O RETRATO MISTERIOSO &+

O RETRATO MISTERIOSO & MAIS

(Folclore chinas, versão poética de William Lagos, 13/18 agosto 2017)

O RETRATO MISTERIOSO ... ... ... 13 AGO 17

FURTANDO SONHOS ... ... ... 14 AGO 17

ESTRELA-GUIA ... ... ... 15 AGO 17

DESMAIO DA TARDE ... ... ... 16 AGO 17

MUTANTES ... ... ... 17 AGO 17

ALTERNÂNCIA ... ... ... 18 AGO 17

O RETRATO MISTERIOSO I

Em uma pequena aldeia recolhida

entre as montanhas setentrionais da China,

vivia gente mais ou menos esquecida,

calmamente a cuidar da própria sina...

Nenhum espelho conheciam até então,

seus rostos só entrevistos na ocasião

na água pura que se põe numa bacia

ou na lagoa que por ali havia,

trêmulas sempre, em detalhes imperfeitas...

Certo dia, ali passou uma carruagem

que transportava uma formosa dama,

sem no local interromper a sua viagem,

cujo destino bem distante a chama

e enquanto o próprio rosto contemplava,

num solavanco e sem querer, jogava

o espelhinho da janela pelo vão,

partido o cabo quando bateu no chão,

vidro e moldura perdidos no capim.

Ao ver o cabo no ar se projetar

que seu espelho se quebrara ela pensou;

mesmo assim, a carruagem fez parar

e o cocheiro pelo objeto procurou,

os dois lacaios e a sua acompanhante

também o buscaram por um longo instante,

mas a carruagem já bastante havia avançado

e o espelhinho não pôde ser achado,

até que a dama ordenou seguir viagem.

“Eu tenho outros espelhos,” disse ela

“e já está ficando muito escuro...

Se fosse dia, brilharia como estrela,

mas deve ter rachado e estar impuro...

Vamos agora seguir nosso caminho,

sem mais atrasos só por espelhinho,

que a noite se aproxima bem depressa

e no escuro de espreitar não cessa

qualquer desastre ou perigo de assaltantes!”

O RETRATO MISTERIOSO II

Ficou afinal o espelhinho abandonado,

perdido entre cem tufos de capim

mas no outro dia, um camponês atarefado

para seu campo caminhava assim,

quando viu um lampejo sorrateiro

e foi pensando: Alguém perdeu dinheiro!

Foi depressa procurar no capinzal,

tateando aqui, mexendo ali e, no final,

a sua mão se fechou sobre o espelhinho!

Ora, é preciso que nos recordemos

que nunca espelho aparecera nessa aldeia!

Ao encontrá-lo, não nos espantemos

que o camponês, que a tradição nomeia

como Kiki Tsu, nessa ocasião, de fato,

pensasse fosse apenas um retrato!

Viu ali homem com o olhar amendoado,

moreno e jovem, bem apessoado,

sem pensar nele estar fitando a própria face!

Bem ao contrário, o rosto lhe lembrou

os traços de seu pai, já falecido...

Quem o retrato de meu pai pintou?

Por que no mato o deixaram esquecido?

Será um aviso de que eu vou morrer?

Será que o morto vai me aparecer?

Mas eu cumpri os funerários ritos,

não há razão para espíritos aflitos!...

Se for um aviso, o que de mim exigirá?

Destarte, o espelho ele enrolou num pano

e o guardou, com cuidado, na sacola;

mas durante seu trabalho, sem engano,

a estranha dúvida a sua mente esfola...

Por que encontrei o retrato de meu pai?

Quem nas macegas jogá-lo um dia vai?

Há pouco tempo o fez, é coisa certa,

a fisionomia está clara e bem desperta,

não houve tempo para ela desbotar!...

O RETRATO MISTERIOSO III

Por ter ficado assim tão perturbado,

não quis mostrar o objeto à sua mulher.

Esse retrato foi só por mim achado

e não por outro camponês qualquer.

Não sei se Lili Tsu o respeito mostrará

devido ao honrado pai que aqui está!

Talvez julgue ser feitiço e até o destrua!

“Esse retrato que você achou na rua

boa coisa não é!” – me afirmará!...

E assim pensando, ao retornar a casa,

escondeu-o na areia de um jarrão

em que se expunham peônias cor-de-rosa

recortadas em papel, fabricação

da própria esposa; e com o máximo cuidado

as retirou, deixando o espelho ali enterrado,

sem outra vez contemplá-lo pretender;

porém a dúvida foi impossível de conter

e volta e meia ia olhar de novo o pai!

Quando os filhos e a mulher adormeciam,

ele até ia com essa imagem conversar!

E então pensava, ao ver que os lábios se moviam:

Quem pôde a alma de meu pai aprisionar?

Sempre antes de sair, verificava

e erguia as flores do jarrão quando chegava...

Sempre a figura parecia ser do pai,

mas em sua mente outra dúvida recai:

Sua testa franze e suplicar-me até parece!...

Mas Lili Tsu, sua esposa, percebeu

e quis saber por que tanto se encerrava

naquela sala da casa em que nasceu,

mas responder a suas perguntas evitava!

Naturalmente, a boa esposa desconfiou,

mais de uma vez as perguntas reiterou,

mas ele nunca lhe queria responder:

tinha medo que seu pai fosse sofrer,

se por acaso ela o retrato destruísse!

O RETRATO MISTERIOSO IV

Mas quem resiste à curiosidade

ainda mais Lili Tsu sendo mulher!?

Só com seus filhos ela ficava, na verdade,

quando o marido ia tratar do seu mister...

E assim se pôs a senhora a investigar

por que o marido ia na sala se encerrar,

mas não achava ali a menor pista,

por mais que revistar a peça insista,

até que um dia notou certa diferença...

As peônias de papel estavam tortas...

Por que Kiki Tsu as colocara mal?

Examinou com cuidado as flores mortas,

pois não queria estragá-las, afinal;

e vendo a areia por baixo remexida,

seus dedos enfiou, bem precavida,

e um objeto quadrado ali encontrou,

que facilmente para fora retirou...

Santos Deuses! É um retrato de mulher!

Que de sua própria face se tratava

nem suspeitou, só que a mulher era bonita...

Logo seu rosto, de raiva, se enrugava

e a imagem toda a mesma raiva agita...

Mas como é feia, de fato, essa mulher!

Não há razão para a admirar sequer!

Por que Kiki Tsu vem contemplá-la tanto?

E seus olhos se toldaram com seu pranto,

Sem nem notar que a imagem lacrimava!

Foi totalmente tomada por ciúme:

Esse infeliz arranjou uma namorada!

Só toma banho para ocultar o seu perfume,

não se contenta em encontrá-la pela estrada,

mas seu retrato foi trazer ao nosso lar!

Será que intenta de fato me afrontar?

E o guardou dentro do jarro, cuidadosa,

recolocando as peônias, prestimosa...

Esse bandido vai ter que se explicar!

O RETRATO MISTERIOSO V

Tão perturbada estava, que nem fez

o jantar habitual para o marido

e nem seu banho preparou, desfaçatez

que Kiki Tsu percebeu, mal acolhido...

Ele mesmo o seu banho preparou;

logo a seguir à mesa se assentou,

mas esperou em vão pelo jantar...

Disse à mulher: “Por que me estás a maltratar?

Qual a estranha razão desse desleixo?”

Inicialmente, ela nem queria falar...

Pão e queijo para si ele arranjou,

pois realmente, não queria brigar,

até que os filhos na cama ele arrumou.

Só então indagou: “Por que motivo sou tratado

tão diferente do que estou acostumado?

A ti eu trato com respeito e com carinho

quando após árduo trabalho me avizinho,

por alimento ansiando e por repouso!...”

