Biomas Brasileiros e defesa da vida: Dom Paulo M. Peixoto

I. Considerações iniciais

Há um ditado que diz: “o Espírito sopra onde e quando quer”. Nisto estão os objetivos da caminhada da Igreja. Certos aspectos identificam muito sua missão, a de trabalhar pela dignidade das pessoas. Assim acontece com a Campanha da Fraternidade no Brasil, completando, neste ano, mais de 50 edições, perpassando por diversos temas, todos eles de importância para a vida no país.

As Campanhas da Fraternidade revelam a sabedoria da Igreja, e são como um sopro de vida para a população brasileira. Os temas têm sido pertinentes às realidades hodiernas, principalmente voltadas para questões que exigem madura reflexão dentro do contexto social. Basta acompanhar o que tem sido tratado, começando lá pelas origens, por volta de 1964.

O objetivo da Igreja não é resolver as questões levantadas, mas de criar espaço de reflexão sobre os temas propostos, criar consciência crítica e formar as pessoas para o cumprimento de seus papéis como sujeitos de uma sociedade melhor. Dificilmente as pessoas realizam aquilo que não conhecem. Precisam ter informações claras sobre os problemas que afligem a vida de todos.

Começou com uma iniciativa localizada, na Arquidiocese de Natal, RN, na Quaresma de 1962 e, em pouco tempo, tomou dimensão nacional e acolhida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Hoje temos a Campanha da Fraternidade consolidada e reconhecida pela Igreja, aberta a todas as pessoas de boa vontade, porque os temas são de interesse da população.

A metodologia usada segue a dinâmica do ver, julgar e agir. São três aspectos que facilitam visualizar os objetivos que devem ser atingidos. Primeiro conhecer a realidade focalizada pelo tema (o ver). Depois conferir as práticas de então com os critérios da Palavra de Deus e com os ensinamentos da Igreja (o julgar). Por fim, indicar caminhos de ações objetivas e concretas (o agir).

Os frutos da Campanha dependem muito das motivações realizadas pelas diversas entidades. Há sempre uma motivação do Santo Padre, da CNBB, dos diversos Regionais, das Arquidioceses e Dioceses, das Paróquias, das Pastorais e Movimentos e de cada comunidade. Todas as pessoas, principalmente os cristãos, são chamadas a “vestir a camisa” de cada Campanha.

II. Introduzindo o tema

A Laudato Si, documento escrito pelo Papa Francisco, revela a profunda preocupação do Santo Padre com a “Casa Comum”, que inspirou o tema da CF de 2016. A avalanche de destruição da natureza vem despertando grande atenção para o problema ecológico. O Brasil sofre as consequências do desrespeito à natureza. O assunto toca na vida de todos nós brasileiros, porque somos o Brasil.

Diante da gravidade da situação de destruição, ninguém pode ficar totalmente insensível. A responsabilidade para o cuidado e a preservação da natureza é de todos, para os de hoje e os de amanhã. Não pensar apenas no agora, porque a vida continua também no futuro. Não preservar hoje é possibilitar grandes sofrimentos para os que virão depois de nós.

Os temas propostos, a cada ano, pela Igreja, através da CNBB, mexem com os interesses da população, porque tocam em questões que afetam a dignidade das pessoas. São temas que focalizam os desvios que a cultura moderna vem praticando através dos tempos. Não são medidas as consequências negativas que causam, mesmo dizendo agir com sustentabilidade.

A Campanha da Fraternidade já se tornou um rico patrimônio da Igreja no Brasil, que coincide com o tempo da Quaresma e direciona o aspecto penitencial próprio desse período litúrgico. É uma riqueza para os católicos e para todos que se preocupam com os assuntos tratados. Provoca momentos de reflexão e desperta para uma ação concreta na vida das comunidades.

Não é o caso de dizer se produz frutos ou não. Pelo menos aguça a mente das pessoas para os sérios problemas vividos pela nação brasileira. No meio de tanta riqueza concedida ao território nacional, as ações humanas precisam ser assumidas com maior responsabilidade. O valor do mercado não pode estar acima dos interesses particulares, prejudicando sua caminhada histórica.

Temos que agir enquanto é tempo. Do contrário, vamos lamentar no futuro e sempre jogar a culpa nos outros. A Igreja tem feito sua parte quando conclama as pessoas para uma reflexão crítica diante dos desvios em relação à natureza criada. Não é fácil formar essa consciência, porque é uma ação que vai na contramão da cultura centrada no progresso econômico utilitário e concentrador.

III. A Campanha deste ano

Em 2017, dando continuidade à reflexão sobre a “Casa comum, nossa responsabilidade”, da Campanha de 2016, foi escolhido como tema, “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida”. O lema de fundamentação bíblica, do Livro do Gênesis 2,15, foi “Cultivar e guardar a criação”. Os biomas brasileiros são uma riqueza inconteste da criação, privilegiando nosso imenso território.

No caminho da conversão litúrgico-quaresmal, a vida seja olhada a partir da dimensão territorial. Cada um dos seis biomas brasileiros (amazônico, caatinga, cerrado, mata atlântica, pantanal e pampa) tem sua importância para a vida cultural de seus moradores. É fundamental que todos sejam cuidados, valorizados e preservados de forma que façam parte da vida de cada pessoa que por ali passa.

Temos que nos orgulhar pela nossa riqueza natural. Como diz o ditado popular: “Deus caprichou conosco”. São espaços de desenvolvimento da vida humana, que depende da qualidade desses locais. O desafio maior é a forma de exploração com sustentabilidade. Isto não está acontecendo, porque vem provocando diversas catástrofes, matando a natureza e tudo que nela sobrevive.

O Papa Francisco, muito preocupado com a ação ecológica destruidora, anuncia a possibilidade de acontecer grandes catástrofes localizadas. Elas já estão acontecendo como fruto de práticas marcadas por irresponsabilidade. Aliás, necessitamos do progresso e do avanço da tecnologia, mas que seja feito sem prejuízo para a natureza, evitando privilegiar só o mundo da economia financeira.

Para quem tem oportunidade de conhecer todo o território brasileiro, certamente fica encantado com as belezas naturais, mas também se entristece vendo realidades totalmente deformadas. Isso está presente em todos os biomas, cada um deles com suas particularidades na forma de exploração. Apesar dos esforços dos que defendem a natureza, a destruição se avoluma sempre.

Com o tema “biomas”, esperamos sensibilizar aqueles que só pensam em “faturar”, em sugar da natureza as suas riquezas. O pecado pesa sobre mineradoras, a monocultura do agronegócio, os desmatamentos, a destruição causada pelo fogo irresponsável, os agrotóxicos indiscriminados, a destruição das nascentes e a concentração de renda sem função social.

IV. Abrangência dos biomas

Ao falar de biomas, numa Campanha da Fraternidade, a Igreja pensa no cuidado que devemos ter para com a natureza, porque entende que tudo é obra de Deus e precisa ser bem utilizado. No centro da questão está a pessoa humana e tudo foi criado para a realização de sua vida com qualidade. Na verdade, Deus quer que as pessoas sejam felizes no relacionamento com a obra criada.

O termo “bioma” significa vida, que está relacionado com todos os elementos vivos contidos na natureza. Devemos explorar a palavra “beleza”, contida nas diversas expressões da natureza viva. Mas quando caminhamos para a destruição, estamos tirando a beleza natural que vem da criação. Basta perpassar pelos diversos biomas brasileiros e sentir, com tristeza, o nível de destruição.

Não podemos nos esquecer da capacidade de recuperação contida na natureza. Basta dar espaço concreto de oportunidade para o seu rejuvenescimento. O perigo é o sugar com excessiva gravidade, não deixando o mínimo para seu próprio desenvolvimento. Temos como exemplo a desertificação do nordeste brasileiro, incapaz de uma recuperação com total eficiência.

Cada bioma, no território brasileiro, tem sua abrangência e particularidades próprias, suas riquezas e deficiências. A Campanha da Fraternidade quer despertar a consciência popular para um compromisso de responsabilidade no contexto da preservação. A água, por exemplo, está diminuindo com o passar do tempo. É sinal de que alguma coisa não está correta e precisa ser corrigida.

Nos seis biomas brasileiros encontramos diversas espécies de riqueza: humana, animal, vegetal e mineral. Cada um deles apresenta características bem precisas, facilitando ou dificultando a realização plena de seu modo de viver. Como a natureza já foi modificada, muitos sofrimentos vão atingindo as condições de vida. É por isso que temos uma forte migração interna no país.

Diante de todas essas realidades presentes em todos os biomas, a Igreja quer ter uma palavra profética, até dizendo um basta à destruição. A sustentabilidade, apesar de proclamada, não tem sido levada em conta com responsabilidade. Vários incidentes lamentáveis estão acontecendo pelo país, que refletem uma cultura desconectada com os compromissos de sustentabilidade.

V.1. Bioma Amazônia

Considerado um bioma verde, com extensão que ultrapassa o território norte brasileiro, mas ferido por exploradores que agem sem critérios éticos. Quem mais sofre com isso são os moradores nativos, aos poucos eliminados pela chamada cultura de “civilizados”. Ali está o pulmão verde do mundo, mas correndo o perigo de perder essa identidade, causando preocupação em todo o planeta.

Além da floresta amazônica ser recheada pela riqueza da madeira, da fauna e da flora, é o bioma das águas, onde está a bacia do Rio Amazonas, formando quase que ponto de equilíbrio para o clima dos outros biomas no país. Toda essa riqueza tem sido alvo de exploração, de forma desordenada, em vários aspectos: madeira, mineração, pecuária, agricultura, hidrelétricas etc.

É uma região onde o povo sofre todo tipo de discriminação, seja pelo trabalho escravo e insalubridade, pela pobreza, pelo tráfico de pessoas e de drogas, seja pela exploração sexual de forma generalizada. A tendência mira para um futuro desastroso para o mundo, sendo causa de grande e constante preocupação por parte das pastorais e movimentos da Igreja que atuam por ali.

VI.2. Bioma Caatinga

Está entre a Mata Atlântica e o Cerrado, de clima semiárido, ocupando Estados do Nordeste do Brasil, constituído pela chamada mata branca, com uma rica biodiversidade. A população vive grandes sofrimentos, muita pobreza, mas também numa enorme capacidade de adaptação em relação ao clima e à falta de água durante longo período no transcorrer do ano.

Em relação à água, muitos de seus rios são temporários, desaparecendo por completo no tempo da seca. A falta de água para evaporar ocasiona a falta de chuva. As consequências são trágicas porque grande parte da população ainda reside no meio rural e depende dos produtos da terra para sua sobrevivência. Uma das soluções hoje é a captação e armazenamento da água das chuvas.

A marca de educação da vida cristã sempre esteve presente no meio do povo da Caatinga. O ensino da catequese, o incentivo para a vivência de fé, a prática dos sacramentos, as festas populares de São João, festa de Reis, rodas de São Gonçalo e muitas outras marcaram profundamente a vida do sertanejo. Temos que destacar a presença do Pe. Ibiapina e Pe. Cícero com suas capacidades de articulação na região.

VII.3. Bioma Cerrado

É considerado o bioma brasileiro mais antigo, localizado na região oeste do país. No passado era área própria para o gado e inadequado para a agricultura. Por causa da aridez, suas árvores são de baixo porte e com raízes profundas em busca de água. Mesmo assim, ali estão os importantes aquíferos do país: o Urucuia, o Bambuí e o Guarani, fontes de vida para grande parte da população.

Todo o bioma é formado por uma riqueza de povos originários, que lutam pela preservação de suas matas. É marcante ainda a existência da agricultura familiar, grupos de assentados, acampados e extrativistas, que esperam pela Reforma Agrária. Lutam pela preservação do solo, da fauna e da flora, porque sabem da sua pouca capacidade de resistência e de regeneração.

O Cerrado tem sido palco de disputas entre o agronegócio, que ocupa a área de forma desordenada, e os povos originários tradicionais. É a ânsia pela exploração econômica, matando a biodiversidade e ameaçando a vida e a cultura dos povos. Diante disso, a Igreja tem reagido através da Pastoral da Terra e da contribuição dada pela Conferência dos Religiosos do Brasil.

VIII.4. Bioma Mata Atlântica

Sua extensão perpassa pelos Estados do Sul e do Leste brasileiro. Uma das áreas mais ricas em biodiversidade, mas totalmente ameaçada e machucada pela destruição. É o caso do pau-brasil, próprio da região, que praticamente não existe mais. As matas foram violentamente derrubadas, dando espaço para a pecuária e a agricultura em grande escala, modificando muito sua originalidade.

Houve grande despovoamento da área rural, provocando o surgimento das enormes cidades, com inúmeros problemas urbanos. Além da exploração do pau-brasil, o bioma passa pelos ciclos da cana de açúcar, do café, do ouro etc. Os colonizadores agiram com ferocidade, não só prejudicando a natureza física, mas também eliminando povos e culturas originais.

