A DEUSA DO FOGO
A DEUSA DO FOGO – 23 JUN 2017
Folclore havaiano, versão em prosa de Keli’i Kalemanu, (1988), versão poética de
William Lagos.
A DEUSA DO FOGO I
Pele, a Deusa do Fogo, é muito poderosa. (*)
sem que ninguém lhe possa resistir;
se em desafio tentam alguns a enfrentar,
ela os recobre com lava espessa e quente,
até que deles nada mais possa surgir
que as pegadas de seus pés a aflorar,
que até hoje ali estão visivelmente,
numa planície negra e portentosa!...
(*) Leia-se com som aberto, igual como em “pele” e não como Pelé.
Leia as palavras em havaiano como se estivessem em português.
Esta é Pele, o próprio Espírito do Fogo,
a grande deusa dos antigos havaianos;
mesmo trocada sua religião antiga,
em suas lendas frequente é mencionada;
pelo Espírito da Água nos embates mais arcanos
seu corpo físico foi morto em longa briga,
seus ossos veem-se em montanha consagrada,
ainda erguendo para os céus seu rogo.
Pele é a deusa majestosa dos vulcões,
feliz morando no grande monte Mauna Loa,
Kilauea, o vulcão, sua fervente habitação;
morto seu corpo, foi o espírito liberto
e para o povo do Havaí é a deusa boa,
sempre pronta a oferecer-lhe proteção
contra invasores que traga o mar aberto,
queimando em lava suas impuras ilusões!...
Como joias de jade são as ilhas
que compõem o arquipélago havaiano,
seus céus azuis com nuvens de brancura,
a destacar-se durante o dia inteiro
contra o Pacífico, o gigantesco oceano,
em seus azuis profundos de ternura
e nelas cada viajante faz roteiro,
quando das águas percorre as longas milhas.
A DEUSA DO FOGO II
Durante as noites o panorama muda:
sobre o vulcão toda a noite se avermelha,
por mais escuro que esteja o firmamento,
igual que cúpula em forma de coroa;
bem lá no fundo a morada se assemelha
a um mar de lava em constante movimento,
no belo cone do monte Mauna Loa,
que o fragor do Kilauea assim escuda.
Mas nem sempre foi ali a sua morada;
já no início do tempo, antigamente,
Pele era apenas uma jovem, semelhante
a qualquer outra vahini que hoje dance, (*)
em sua hula, sedutora e complacente,
em seus colares de flores ondulante,
para acolher quem o seu lar alcance,
sua formosura assim compartilhada...
(*) Jovem solteira, nos idiomas polinésios.
Era filha de Kanehoalane e de Haumea
e então morava numa choça de capim,
com seus irmãos, parecendo tão humana
quanto você e eu, só que mais bela!...
Nos velhos tempos da magia, assim,
quando poderes de validade arcana,
por entre os seres, qual brilhante estrela,
se distribuíam em fúlgida epopeia!...
Namaka, que era a sua irmã mais velha,
apaixonou-se por um deus do mar
e tantas vezes desse amor se aproximou
que ela mesma se virou em água do oceano;
e quando à aldeia buscou retornar,
inundação irresistível provocou,
por acidente, sem odiar o ser humano,
numa atitude que só imprudência espelha!
A DEUSA DO FOGO III
Assim Pele, vendo tantos afogados,
jurou jamais se aproximar da água
e apaixonou-se por Lono Makua,
o antigo Deus do Fogo do Havaí...
Mas então descobriu, para sua mágoa,
que ao mostrar-lhe a sua carne nua,
também em fogo transmutou-se ali,
sem os seus membros ver incinerados!
Mas quando quis para sua casa retornar,
quanto tocava, em chamas transformava!
As plantações ao redor ela incendiou
e cada choça em chamas envolveu!...
E por Namaka só o rancor é que aumentava:
“Não foi minha culpa que o povo se queimou!
Todo esse mal que a tantos sucedeu,
por combatê-la é que acabei por provocar!”
Tal como a água e o fogo se combatem,
Pele e Namaka acabaram por se odiar,
facilmente a discutir e a combater,
já que Namaka exterminar a irmã buscava!