“Eu não mereço ser tratado com maldade!”

Lili Tsu em sua mudez insiste...

“Tratei-te sempre com a maior bondade!”

“Mas agora, de repente, me traíste

depois dos cinco filhos que geraste!”

“Mas, como assim? Não entendo o que falaste!”

Eu sou fiel e nunca me afastei,

bem ao contrário, só amor te demonstrei,

muito mais que a maioria dos maridos!”

“Confessa logo que pretendes me trocar

e que arranjaste uma nova namorada!”

“Mas de onde foste tal ideia retirar,

se eu passo a vida no trabalho e na morada!

Trago o sustento pelo meu cansaço

e quando chego só desejo o teu abraço...”

“Mentiroso! Eu descobri o seu retrato,

lá no jarrão enfiado sem recato!...

E o pior é que é mulher bem feia!...”

O RETRATO MISTERIOSO VI

“Queres dizer que mexeste no jarrão...?”

“Mexi, sim, e descobri o teu segredo!”

“Por que o retrato te faz tanta comoção?

É o retrato de meu pai! Eu tinha medo

que acreditasses ser feitiçaria,

e o quisesses destruir, em antipatia!

Foi só por isso que não disse quando o achei

e sob as peônias do jarrão o resguardei...

Mas é o meu pai!... Não é nenhuma namorada!”

“Claro que é um retrato de mulher!

Eu olhei bem!... Então pensas que sou cega?”

“Estas maluca, mulher! Para te satisfazer,

eu vou buscar!...” Em sua mão o espelho entrega.

“Viste só como é o retrato de meu pai?”

“Mas pensas que sou louca?” Logo Lili Tsu vai

apontando para um rosto feminino...

“Teu pai, é claro, tinha rosto masculino!

Mas para mim isso já cheira a bruxaria!”

“Ela arregala os olhos e arreganha

os dentes!... Então pretendes me matar?

Nunca pensei que tivesses essa sanha!

Se não me queres, basta apenas me deixar!”

Kiki Tsu a contemplou, sem compreender.

Tomou-lhe o espelho, novamente a ver

o rosto de homem que pensava ser do pai!

Outra vez Lili Tsu ao objeto pegar vai,

de novo vendo ali só um rosto de mulher!...

Nenhum dos dois conseguia compreender

porque o outro assim teimava em contrariar,

pois o marido a seu pai pensava ver,

e a mulher outra mulher a contemplar!...

E prosseguiram nessa altercação,

já pela rua os seus gritos fortes vão,

indo aos ouvidos de um bonzo que passava,

cheio de paz no açafrão manto que envergava,

que foi então sendo tomado de surpresa!

O RETRATO MISTERIOSO VII

E revestido de religiosa autoridade

já enveredava pela porta aberta,

sem licença pedir, pois, na verdade,

nem seria escutado, nessa incerta

confusão, já quase em luta corporal,

já em ameaças de dano material!...

Mas se interpôs entre os dois, com mansidão:

“Meus filhos, mas por que essa discussão?

Belo casal, que serve até de exemplo!...”

Assim o monge interrompeu a altercação:

“Por favor, fale um de cada vez...”

“Ele escondeu um retrato em meu jarrão

da namorada, mulher até de feia tez!...“

“Não é verdade! É o retrato de meu pai!”

fala o marido. Abençoá-los então vai

o gentil monge, mas primeiro busca ver

qual o motivo de tal discórdia acontecer

e Kiki Tsu lhe alcança o espelhinho...

“Veja bem! As feições são de meu pai!”

“Mas Lili Tsu o arrebata por sua vez:

“Não estou louca! Essa mulher contrai

a boca inteira e ainda enruga toda a tez!”

Tomou o bonzo nas mãos o espelhinho.

“Mas vejam só!... Este é o retratinho

de um santo e venerável sacerdote,

de Confúcio a transmitir o manso dote,

até envergando o sacro manto de açafrão!”

