Houve um estrondo como o ribombar de mil trovões, e o Anjo Negro cobriu  a terra com sua sentença de morte: “Tudo está perdido. Apagado. A  Verdade e princípio de fé; tudo está morto. Deus está morto.” Ouviu ainda  o tropel de muitos cavalos, e o tinir de espadas da corte celeste em luta contra as forças do mal. Acordou. Seu semblante pálido revelava medo. Emília estava fria.
— Por onde andaste em teus sonhos?
— No paraíso perdido.
— Encontraste o fantasma da ópera?
— Quase isso.
— Então conta que mundo é este que habita teus sonhos!
— Nunca  viste uma boneca descartada porque tem algum defeito? Vi uma muito ferida. Tinha  chagas ainda abertas por mordidas do lobo. Devia sentir dor e solidão. Disse ser uma ovelha abandonada pelo rebanho, mas foi ela que se desgarrou. E já não sabia mais como encontrar o caminho de volta.  Ovelha nunca deve abandonar o  rebanho! Sozinha, torna-se  presa fácil.
— Há muitas ovelhas enfermas. Incautas, elas mergulham na escuridão e caem em profundo abismo. Gritam e seus gritos não ultrapassam a barreira dos muros abissais.
Emília tinha  a voz arrastada.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As meninas  crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emília morreu. Quero um velório com todas as honrarias que ela merece.
Corina entendeu que era preciso penetrar no mundo das crianças, para compreender o recado que elas mandam aos adultos nas falas e diálogos estabelecidos com as bonecas.  Era hora de guardar a boneca de Ravenala, como ela, Corina,  guardara a sua quando ficara mocinha.

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Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou"