O CAVALEIRO IDELPRIM

O CAVALEIRO IDELPRIM

(Episódio histórico-folclórico da Baixa Idade Média Portuguesa, versão poética William Lagos, 25 abril 2016)

O CAVALEIRO IDELPRIM I

No ano de Mil Duzentos e Cinquenta e Seis

corria o reinado de Dom Affonso Terceiro,

chamado o “Pai do Estado Português”,

por distribuir alcaides nos castelos

e juízes pelas vilas, a fim de bem ligeiro

fazer justiça em todas as questões,

muito amado por seus muitos feitos belos,

que de seu povo só granjearam saudações,

embora a inveja de uns certos prelados, (*)

que se julgavam de privilégios despojados.

(*) Dignitários eclesiásticos.

Mais de uma vez tais bispos e abades

foram aos Papas apresentar suas queixas,

mas não lhes concederam suas vontades

devido às lutas contra os muçulmanos,

Portugal todo envolvido em tais endeixas,

sendo mesmo uma cruzada proclamada,

nutrindo dúvidas os pontífices romanos

sobre a justiça da causa apresentada,

sabendo muito bem que tais prelados

eram mais nobres que padres consagrados...

Era costume, através da Cristandade,

o qual por longo tempo perdurava,

até o século dezoito, em realidade,

dar aos nobres bispados e mosteiros.

Ao filho mais velho o título ficava,

para um segundo um bom posto militar,

ao terceiro, os pais interesseiros

iam na Igreja qualquer cargo manejar,

mesmo não tendo qualquer vocação,

só para ter dos estipêndios dotação!...

É natural, portanto, que o Papado,

tomando em conta as “Reais Inquisições”

que Dom Affonso havia inaugurado,

considerasse ter havido exorbitâncias

da parte dos prelados, conforme alegações

de embaixadores do rei de Portugal

que bispos e abades, em tais instâncias

de fato houvessem se apossado, sem aval,

de ricas terras pertencentes à Coroa,

com rendimentos de valiosa proa!...

O CAVALEIRO IDELPRIM II

O irmão mais velho de D. Affonso Terceiro,

Dom Sancho Segundo, seu antecessor,

fora deposto por um papa mais guerreiro,

por opor-se aos prelados, justamente,

em Quarenta e Seis, quando esse anterior

se havia portado com grande arrogância

contra os nobres e o povo de sua gente;

e fora então chamado, nessa instância,

o seu irmão, então Conde de Bolonha,

o que causou guerra civil medonha!...

Dom Affonso, anos antes, se casara

com Dona Matilde, condessa de Bolonha,

e consoante o costume, assim herdara

título e terras pela morte de seu pai,

passando a herança, de forma assim bisonha,

diretamente para as mãos de seu marido:

terras, castelo, toda a riqueza vai

que a Matilde Segunda teria pertencido;

pois foi por isso chamado O Bolonhês,

por mais que fosse realmente português!...

(De fato a mãe foi Dona Urraca de Castela,

mas nunca herdou o trono a castelhana,

da qual diziam ter sido muito bela...)

Porém quando Dom Sancho foi deposto,

Dom Affonso desistiu de sua italiana,

abdicou do condado e propriedades

e um juramento ao Papa fez com gosto

em Paris, sem assumir as qualidades

de rei ainda, mas chamado Curador

de Portugal, Visitador e Defensor!...

Porém Dom Sancho morreu daí a dois anos,

em circunstâncias bastante discutidas,

talvez por febre ou por tremendos danos

que um veneno lhe teria provocado...

Em Coimbra foram honras transferidas

e Dom Affonso se tornou, enfim, o rei,

depressa o reino totalmente controlado,

submetido a completa e justa lei:

em Quarenta e Oito, após a luta completada,

toda a nobreza adversária foi perdoada!...