Ficam os três na maior perplexidade:

cada qual olha e avista rosto diferente!

Rezou o monge para a sua divindade

e logo inspiração lhe chega à mente,

pois já ouvira falar em certo espelho...

Falou, ajeitando seu manto vermelho:

“Cara Lili Tsu, nos traga uma bacia,

cheia de água límpida da pia

e a deixe ali parada sobre a mesa!...”

O RETRATO MISTERIOSO VIII

Ele esperou que a água se acalmasse

e disse à esposa: “Vá olhar-se agora:

veja essa imagem que na água nasce

e olhe o retrato nessa mesma hora!...”

Lili Tsu os contemplou, surpresa,

murmurando a seguir, já sem defesa:

“É o mesmo rosto, na água e no retrato...”

“Seu próprio rosto, minha filha, simples fato...

Seu marido não arranjou outra mulher...”

Logo a seguir, fez o marido contemplar

o reflexo de seu rosto na bacia

e com o retrato então o comparar:

sua dupla imagem em ambos então via!

“Não é seu pai, meu filho, é você mesmo,

toda essa briga foi travada a esmo.

Isso é um espelho e reflete cada imagem...

Desculpem-se os dois agora com coragem:

os dois erraram, sem dúvida qualquer!”

“Mas de onde você tirou esse objeto?”

“Achei na estrada, padre, onde brilhava...

Pensei ser de meu pai dote secreto...”

“Quando era moço, a você se assemelhava,”

disse o monge. “Foi um erro natural,

não precisava que causasse tanto mal!

Mas como a tal discórdia deu abrigo,

acho melhor levá-lo, então, comigo...

Vou colocá-lo no altar, perto do gongo!...

Assim que ele saiu, falou Lili Tsu:

“Caro marido, irá perdoar-me esta tolice?”

E respondeu-lhe, de pronto, Kiki Tsu:

“Não, meu amor, perdoe a minha burrice!

Eu deveria ter-lhe mostrado mais confiança

e lhe mostrado o tal “espelho” sem tardança...”

“Não, meu querido! Eu seguiria a ver mulher,

mas tu verias um homem, sem concordar sequer...

No fim das contas, foi real feitiçaria!...”

EPILOGO

“Graças aos deuses, veio o bonzo aconselhar

e acabou com nossa briga tão idiota!...

Desculpe agora, vou servir o seu jantar

e jamais torno a seguir por essa rota!...”

Assim os dois, alegremente, se beijaram

e nunca mais por ciúmes disputaram...

Contudo o monge pensou... e em cem pedaços

reduziu o espelhinho, pois seu traços

insistiam a contemplá-lo em zombaria!...

FURTANDO SONHOS I – 14 AGO 17

Espero que a Lua esta noite deseje

que tenhas apenas seis sonhos de paz,

que a um sono dolente o amor também traz

a Lua em brancura que aos ventos bafeje;

que o cinto de Órion também te lampeje

três sonhos isentos do mal que perfaz,

a lavar pesadelos na mais pura aguarrás,

três sonhos de luz em que a alma te adeje.

Que algum meteoro mais três te complete

uma dúzia de sonhos sem medos fatais,

a poeira de estrela a flutuar-te em confete

que em páramos doces permita-te andar,

tristeza banida de tais dons siderais,

iridescência pairando sobre teu repousar...

FURTANDO SONHOS II

Que encontres duendes para ti benfazejos,

que ao pontos indiquem em que crescem maçãs,

totalmente maduras, porém sempre sãs,

paladar adoçando ao pingar dos desejos;

e que num segundo, borboletas aos beijos

os ramos percorram de castanha e avelãs,

que ponham ovinhos tais quais fios de lãs,

nos caules macios ao fremir dos ensejos.

Que seja o terceiro sobre dunas de areia

de praia tranquila, sem qualquer poluição,

as conchas em baile com estrelas do mar;

no quarto sequer algum mal se receia,

pois nele percebes em gentil procissão

hipocampos marolas pelas vagas formar!...