O desmatamento do bioma vem, aos poucos, formando o “deserto verde”, mas sofre também com a ação das mineradoras, das hidrelétricas e do agronegócio, ambos prejudicando a qualidade dos ambientes. A reação e ação da Igreja se fizeram presentes já no tempo da colonização, porque tivemos a atuação de diversas congregações religiosas e forte atuação das pastorais sociais.

IX.5. Bioma Pantanal

É um bioma localizado na parte oriental do Brasil. Grande parte de seu território é encoberto por inundação, sendo 80% do território ocupado pelas cheias, com rara beleza e rica biodiversidade. Os índios originários dali estão quase todos extintos. Os que ainda resistem mantêm forte e constante vigilância para garantir seu território, assediados por fazendeiros da região.

Na luta pela sobrevivência, alguns grupos da região vivem em lutas contra fazendeiros ligados a grupos políticos, com a intenção de retomar suas áreas, com isso fazendo dali um lugar de muitas ameaças e de assassinatos. Não é luta por espaço econômico, mas por regiões de tradições ancestrais. Recuperar essas áreas significa conservar a identidade, a memoria, a cultura e a fé desses povos.

A região do pantanal favorece a pesca esportiva, atraindo muitos turistas, mas também o tráfico, a caça e a venda de pele de animais silvestres, principalmente do jacaré e da onça. Crescem ali os problemas ambientais, sociais e econômicos, exigindo ação política das entidades públicas. A presença missionária foi sempre uma preocupação da Igreja com diversos programas de ação.

X.6. Bioma Pampa

O Pampa é formado por campos planos, com paisagem de pequeno porte, da região sul do país. Ali se desenvolve a pecuária em grande escala e uma rica biodiversidade, facilitada pela existência do Aquífero Guarany. O bioma vai, aos poucos, se deteriorando com a perda de sua originalidade provocada pela presença da monocultura própria do agronegócio e da pecuária.

A região foi ocupada pelos jesuítas espanhóis vindos do Paraguai, trazendo consigo indígenas e gado bovino. Quem mais gado tinha, mais terra conseguia ocupar. Depois vieram os negros escravos para os diversos tipos de trabalho. Ficou muito evidente a economia pecuarista familiar, onde a mulher passou a assumir as lidas da família e mantenedora da economia doméstica.

A criatividade culinária, as danças e os costumes marcam profundamente a cultura gaúcha. O chimarrão, o churrasco e a música são riqueza e marca indelével desse bioma brasileiro. Mas certos projetos do governo contrariam a normalidade natural da região, que tem na pecuária e no turismo sua tradição. Preocupa a expansão do plantio de soja, trigo, arroz e mamona.

Hoje há muita pobreza causada pela concentração da terra nas mãos de poucos fazendeiros, os grandes latifúndios. Isso inviabiliza hoje a agricultura familiar camponesa, mesmo sabendo que há muitas famílias de pequenos agricultores, indígenas e quilombolas. Foi nessa região que os jesuítas fundaram as “Missões dos Sete Povos” e há atuação das Pastorais Sociais da Igreja.

XI. Conclusão

Com esta Campanha da Fraternidade a Igreja quer que tomemos consciência da necessidade de preservar esses biomas. É neles que a população vive e constrói sua vida. Ela quer que admiremos a beleza e a riqueza da obra da criação e cuidemos dela com todo carinho e responsabilidade. Não podemos nos conformar com uma cultura que deteriora o meio ambiente e destrói a natureza.

O Papa Francisco, na Carta Encíclica “Laudato Si” (LS 217), propõe uma conversão ecológica, uma mudança de mentalidade e de rumo em relação ao nosso relacionamento com a natureza. A qualidade de vida das pessoas depende muito do cuidado com a preservação da obra criada por Deus. Ela não pode ser explorada de forma irresponsável e sem sustentabilidade.

Não podemos deixar que a avareza massacre a fraternidade. Sabemos que os portugueses, espanhóis, franceses, ingleses e holandeses destruíram a rica selva do pau-brasil, tendo como única motivação a ganância. As mesmas atitudes continuam hoje sem a mínima preocupação com o futuro dos nossos biomas. A única saída é proposta pela Quaresma: “Mudança de mentalidade”.

Dom Paulo Mendes Peixoto

Arcebispo de Uberaba

Presidente do Leste 2

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Enviado por J B Pereira em 14/04/2017
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