O CAVALEIRO IDELPRIM III

Vivia então um fidalgo português,

descendente da nobreza mais antiga

ou “mais antígua”, nesse falar da grês

que nos transmite Camões em sua epopeia,

cuja ascendência traçar mesmo consiga

até um famoso guerreiro visigodo,

Dom Edelspring, que a língua então torneia

para “Idelprim”, de singular denodo

e cuja descendência havia lutado (*)

contra os mouros e para Astúrias se afastado.

(*) Ascendência refere antepassados; descendência são filhos e netos.

A pouco e pouco, os velhos espanhóis

haviam iniciado a Reconquista;

de Portucalis iniciaram-se os arrebóis

por um fidalgo Pero, conde de Vimara,

em Oitocentos e Sessenta e Oito a inicial lista.

Com Gonçalo Mendes, já no século dez,

Cada futuro conde o título se outorgou

de Duque de Portucália, o que se fez,

ficando os duques vassalos de Leão,

mas Dom Garcia quis ser rei certa ocasião!...

Tal Dom Garcia intitulou-se o Rei

de Portugal e de Galiza, sem direito

qualquer ao título, consoante a antiga lei;

e após morrer durante uma batalha,

seu território ficou a León sujeito...

Dizem os portugueses que em Mil e Quarenta,

em Mil e Noventa e Seis a Espanha atalha,

com uma cruzada o Papa ao rei contenta,

vindo auxiliá-lo dois irmãos de França,

com o auxílio dos quais vitória alcança!...

Dom Henrique de Borgonha foi nomeado

Conde de Portugal, mediante herança

de sua esposa, Dona Tereza, assim alçado,

consoante o costume era de então...

Mas este nobre, natural de França,

já Dom Henrique de Portugal – reconquistou

os territórios que mais ao sul estão

e a seu irmão, Dom Fernando, superou,

que o Condado de Galícia recebera

e que expandir suas terras não pudera...

O CAVALEIRO IDELPRIM IV

Este casara com Dona Berengária, irmã

de Dona Tereza, porem a sua linhagem

em pouco tempo por sua morte fez-se vã;

Ao mesmo tempo, um certo Dom Sisnando

Davides, conquistara com coragem

e Condado de Coimbra, de quem diziam

ser judeu e muçulmano, mas deixando

para trás tais religiões, que não trariam

junto aos reis de León sua validez

e bem depressa em cristão assim se fez...

Porém Henrique de Borgonha conquistou

o Condado de Coimbra bem depressa

e um território muito vasto incorporou:

todo o sul da Galícia, derrotando

com estratégia e coragem que não cessa,

além de Trás-os-Montes e a Miranda antiga,

bem facilmente vencendo a Dom Fernando,

que a Compostela, até o norte, ainda persiga,

embora, de fato, não pudesse derrubá-lo,

por ser de Dón Alfonso ainda vassalo.

Eventualmente, por força da ambição,

de Portugal quis tornar-se, alfim, o rei,

mas Dón Alfonso o derrotou nessa ocasião;

Dona Tereza foi para Castela aprisionada (*)

com seu filho, D. Affonso, do qual aqui direi

que eventualmente contra o avô se revoltou,

a independência portuguesa conquistada,

brava missão para que a mãe o educou,

que se conhece como Dom Affonso Henriques.

(mas talvez tua impaciência já me indiques...)

(*) A essa altura, já León se incorporara a Castilla la Vieja, o Reino de Castela.

Mas onde está, afinal, o cavaleiro

que o nome empresta ao título da história?

Era preciso explicar isso primeiro,

que com a história de Portugal está enlaçada

a da família de tão “antígua” glória:

os descendentes de Edelspring ou Edelprim

participaram de toda essa empreitada,

até o século Treze nos chegar, enfim,

com o Bolonhês reinando em Portugal,

León anexado por Castela no final...

O CAVALEIRO IDELPRIM V

Vivia Dom Álvaro Gonçalves de Alcatena,

que a Affonso Segundo servira fielmente

e recebera em recompensa a grã verbena

do Condado de Iberarta, bem ao norte,

sendo também o Senhor de Serramar,

que numerosos filhos e filhas já tivera,

sem que sua esposa fosse levada à morte,

triste destino que então muitas espera

durante o parto ou até mesmo em gestação,

mas Dona Aydema pariu dez com devoção!...