FURTANDO SONHOS III

Que o quinto sonho te mostre sete anões

a transportarem sacola e picareta

para sua mina de diamantes mais secreta

tais jóias colhendo sem ganga ou senões.

No sexto sonho te apareçam multidões

de elfos entoando as suas canções de esteta,

gaitas de fole, cornamusas e a dileta

flauta transversa ao sopro dos pulmões.

Que seja o sétimo só um sonho de cometas,

em cujas caudas te permitam cavalgar

depois joaninhas, com asas em aletas,

tapetes móveis a crescer sob teus pés,

abracadabras do teu lado a murmurar

tão dadivosas quanto forem as tuas fés.

FURTANDO SONHOS IV

No oitavo sonho ao reino irás das fadas,

vendo Oberon e Titânia a te sorrir,

depois Polegarina em vagem a dormir,

degraus de teia a te servir de escadas.

No nono sonho mansas gôndolas levadas

sobre o orvalho, em lavanda a reluzir,

cachos de uvas teu coche a conduzir,

pelo teu décimo sonho encarregadas.

Que venha em trança de sol o sonho onze,

na luz mortiça de um tom crepuscular,

não mais de ouro, mas de cromado bronze,

e no décimo segundo os mais queridos

de teus parentes e amigos a abraçar,

tanto os que lembras quanto os já esquecidos...

Estrela-Guia 1 – 15 AGO 17

O Hoje é uma mágica do tempo,

Conectando o Passado com o Futuro,

Cada minuto a tombar logo de maduro,

Para o minuto que o precede pouco atento,

Para ao minuto que o segue dar alento,

Cada intervalo com igual destino duro,

Acumulados como estrelas em monturo,

Pingos de tempo em manso desalento.

Nada mais breve que a vida dos Minutos,

Com a exceção apenas dos Segundos,

Sendo menores, se houvessem, os Terceiros!

Sem que ninguém por eles ponha lutos,

Por mais que em paz e amor sejam fecundos,

Na longa pista de skate os parelheiros!...

Estrela-Guia 2

Cada minuto uma prateada correntinha,

Fina e macia. igual que teus cabelos,

Tentaculares na força de seus elos,

Em diuturno balbuciar de ladainha.

Quando algum passa, o seguidor já vinha

A empurrá-lo, apesar de seus apelos;

A ampulheta não guarda seus desvelos,

Foice de ouro que das uvas se avizinha.

Cada minuto é num cofre armazenado,

Formando as horas e dias do passado,

A transformar-se, devagar, em gelatina,

Na tessitura de um sonho complicado,

Que se perfura, às vezes, feito mina,

Para encontrar um instante já olvidado.

Estrela-Guia 3

O tempo é amor, congelado como amora,

Ou qual morango, mil pequenos bagos,

Após sorvido cada instante em breves tragos,

Sem que interrompas, fluindo sem demora.

Cada minuto que nos chega nos espora,

Mas sem doer, segundos são afagos,

Cada dia em refluir formando lagos,

Um por-do-sol acoplado a cada aurora.

Nele contida encontrarás cada lembrança,

Coalescida em intangibilidade,

Memória apenas... sendo nossa estrela-guia,

Bem lá no fundo as coisas de criança,

Da adolescência, após as da maturidade,

Teu microcosmo de que nada se perdia.

Estrela-Guia 4

Pois nunca afunda esta tua Arca de Noé,

Sobre o dilúvio a flutuar do esquecimento,

Catalisado ali o total do pensamento,

Cada hora de vigília e o sonho até;

Na inundação fica difícil tomar pé,

Que o dia presente impõe o seu momento

Nesse antanho de minuto em passamento,

Interligados por semente de tua fé.

Estrela-guia o teu espírito somente,

Tecla de atalho para os cantos de tua alma,

Para os segundos do futuro um sorvedouro,

Longa planície, que desmesuradamente

Engloba tudo de tua vida em calma

Em comunhão classificando o teu tesouro...

