O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA
NOVAS SÉRIES DE WILLIAM LAGOS -- 4-8/10/2017
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA -- 4 OUT 17
O CÃO GULOSO -- 5 OUT 17
A GALINHA E O MILHO -- 6 OUT 17
A GALINHA DOS OVOS DE OURO -- 7 OUT 17
A PELE DO URSO -- 8 OUT 17
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA I -- 4/10/17
(Baseado em lenda hindu contada em prosa por Malba Tahan).
Caso creiamos em um douto pensador,
Chiang Fukiang, que dois séculos nasceu
depois de Kung Futseh, celebérrimo chinês,
homem algum furtar se pode à dor,
não apenas na China em que viveu,
em qualquer ponto que sobre a Terra vês:
por mais ditoso então que um homem seja,
infeliz se acha por ter sorte malfazeja!
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA II
Naturalmente que isto não é assim.
Sempre há motivos para infelicidade,
desgostos ou doenças, porém o pessimismo
é uma doença hormonal e tem seu fim
pelos remédios que há na atualidade,
sem que por isso resulte no otimismo:
tudo depende, na verdade, do balanço
entre os hormônios e toxinas em remanso...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA III
Mas sobretudo é questão de circunstâncias
e da forma com a qual as enfrentamos
ou nos deixamos por elas dominar.
Malba Tahan descreve-nos instâncias
sobre a forma com que os males dominamos
ao invés de nos deixarmos controlar:
muitos contos a deixar-nos de tal arte,
em que alegria até hoje nos reparte!...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA IV
Houve um tempo que a inteira Índia do Norte
fora por Najagra, um Maharaja, unificada.
Prosperidade e justiça a se encontrar;
não somente era excelente a sua sorte,
porém tinha sensatez morigerada,
buscando o bem entre seus súditos semear:
e era assim por todos abençoado,
por ser sábio e bondoso o seus reinado!
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA V
Não obstante, havia ali um dissabor:
o Príncipe Karima, filho e herdeiro,
fora assolado por total gaguez!...
E por mais que trocassem seu tutor,
os médicos e atendentes, verdadeiro
era seu mal, a manchar sua sensatez:
e o Maharaja receava que, ao morrer,
fosse afastado e tomassem-lhe o poder!
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA VI
Que então julgassem Karima deficiente,
por mais que se mostrasse inteligente,
bom guerreiro e em tudo preparado...
Mas sendo gago, como falar à gente?
Saberia, é certo, escrever perfeitamente
os seus decretos, mas o povo era iletrado:
Teria um arauto de ler esses decretos
e os ambiciosos ficariam muito inquietos!
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA VII
Mas por mais tentasse astrólogo ou adivinho
e as preces com fervor dos sacerdotes
erguidas fossem ao panteão das divindades,
nada curava a gaguez do pobrezinho
e pelas costas, a zombaria e os dichotes,
ameaçavam lhe roubar as dignidades,
e deste modo, quando o pai lhe falecesse
seria provável que algum nobre o depusesse!
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA VIII
Contudo, pelo povo era estimado
e ainda temiam que diferente soberano
se demonstrasse bem diverso governante;
e muito rico já pensando, preocupado:
"E se vem outro, para nosso dano,
criando impostos de forma delirante?"
Karima há de seguir como seu pai,
porém um outro bem mais cobrar-nos vai!..."
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA IX
Assim, um dia, um carregador de água,
um pobre jhimvar, lançou-se aos pés do rei,
beijando a terra à sombra de seus pés:
"Majestade, a ousadia traz-me mágoa,
pois nunca nome ou casta possuirei,
porém justo e magnânimo sei que és."
"Ergue-te, súdito, pede o que vens pedir."
"Não, Majestade, só que me possa ouvir..."
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA X
"Nada quero para mim. Porém bem sei
quanto a gagueira de Karima o atormente
e assim me atrevo a fazer-lhe sugestão!
Que ao invés de falar, seu filho, ó rei,
apenas cante -- ou, pelo menos, tente!
Tenho certeza que de Krishna a boa mão
será apoiada sobre a sua garganta,
já que "quem canta, seus males espanta!"
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XI
Ficou o Maharaja bastante surpreendido,
mas seu Vizir, que sempre o acompanhava,
declarou: "Majestade, eu já o ouvi cantar,
sem que então seja pelo entrave afligido...