O mais velho, Ruy Eannes, foi o herdeiro;

Dom Álvaro Gonçalves tornou-se militar;

Dom Affonso Retamal, que era o terceiro,

do Mosteiro de Montalto fez-se abade;

já suas seis filhas, como era de esperar,

seis alianças de casamento completaram...

mas quarto filho chegara a boa idade,

um a mais que os genitores planejaram...

Seu pai pensou chamá-lo de Idelprim,

homenageando o ancestral ilustre assim...

Como Idelprim era o mais moço da ninhada,

com seis irmãs mais velhas a cuidar,

podia ter sido uma criança bem mimada,

o pai, Dom Álvaro, porém não o aceitaria:

desde os três anos o fazia acompanhar,

na garupa do cavalo, em suas caçadas

ou inspeções dos campos que fazia,

do antepassado a contar lendas encantadas;

e os três irmãos mais velhos, igualmente,

no uso d’armas o treinavam bem frequente!

Já começara então a moda rica

dos tais romances de cavalaria,

que a conquista do sul dignifica...

Embora sendo então coisa bem rara,

Dona Aydema a ler e escrever ensinaria

a todas as suas filhas, que bordado

em noite escura bem mal se empreenderia...

Naturalmente, Idelprim fora ensinado,

mesmo porque havia no paço um capelão (*)

para a Affonso Retamal dar instrução...

(*) Pátio do castelo, por metonímia o prédio inteiro.

O CAVALEIRO IDELPRIM VI

Como dissemos, esse terceiro irmão

deveria tornar-se um religioso,

mesmo não tendo qualquer vocação,

mas teria de dirigir o seu mosteiro

e saber latim e grego era forçoso,

além do árabe, para controlar a mouraria (*)

dos escravos a trabalhar em seu segredo

e o capelão de bom grado recebia

junto com ele o seu irmão caçula,

que para ser segundo padre ainda adula!

(*) Escravos muçulmanos, enquanto estes tinham escravos cristãos.

Mas Idelprim queria era a leitura

dos feitos d’armas e das artes de magia

seu pai pensando já em magistratura,

pois alcaides e juízes El-Rey nomeava,

que um bom destino para o filho assim daria...

Havia no castelo alguns velhos manuscritos:

na maioria a Hagiologia figurava,

para a Igreja destinados tais escritos:

Vida dos Santos, descrita como bela.

em especial São Tiago, esse de Compostela...

Mas a preferência do jovem Idelprim

ia para as Noites Árabes e aprendera

os tais “risquinhos” a compreender assim,

por diferentes que fossem do alfabeto

em que latim e grego já entendera...

Desde pequeno suas irmãs ele escutava,

que histórias liam com imenso afeto

e os romanceiros também ele adorava,

tocava alaúde tal qual um menestrel,

nas Cantigas d’Amor achando mel!...

Claro que nunca um padre ele seria

e nem mostrava vocação para juiz;

aos doze anos, já junto ao pai servia

como escudeiro na guerra tão constante

e tornar-se um cavaleiro logo quis,

na espada e lança tendo um bom preparo

e nessas guerras seguiu logo bem avante,

a distinguir-se no combate contra Faro,

demonstrando ser valente tão ligeiro

que Dom Affonso logo armou-o cavaleiro!

O CAVALEIRO IDELPRIM VII

Mas no momento em que teve suas esporas

sentiu a ânsia de correr o mundo...

Feita a conquista de Algarves nessas horas

quis transformar-se em cavaleiro-andante,

ganhar das damas o lindo amor profundo,

participar de justas e as vencer,

contra espanhóis o sucesso mais vibrante,

nas meleias entrar e ali sobreviver, (*)

nem sempre estando do lado vencedor,

mas sem nunca dar suas armas em penhor!...

(*) Meleias (do francês Melée ou mistura, eram combates travados por dois

grupos de cavaleiros de facções opostas, com grande taxa de mortalidade..