DESMAIO DA TARDE I – 16 AGO 17

O Sol girava, afirmavam os antigos,

ao derredor da Terra, num pairar,

cada crepúsculo no horizonte a se ocultar,

sobre os picos das montanhas nos jazigos.

Se iluminasse os povos inimigos,

algum feitiço viera lhes roubar

a claridade que nos traz a luz solar,

seu conforto limitado a seus abrigos.

Mas também criam ser a Terra plana

e então o Sol precisava se acalmar

e de algum modo ao nascente retornar

desses limites que impunha a crença insana,

tal qual se a Terra possuísse alguma adega,

bebendo vinho o Sol nessa bodega!...

DESMAIO DA TARDE II

Depois pensaram que a Terra giraria

em torno de seu eixo e não do Sol

e nesse giro provocasse o arrebol,

quando o Sol bêbado então se acordaria!

Durante séculos essa crença persistia

de que ao redor da Terra esse farol

diariamente percorresse um vasto rol,

a iluminar-lhe cada fímbria que existia!

Sabemos hoje que não seja mais assim:

prende-se a Terra ao Sol em filamento,

invisíveis esses nós da gravidade...

domina o Sol os cantos do sem-fim,

sem tomar no horizonte nunca assento,

enquanto a Terra é que o busca em ansiedade!

DESMAIO DA TARDE III

Mas nesse tempo de antanho a gente cria

que o Sol dormia na bainha do horizonte

e ali do Éter captava a fonte

para brilhar depois, já repleto de energia!

A cada píncaro chamado “meio-dia”,

os seus raios distribuía como ponte,

chuva de luz nos prendendo em seu reponte,

enquanto aos poucos para oeste ele descia,

já desgastada a fonte do luzir,

meio exausto do trabalho de alumiar,

buscando a tenda que lhe fôra armada,

para após cada crepúsculo dormir,

sua luz vespertina a desmaiar,

rósea primeiro, depois roxa e acinzentada!

MUTANTES I – 17 AGO 17

(Cumprimentos a O Obelisco Negro, de Erich Maria Remarque!)

Têm os veículos inconstante proporção:

quando se afastam, vão logo se encolhendo,

seu som gritante e fantasmal perdendo,

já obscurecido por diversa auscultação.

Ou se aproximam com menor ocultação:

eram pequenos, mas quando vêm movendo

nas avenidas, a caçar-nos vêm crescendo!...

Você dirá: “Isso não passa de impressão!...”

“O tamanho que possuem é permanente...”

Mas como um Doppler lhes funciona o estridor,

seu som aumenta com a aproximação

e diminui quando partem para o ausente...

Prova precisas que tenha mais valor

que o som perdido ou que tem ampliação?

MUTANTES II

Quando seu som assim aumenta ou diminui,

o que te diz que não muda o seu tamanho?

Nesta percepção então vês algo de estranho?

Para em esquina na qual trânsito flui!...

Seus passageiros então sofrem igual amanho:

quem entra neles a encolher-se anui

(em tal processo, confesso, eu mesmo fui

quando aumentei e encolhi no mesmo lanho!...

São leis, supõe-se, só da perspectiva,

que te provocam tais ilusões de ótica...

Crês mais nas leis que no teu próprio olhar?

Esse conjunto de leis sabes de oitiva,

tuas reações em constrição robótica,

que só os humanos escravizam a aceitar!

MUTANTES III

Pior que os carros, as casas também movem:

chegas mais perto e as paredes vão subindo;

se vais mais longe, aos poucos vão sumindo

e nas travessas... em lateral se locomovem!

Atrás de ti, todas as coisas se removem:

certamente não as vês te perseguindo,

fogem de ti, pouco a pouco diluindo,

sentem tua falta, de algum modo se comovem...