Pelo aguadeiro, talvez a voz de Krishna falava!
Por que não fazê-lo experimentar?..."
E como todo o Conselho concordou,
Najagra lições de canto lhe marcou!...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XII
E maravilha!... O Príncipe Karima
logo cantava tudo à perfeição
e nas palavras não mais tropeçava.
até mesmo a descantar com bela rima...
O Maharaja, assim tomado de emoção,
ao pobre jhimvar ricamente compensava:
Não lhe cabia erguê-lo de sua casta,
porém riquezas lhe deu o quanto basta!
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XIII
E foi assim que em qualquer ocasião
mostrava o príncipe a sua inteligência,
seus bons conselhos e vasto entendimento,
sempre cantando em perfeita afinação
a melhorar a pouco e pouco sua fluência,
admiração a receber em tal momento!...
Porém, passada a primeira maravilha,
já retomavam da maledicência a trilha!...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XIV
Alguns passaram mesmo a arremedá-lo
e o Maharaja, em sua sabedoria,
começou a responder em voz cantada.
Seu bom Vizir foi, enfim, aconselhá-lo:
"Majestade, sugestão eu lhe faria:
E se em sua corte toda palavra falada
substituída fosse inteira pelo canto?
Não haveria para o herdeiro desencanto!"
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XV
Foi aceita a sugestão. Najagra decretou
não somente que se cantasse em seu Conselho,
mas que os guardas, os servos e os escravos
sempre cantassem! E a melodia ecoou,
talvez desafinando qualquer velho
e os invejosos ficassem mesmo bravos,
mas a ordem foi depressa obedecida,
com orquestra dando a nota requerida...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XVI
Todos depressa se acostumaram
e logo o príncipe alcançou maior respeito,
as melodias todo o castelo a percorrer.
Mais tarde, quando a Karima coroaram,
depois que o pai por Brahma foi aceito,
a tradição houve por bem permanecer
e até nas ruas o povo já cantava
e assim seus próprios males espantava!
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XVII
Não obstante, certo dia um viajante,
em embaixada do bizantino Imperador,
apresentou-se de Karima à capital
e no momento em que chegou o viandante,
surpreendeu-se a encontrar tanto cantor,
alguns cantando bem; outros, bem... mal.
Um de seus guardas começou a troçar,
mas Kasimiros não pôde concordar.
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XVIII
"Tal costume deve ter um bom motivo
aqui essas gentes me parecem bem felizes
ou ao menos mostram ter cordialidade..."
O dono da estalagem, nada esquivo,
explicou: "Senhor, se vais ao palácio, como dizes,
deves também cantar com boa vontade:
É proibido falar nas dependências..."
"Mas na cidade também há tais exigências?"
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XIX
"Não, por aqui não é obrigatório,
mas estamos ficando acostumados
e o certo é que há cordialidade,
em consequência de tal regulatório;
os criados e os guardas bem armados
falam cantando ao andar pela cidade...
Mas veja bem, para cantar com melodia
é forçoso que se encontre uma harmonia..."
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XX
"E é mais difícil que surja discussão
quando é preciso pensar para cantar...
Foi muito boa a decisão do Maharaja!
Há estrita paz, de forte aceitação,
assim não temos ocasião para brigar
quando musica suave entre nós haja...
Pois se o senhor pretende agora ir ao castelo,
prepare a voz para entoar um canto belo!..."
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXI
Destarte Kasimiros, o Embaixador,
desde o momento em que chegou ao portão,
já começou melodias a entoar
e com o jovem Maharaja achou favor
e um bom tratado assinaram na ocasião,
depois de cem banquetes partilhar...
Após um mês, reiniciou a viagem,
saudado em cantoria na estalagem...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXII
E quando ele à pátria retornou
e apresentou-se para o Imperador
de Constantinopla, mostrou-se ele interessado
e por capricho, a seguir determinou
que no teatro apresentasse igual labor
como na Índia fora por moda consagrado:
e com a ajuda de um seu companheiro,
um bom enredo foi composto bem ligeiro...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXIII
O espetáculo agradou todos, realmente,
sendo imitado pelos demais compositores,
entrando em voga nos palcos e cenários,
sendo o gênero da ópera ali nascente...
Esqueçam-se, portanto, outros autores
das pretensões de quaisquer lugares vários:
Surgiu em Constantinopla, hoje Istambul,
no Chifre de Ouro, sobre o mar azul!...