Pele ia as lagoas e os rios a ressecar,
de modo algum podiam as duas se entender,
rivalidade cada qual mais conservava:
rancor e ódio que jamais se abatem!...
Porém Namaka alimentava-se do oceano,
que ao arquipélago totalmente circundava
e desta forma se mostrou mais poderosa,
Pele forçando a sua terra a abandonar!...
Com seus irmãos numa canoa se lançava,
remando em busca de uma terra dadivosa,
em que pudessem erguer seu novo lar,
longe do ódio a persegui-los soberano!
A DEUSA DO FOGO IV
Desembarcaram, assim em Ni’ikau,
ao noroeste do arquipélago havaiano;
mas ao notar que por tufões era varrida,
ali escavaram para construir a sua morada;
e então Pele, com seu poder arcano
e pelo espírito do fogo bem nutrida,
tornou sua própria irmã noutra encantada,
sem intenção de realizar um ato mau...
E a seus irmãos fez espíritos de fumaça,
o vento a todos iria ser desfavorável,
pois certamente a cada irmão dissiparia,
e às duas irmãs faria se apagarem!...
E eles cavaram com ardor insopitável,
o seu trabalho ritmando em cantoria,
desta forma evitando se cansarem,
com tal canção da mais profunda graça:
As chamas bailam para trás e para a frente
e se expandem para cima e para os lados,
nossas enxadas contra a rocha resistente;
às profundezas somos destinados!...
Quem a caverna aqui está cavando
é a linda Pele, à terra retornando,
sua bela casa construindo em Ni’ikau!....
A dança hula surgiu desta canção
e até hoje esta lenda é repetida!...
Mas por mais que os espíritos cavassem,
logo a água do oceano os inundava!...
Era Namaka! – por seu rancor movida,
sem que fogo e água jamais se misturassem;
e logo viram que Ni’ikau não os comportava,
indo buscar para si outra nação!...
Foram então navegando para o sul,
até chegarem à ilha de Kauai
e ali sua casa tentaram escavar
e outra vez juntos cantaram o seu refrão;
as rochas de coral o fogo vai
derretendo, mais fácil a tornar
a dura obra em sua ativação
na ilha verde dentre o mar azul...
As chamas bailam para trás e para a frente
e se expandem para cima e para os lados,
nossas enxadas contra a rocha resistente;
às profundezas somos destinados!...
Quem a caverna aqui está cavando
é a linda Pele, à terra retornando,
sua bela casa construindo aqui em Kauai!....
A DEUSA DO FOGO V
Porém Namaka ainda os perseguia
e o novo poço de água logo encheu!
O fogo e a água jamais se misturam
e novamente embarcaram na canoa...
A ilha de Oahu então apareceu
e em outra escavação eles se apuram,
porém Namaka a eles não perdoa,
por mais forte que lhes fosse a cantoria!
As chamas bailam para trás e para a frente
e se expandem para cima e para os lados,
nossas enxadas contra a rocha resistente;
às profundezas somos destinados!...
Quem a caverna aqui está cavando
é a linda Pele, à terra retornando,
sua bela casa construindo em Oahu!....
De lá partiram, chegando a Molokai
e de novo no trabalho se empenhavam,
fogo e fumaça em louca escavação!...
Esta ilha era maior, porém a água,
ao fim de poucos dias encontravam.
mais uma vez frustrada a sua intenção,
ainda aumentando de Namaka a mágoa,
embora forte a canção que deles sai!
As chamas bailam para trás e para a frente
e se expandem para cima e para os lados,
nossas enxadas contra a rocha resistente;
às profundezas somos destinados!...
Quem a caverna aqui está cavando
é a linda Pele, à terra retornando,
sua bela casa construindo em Molokai!....
Depois chegaram até a ilha de Lanai,
mais uma vez empenhados no trabalho,
já muito longe de sua terra original...
Por todo o dia a sua obra prosseguia,
porem à noite, o som do forte malho
e a luz do fogo no céu meridional
logo Namaka, lá do norte, ouvia e via:
de novo o som da canção apagar vai!...