Mas caso olhes para trás, voltam depressa,

se bem menores do que quando ali passaste

e se recuas, dão um jeito de aumentar...

Se da paisagem após cruzar se esqueça,

onde se encontram as coisas que avistaste

ou mesmo as casas... estarão noutro lugar?

MUTANTES IV

Por que precisas de leis de perspectiva?

Já não te basta a lei da gravidade?

Será mais certo quem está na insanidade

ou quem razão aparente ter cativa?

Será a visão racional então nociva?

Será que o mundo tem consanguinidade

com o que concebes na mais tenra idade,

quando essa tal realidade em ti se ativa?

Também pessoas crescem ou encolhem...

O mais estranho é que, se o mencionares,

que quem encolhe és tu, vão te dizer!...

Tua própria imagem será que outros engolem

quando te afastas assim desses lugares

nos quais insistem os demais permanecer?

MUTANTES V

Vou te contar: quando olhas para trás,

para tais coisas que dali haviam sumido,

e então percebes como haviam encolhido,

é que tempo para crescerem não lhes dás!...

Mas quando aos poucos, calmamente, voltarás

para esse ponto que meio havias esquecido,

toda a paisagem que se havia recolhido

já ganhou tempo para ali se apresentar!...

Porém, se olhares depressa para um lado,

verás que tem limites indistintos,

quando o passado foi pego de surpresa!

Que o mundo inteiro só por ti é imaginado

e os contornos se diluem nesses quintos,

até de novo se instalarem com firmeza!...

MUTANTES VI

Ocorre o mesmo que em teu computador,

que oculta arquivos por economia:

mostrar-te tudo requer muita energia;

vão para a “nuvem” os arquivos sem pendor

que não lembres de acessar com mais vigor

e quando os chamas, a memória os cria,

digitalmente, onde ali nada existia:

depende o ritmo de teu processador!...

E que te diz que o mundo a teu redor

não é igualmente um conjunto de memória,

que precisas acionar para enxergar?

De qualquer modo, nesse mundo constritor

há tanta informação feita de escória,

que melhor mesmo é que possa se apagar!

ALTERNÂNCIA I – 18 AGO 17

Sempre haverá algum outono e primavera,

nesse eloquente murchar das estações,

sempre um inverno após tantos verões

e após o inverno o rebrotar de nova espera...

Bem escondidos se achavam os botões,

em deiscência a eclodir da antera,

que espalha pólen em âmbito de esfera,

espalhado pelo vento em borbotões...

Assim amor períodos tem também

de brotações e de aquecimento,

para depois, aos poucos, se amainar...

E nesse inverno do amor a gente tem

a impressão de um total esfriamento,

amor gelado, sem nada nos deixar...

ALTERNÂNCIA II

Contudo, meses de amor também perpassam

e pouco a pouco já se faz primaveril,

o amor de inverno novamente juvenil,

nas emoções que novamente nos repassam...

Vem percepção de mais viver, se nos abraçam,

em sensação empoderada e varonil,

igual anseio em um peito mulheril,

nesses retornos de estio que nos compassam...

Mas é preciso recordar-se a precessão

dos equinócios... Já não vêm no mesmo dia

as estações, tal qual era antigamente,

pois se intercalam, em fugaz agitação:

dias quentes há no inverno; e o tempo esfria

durante o tempo que se esperava quente.

ALTERNÂNCIA III

Assim amor tampouco segue um protocolo:

suas regras mudam indiferentemente

ao que suplica o coração da gente,

os feromônios a deixar em desconsolo!

Eros se apanha e coloca-se no colo,

porém Hécuba já nos morde, gentilmente,

até que Perséfone secreta se apresente,

fugindo a Hades para nos trazer consolo!

Antigamente, eu houvera pretendido

a palavras limitar-me e as alusões

evitar de qualquer mitologia...

Porém amor é um metafísico bandido

e se intromete em tantas ocasiões,

nos suaves beijos de sua velha melodia...

William Lagos

Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com

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