O REINO DA PERPÉTUA CANTORIA XXIV
Pois contrariando a cada historiador,
não foi Giacomo Peri o inventor,
nem Monteverdi seu grande difusor...
Foi Kasimiros que a estreiou primeiro,
séculos antes de Veneza... Mas ligeiro
tomou Byzâncio o Grão-Turco invasor,
que proibiu ali sua representação,
por não ser mencionada no Alcorão!...
QUATRO FÁBULAS DE LA FONTAINE:
O CÃO GULOSO I -- 5 out 2017
Era uma vez um cão muito ambicioso
que sua comida jamais queria repartir
e até a enterrava, para não a dividir
com qualquer outro cão mais pretensioso.
Ele julgava cada osso um fabuloso
tesouro, que roía até dormir,
patas em cima, para nunca permitir
que o roubasse rival mais ardoroso!
É claro que gostava do tutano
e preferia que carne ainda tivesse...
Se outro cão encontrasse, ele rosnava
como um resmungo de feroz tirano,
até que o outro do desejo se esquecesse
e assim comendo sozinho ele ficava!
O CÃO GULOSO II
Mas certo dia, passando sobre ponte,
com belo osso preso nos seus dentes,
latindo sempre, para espantar valentes,
viu outro cão parado nessa fonte!...
Grande e mau como ele, num reponte,
rosnando alto! E nos seus beiços quentes
mantinha um osso de tamanhos surpreendentes,
petisco grande que sua gula mais remonte!...
E começou suas presas a mostrar,
mas lá embaixo já o outro fez igual...
Quer o meu osso, mas não me vai tirar!
Quem sabe o dele eu possa então ganhar?
Com a boca cheia, ladrava mal e mal:
também o outro se estava a arreganhar!
O CÃO GULOSO III
E tanto o cusco assim se enfureceu
que acabou em ladridos, ferozmente;
abriu o focinho e o osso, infelizmente,
em queda livre, para o rio desceu!
E o outro cão já não tinha mais o seu!
Os dois acuavam de forma impertinente,
nenhum dos ossos percebendo visualmente,
pois sob as ondas o osso se perdeu!
E com um pulo, nas águas se lançou,
mas a iguaria já descera na corrente
e não se via mais sequer o outro cão!
Desapontado, enfim raciocinou:
Mas era eu mesmo, não outro diferente!
Perdi um osso, mas aprendi uma lição!
A GALINHA E A ESPIGA I -- 6 OUT 2017
Certa galinha espiga inteira achou
e como era bastante empreendedora,
pensou: Vou plantar meu milho agora!
E bem depressa seus amigos convidou.
Com o galo, o pato e o ganso ela falou:
"Quem me ajuda a roçar por uma hora?"
Todos disseram precisarem de ir embora
e então a pobre galinha se esforçou
e deixando a espiga escondidinha,
foi debicando toda e qualquer erva daninha,
até arranjar um terreno de plantio...
Mas a terra estava dura e ela pediu:
"Quem me ajuda a escavar esta terrinha
até estar pronta para plantar a hortinha...?"
A GALINHA E A ESPIGA II
Mas foi o galo tão só cacarejar,
o pato espadanando na lagoa,
o ganso só ciscando numa boa:
"Temos mais coisas com que nos ocupar!"
Assim a galinha precisou bicar
a terra inteira debaixo da garoa,
os seus amigos só passeando à toa:
pobre galinha, de trabalho a se matar!
Depois pediu: "Quem vem agora me ajudar
a plantar cada grão em sua covinha?"
"Por que não come logo a espiga, sua tolinha?"
Ela sabia o que queria... e o solo foi cavar,
abrindo as covas com assiduidade,
três grãos soltando com regularidade!
A GALINHA E A ESPIGA III
Depois, ela pediu: "Vamos limpar,
para o milho poder crescer bem alto e forte!"
Mas de novo não teve melhor sorte:
nenhum amigo decidiu-se a lhe ajudar...
E quando veio a hora de apanhar,
dando um saco de milho de bom porte,
nenhum de novo veio ajudar no corte:
teve sozinha de tudo carregar!...
Transportou tudo para a sua cozinha,
colocando o milho novo na panela,
bem trancadinha lá no fundo de sua toca!