As chamas bailam para trás e para a frente
e se expandem para cima e para os lados,
nossas enxadas contra a rocha resistente;
às profundezas somos destinados!...
Quem a caverna aqui está cavando
é a linda Pele, à terra retornando,
sua bela casa construindo aqui em Lanai!....
Com grande esforço, alcançaram Mauí.
Pele exausta pela ira de Namaka...
Travaram as duas então feroz combate,
no qual a água, no final, prevaleceu...
Os ossos de Pele, afiados como faca,
a sua irmã empilhou, após o abate:
Ossos de Pele foi a montanha que se ergueu,
em que até hoje eles branquejam por ali!...
A DEUSA DO FOGO VI
Os irmãos de Pele, com a sua irmãzinha,
mais uma vez abordaram sua canoa,
deixando os ossos de Pele para trás...
Só então chegaram à ilha de Havaí,
a maior ilha, localidade muito boa
para cumprir a missão, que ainda os faz
a construir nova morada por ali,
mas sem certeza do lugar que se avizinha...
Então o espírito de Pele lhes surgiu,
para indicar-lhes o monte Mauna Loa,
que imponente se erguia na paisagem...
“Será aqui nossa morada, finalmente,”
disse o espírito, “que este monte do Havaí nos doa!”
Assim os irmãos escavaram com coragem,
grande cratera abrindo internamente,
que a água, desta vez, não atingiu!...
As chamas bailam para trás e para a frente
e se expandem para cima e para os lados,
nossas enxadas contra a rocha resistente;
às profundezas somos destinados!...
Quem a caverna aqui está cavando
é a linda Pele, à terra retornando,
sua bela casa construindo no Havaí!....
Eles seguiram perfurando, até atingir
o mar de lava que ondula sob a Terra,
sem que o oceano ali pudesse penetrar:
aqui seu lar, enfim, fora encontrado!...
Então Pele, finalmente, o embate encerra,
seus irmãos todos ali a se instalar
e pelo vulcão Kilauea está marcado
seu belo canto última vez a repetir!...
As chamas bailam para trás e para a frente
e se expandem para cima e para os lados,
nossas enxadas contra a rocha resistente;
às profundezas somos destinados!...
Quem a caverna aqui está cavando
é a linda Pele, à terra retornando,
sua bela casa construindo no Havaí!....
Esses espíritos revelam a sua presença
na coluna de fumaça que ali brota;
de quando em vez, ocorre também erupção,
como sinal de Pele, em sua potência!
Finalmente completada foi sua rota,
jamais Namaka pode tocar a sua mansão,
e de Pele multiplica-se a influência,
o Kilauea a dominar a terra inteira!...
A DEUSA DO FOGO VII
Pele das ilhas se tornou a governante,
em que ensinou as mulheres a dançar
a bela hula e também toda a culinária...
Mas sem querer deixar mais sua morada,
bravo guerreiro como rei veio a nomear:
Kamehameha, cuja tropa solidária
todas as ilhas submeteu de forma ousada:
ficou Namaka com sua inveja delirante!...
Pois até hoje, Namaka é rancorosa
e quando pode, a Pele desafia;
sua lava ruge, então, até o oceano;
a água acaba por apagar seu fogo,
mas o basalto que dali resultaria,
afasta mais do mar o seu afano,
a terra alarga e ao vulcão traz desafogo,
resta a Namaka só a maré mais fragorosa!
Contudo, aos poucos, a ilha vai crescendo,
de Pele sob a constante proteção,
que suas rochas defende firmemente,
para que o mar não as possa devorar!...
E até hoje, ela demonstra irritação,
caso apareça algum turista inconsequente,
que em suvenir queira pedrinha lhe furtar:
fumaça e fogo então lança, estremecendo!
E deste modo, caso viaje ao Havaí
e então se atreva a galgar o Mauna Loa,
não furte ao monte a sua menor pedrinha!...
Pele é um espírito, e assim, é invisível,
não permitindo a qualquer um furto à toa,
sempre a vigiar cada qual que se avizinha,
lançando bafos de enxofre irrespirável
contra atrevido que a desrespeite aqui!...
William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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