Contudo, ao ser Andorra conquistada,

o rei de Castela declarou guerra a Portugal,

que tal região a ele era destinada,

embora apenas por mera pretensão;

e Dom Affonso Terceiro, é natural,

não concordou com essas exigências.

Travou-se guerra de breve duração,

contra os mouros as mais fortes desavenças:

Dom Idelprim distinguiu-se novamente,

dos portugueses quiçá o mais valente!...

E finalmente se assinou, em Badajoz

novo tratado entre Castela e Portugal,

sendo Guadiana a fronteira, desde a foz

do rio Caia, as terras mais ao leste

para Castela ficando em tal sinal,

até que as conquistassem castelhanos;

porém mais tarde, não somente o oeste,

mas Alfonso Décimo, por não ter mais danos,

cinco cidades deu a Dona Beatriz,

a oeste do Guadiana, tal qual quis...

Pois foi seu dote na ocasião do casamento:

Moura, Serpa, Noudal, Niebla e Mourão,

com Affonso Terceiro em tal evento,

por Dona Brites de Castela conhecida;

mas o Papa ameaçou de excomunhão

ao Rei de Portugal: que a Brites repudiasse,

Dona Matilde ainda a ser reconhecida

como sua esposa... Mas teve fim o impasse

quando Matilde em poucos anos faleceu

e Alexandre Quarto a Dona Brites acolheu.

O CAVALEIRO IDELPRIM VIII

É bem verdade que vinte anos depois,

Gregório Décimo, o papa sucessor

ao rei excomungou por anos dois,

novamente por desfeitas com prelados

e até o Interdito lançou, grande pavor,

que nem os mortos ser podiam enterrados!

Em todo o reino suspensos batizados,

missas e bodas, todos sendo castigados!...

Mas Dom Affonso foi ao Abade de Alcobaça,

suplicando que ao Interdito ele desfaça!...

Esse prelado na época era o Prior

de todo o Portugal e Dom Affonso lhe jurou

fidelidade, recobrando assim favor,

que o próprio abade levantou a excomunhão

e nesse mesmo ano o sepultou

em Alcobaça, estando o rei arrependido;

lá seu túmulo ainda se vê nesta ocasião.

Mas Idelprim não foi jamais punido,

pois se encontrava em terra bem distante,

pelas suas giestas de cavaleiro-andante!...

Um certo dia, cruzando os Pireneus,

viu uma torre, no alto de montanha,

gravada nela a estrela dos judeus

e acendeu-se-lhe grã curiosidade;

viu então jovem de formosura tamanha

que por ela se apaixonou perdidamente

e apresentou-se, na maior cordialidade,

mas advertiu-o ela, ansiosamente:

“Não se aproxime, bravo cavaleiro,

há um dragão a rondar este terreiro!...”

Um dragão! O que mais queria Idelprim

que combater uma tal fera fabulosa,

canções de giesta a recordar assim,

antes travadas por outros cavaleiros!...

Todos diziam que tal luta corajosa

estava fora do alcance, realmente,

há muito mortos os que eram verdadeiros,

embora algum falso ainda se apresente

nas narrativas de uns certos falastrões,

tentando as damas impressionar com ilusões!

O CAVALEIRO IDELPRIM IX

“Senhora Dama, o Verme existe, realmente?” (*)

“Sim, Cavaleiro, não vê os capins queimados?

Ossos humanos achará bem à sua frente,

mesmo que sejam tão só pontas calcinadas!

São de outros cavaleiros desdichados (+)

que julgaram poder vir-me salvar!...

Parta depressa, que em breve são chegadas

as horas desse monstro regressar,

que me guardou com sete feiticeiras,

para vender-me, por fortuna interesseiras!...”

(*) Era costume referir-se aos dragões como “vermes”, por serem répteis.

(+) Infelizes, em português arcaico.

Idelprim, é natural, não fugiria,

pois a ameaça até mesmo o atraiu!

E logo à jovem se apresentaria:

“Sou Idelprim Gonçalves de Alcatena!

Garboso é o sangue, mas o Fado me iludiu;

Ruy Eannes, meu irmão, foi o herdeiro;

sou o quarto filho e o destino me condena

a percorrer as terras, cavaleiro...

Meu outro irmão tornou-se militar

e o terceiro uma abadia foi ganhar...!

“Mas quem sois vós, senhora tão formosa?

“Eu sou filha de um rei, sou Bellatrix,

meu pai reina até hoje sobre Andorra...

Porém não tendo qualquer descendência,

a rainha minha mãe umas frutas quis

que lhe disseram conferir fertilidade...

Mas só existiam em uma certa residência

que a bruxas más pertencia, na verdade...

Porém sua ânsia aumentou de tal maneira

que de moléstia sofreu sobremaneira!...

As feiticeiras recusavam-se a lhe dar

e ela acampou perante suas muralhas,

cujas alturas não paravam de aumentar!

Em vão ela enviou embaixadores,

numa centena de empreitadas falhas,

até que um dia, feiticeira a visitou

em sua tenda; e vendo os seus palores, (*)

sem ter pena real, a interpelou:

“Quer nossas frutas? Pois muitas lhe daremos,

mas a filha que irá ter, nós a queremos!...”

(*) Palidez.

O CAVALEIRO IDELPRIM X

“Morrerei mesmo, se tais frutos não comer,

de que maneira ter uma filha poderei?”

E assim pensando, concordou em prometer,

ganhando frutos em grande quantidade...

Então nasci, mas recusou-se o rei,

meu pai, às feiticeiras me entregar,

que o tal dragão invocaram com maldade,

Andorra inteira com sua chama a calcinar,

até que o povo exigiu do soberano

que concordasse com um tão terrível plano!...”

“E o seu pai a entregou às feiticeiras...?”

“Ele não tinha qualquer alternativa,

mas à minha mãe consolaram as parteiras:

tendo dois filhos e depois mais duas filhas,

provavelmente nem recordam que estou viva!

E mal me posso queixar de minhas “madrinhas”,

pois me criaram a pão-de-ló e lentilhas,

educação perfeita, umas mesmo até boazinhas,

e algumas delas até acredito que me amaram,

porém morreram ou, quem sabe, viajaram!...”

“Presentemente, estou só com a Cicuta,

Acônito e Estramônio, justo as piores,

que me tratavam com péssima conduta...

Mas aprendi algumas bruxarias

com Meimendro, que me fazia mais favores...

Eu desconfio mesmo que a expulsaram

as praticantes dessas más feitiçarias...

Porém cresci. Tão logo bela me notaram

para lucrar com um dote por minha mão,

decidiram-se a oferecer-me num leilão!...!

“Quem me comprou foi o Duque Malacria,

um velho feio, nojento e aleijado...

Mas eu jurei que só aos dezoito casaria,

ficando sempre nesta torre presa...

Uma pega enquanto isso havia treinado (*)

e a enviei para chamar um cavalheiro...

Alguns tentaram salvar-me, com certeza,

que ao reino de meu pai busquei primeiro,

mas o dragão depressa os foi matando,

a cada qual que chegava devorando!...”

(*) A pega é uma ave negra que imita a voz humana.

O CAVALEIRO IDELPRIM XI

“Por isso eu digo: vá embora, cavaleiro,

se não quiser sofrer igual destino:

já no horizonte vejo o vulto bem ligeiro

desse dragão, que vem para matá-lo!

De Malacria também o corpo pequenino,

que vem buscar-me para o casamento,

mal conseguindo montar em seu cavalo!

Vá embora, cavaleiro! Este é o momento!”

Mas Idelprim declarou: “Vou protegê-la!

Ou morrerei, tentando defendê-la!...”

Mas quando Bellatrix percebera

que Idelprim pelo dragão esperaria,

recordou-se de um filtro que escondera

e o lançou para ele, que o apanhasse!