Sentindo o cheiro, veio a turma depressinha,
mas ela disse: "Fiz sozinha a obra bela,
e hoje sozinha vou comer a minha pipoca!"
A GALINHA DOS OVOS DE OURO I -- 7 OUT 17
Um certo dia, ao chegar ao galinheiro,
um lavrador percebeu estranho brilho...
Será que pingou chuva em grão de milho?
Logo ficou muito espantado esse granjeiro!
Pois era um ovo de ouro no poleiro!
Montou a cavalo, da vereda tomou o trilho,
recomendando muito firme para o filho:
"Guarde bem essas galinhas no terreiro!"
E na cidade, logo vendeu o ovo de ouro,
comprando uma porção de mantimentos,
contando tê-lo achado na floresta!...
Já no outro dia, encontrou novo tesouro:
comprou um cavalo, roupas, implementos,
juntou a família e fizeram uma festa!
A GALINHA DOS OVOS DE OURO II
E assim foi, durante uma semana,
até que veio a guarda e confiscou
a maior parte dos ovos que ele achou:
"A prefeitura da floresta é a soberana!"
"Vamos ter de nos mudar com breve gana!"
falou para a mulher: "A guarda nos roubou
quase tudo que no poleiro se encontrou!
Se não entrego, me botariam em cana!..."
Disse a mulher: "Pois olhe dentro da galinha,
que ela deve ter no papo muito ouro!
Em algum lugar pelo mato andou ciscando!"
Não descobriram o local de onde ela vinha,
nem a origem de um tão vasto tesouro,
por mais que o ponto andassem procurando!
A GALINHA DOS OVOS DE OURO III
E vendo mesmo que deveriam se mudar,
o camponês conversou com sua mulher,
decidindo não esperar mais dia sequer,
mas a pobre galinácea esquartejar!...
E depois de a avezinha degolar,
procuraram no seu papo, mas sem ver
e nas suas tripas foram remexer,
sem sequer uma pepita ali encontrar!
Voltou a guarda e os artigos que comprara
levou consigo, dizendo ser o imposto
e o casal ficou assim sem a galinha
e sem as coisas que antes alcançara,
no desaponto do maior desgosto,
perdido assim até o pouco que antes tinha!
A PELE DO URSO I -- 8 OUT 17
Um caçador, durante a primavera,
notou os rastros de um urso na floresta.
Disse à mulher: "Vamos fazer a festa!
Muito dinheiro se encontra à nossa espera!"
"Eu vou caçar depressa aquela fera
e a carne nós salgamos dessa besta
e a pele inteiramente que então resta
vamos curtir, que grande preço gera!"
Disse a mulher: "Vai-nos dar muito dinheiro?"
"Ora, se vai! Podem fazer um bom casaco
ou, quem sabe, um grosso cobertor!"
"E assim compramos boas coisas bem ligeiro!"
"Os meus sapatos já estão num caco!"
"E os meus também! Já nem me dão calor!"
A PELE DO URSO II
"Só que não posso matar o urso a tiro,
que vai fazer feio buraco no pelame
e nem a flecha ou lança que o inflame,
enquanto o cabo com cuidado eu giro!"
"Tenho cuidado a cada vez que miro,
mas se furar já nos acaba com o reclame;
vai ser difícil consertar, caso se dane!
Com a adaga é complicado, mas me viro!"
"Querido, não vai ser muito perigoso?"
"Não vou negar. Para evitar esse perigo
uma armadilha vou tentar -- mais vagaroso,
"vai dar trabalho, mas não sou um preguiçoso!"
E assim abriu uma cova funda e fez abrigo:
pensava ao urso dar destino tenebroso!...
A PELE DO URSO III
Então ficou a esperar pelo animal
e quando o urso, enfim, apareceu,
viu a armadilha, recuou e se escondeu...
E o caçador, em decisão fatal,
tentou matá-lo com a adaga no final
e do buraco à sua frente se esqueceu!
Pisou em falso e na cova se perdeu,
pedindo ao urso: "Não me faça mal!"
Mas riu-se o bicho: "Ora, eu não como gente
e o seu casaco não tem nada de belo!...
Naturalmente, posso rasgá-lo em postas..."
"Mas que lhe sirva de lição, seu imprudente!
Nunca fará outro casaco com meu pelo,
enquanto ainda o tiver sobre minhas costas!"