e chuva.
O rei sabe tudo porque o vento faz o favor de contar-lhe, e mesmo sabendo disso, o rei ronca enquanto ronca a barriga de quem não comeu nada durante todo o dia.
Ele se faz de bobo, é divertido pelo bobo da corte que o apresenta alguns casos ocorridos com o seu povo. O rei dá boas gargalhadas com a desgraça alheia, achando que o povo sofre porque quer e gosta. O rei se mostra sensível, todavia não passa de um esperto.
Sempre que olha pela janela, só enxerga o seu jardim bem cuidado, de vista alegre e arborizado, entretanto ele sabe que existe um mundo mais adiante feio, triste, descuidado e estampado de tristeza, um tantão assim, mas ele faz que não ouve, não vê, não sente, mas o rei sabe, sabe porque ele não é bobo.
O povo já está organizando um alerta com cartazes, frazes e gritos de ordem. Vão fazer um ato no portão do castelo e a guarda já está avisada para resistir, porque o rei sabe, como sabe, ele não é bobo, é muito sabido, gosta de viver iludido, achando que todo o povo é bobo, mas o povo não é bobo, o povo sabe, sabe de todas as coisas, pena que não age.
O povo também é rei, finge que não vê, não escuta, não sente as dores de ser ignorado. Uma parte do povo anda com pantufas para não sujar os pés, botam as luvas para não mostrar que as mãos estão cheias de calos de trabalhos escravos... Mesmo cansado, o povo não quer sentar em qualquer lugar, quer sentar nas almofadas do rei, fingem que não sabem que existem os cães latindo para os deixar longe do rei.
O rei e seus súditos são personagem cômicos, mas também trágicos, ambos sabem que não são bobos, mesmo assim se fazem, como se fazem.
Marcus Vinicius