“Meimendro ensinou-me que proteção daria

contra as chamas desse feroz dragão!...”

Antes que a fera no local chegasse,

Idelprim o bebeu, sem mais hesitação

e não sem tempo! Logo se viu rodeado

por Malacria, bruxas e o dragão alado!

Assim quando o dragão tentou queimá-lo

tonteou apenas de leve com a fumaça,

usando a lança a fim de perfurá-lo!

Recuou o dragão, dorido e espantado!

Malacria o atacou, mas por desgraça,

Idelprim o derrubou no solo ardente,

pelo dragão sendo logo devorado,

que do lançaço pereceu rapidamente!

Ficaram as bruxas sem o seu dragão,

de Malacria já perdida a proteção!...

Então a elas Idelprim se dirigiu:

“Não é costume se ferir qualquer mulher,

mas o Demônio bem sei que já as possuiu:

se me atacarem, as matarei primeiro!...”

De tentativa não se pensou sequer,

porém Cicuta transmitiu-lhe seu recado:

“Não iremos enfrentá-lo, cavaleiro,

porém perdemos o grande dote combinado;

nossa pupila só poderá então levar

caso um bom preço se decida a nos pagar!”

O CAVALEIRO IDELPRIM XII

“Porém, senhoras, sou um pobre cavaleiro;

por ela, apenas, disponho-me a lutar!”

“Mas como dote não queremos seu dinheiro:

irá cumprir uma giesta, tão somente (*)

ou se recusa a por ela se esforçar?”

Ficou Idelprim ferido no seu brio:

“Qualquer tarefa comprometo-me a cumprir!”

Com gargalhada que lhe causou um calafrio,

Disse Cicuta: “Traga um bornal de sol; (+)

é o nosso preço, jovem espanhol!...”

(*) Missão heroica de um cavaleiro. (+) Bolsa de couro.

“Eu não sou espanhol, sou português!”

“Para nós outras, qual é a diferença?

Voltará atrás na promessa que nos fez?...”

E por sua honra de cavaleiro constrangido,

Idelprim aceitou a giesta infensa...

“Esperaremos seu retorno cinco anos:

traga esse preço que lhe foi exigido

ou venderemos Bellatrix a muçulmanos!”

“Mas como posso capturar o Sol?”

“Problema seu! Vá consultar o arrebol!...”

Assim Idelprim iniciou a sua jornada,

indo primeiro até a Gothalúnya, (*)

após se despedir da linda amada,

pensando à África do Norte demandar,

porém encontrou-se com Anwar al-Bunya,

um mouro a quem chamavam curandeiro,

em seu casebre se dispondo a consultar...

“Não vou troçar de ti, bom forasteiro...

Terás à frente vastíssima jornada,

Mas não será aos desertos destinada!”

(*) A Catalunha, originalmente “Terra dos Godos”.

“Pensas, talvez, que essa luz do sol,

que hoje buscas de maneira desusada,

seja mais fácil de encontrar sob o farol

do sol a pino, no Sahara recolhido...

É um ledo engano! Tal luz é concentrada

nas rochas e nas dunas do deserto,

mas por cada grão de areia é refletido

todo o clarão reunido ali por perto...

La no Maghreb, as noites são bem frias (*)

e na tua busca pelo sol te iludirias!...”

(*) Região ao noroeste da África do Norte.

O CAVALEIRO IDELPRIM XIII

“Mas que farei, então?” – indagou o cavaleiro.

“A luz do sol é nas flores conservada,

nas árvores, no capim verde e brejeiro,

nas lagoas e montanhas europeias;

mesmo na neve se acha armazenada,

também nos animais, que comem dela

do mesmo modo que nas lupinas alcateias;

é nas ameias e merlões que se encastela,

das velhas fortalezas derruídas

e até nos ossos de perdidas vidas!...”

“Mas não é fácil recolher a pura essência,

porém posso te vender almofariz,

com um pilão de mágica potência...

Onde encontrares o luzeiro concentrado,

deves moê-lo tal como pó de giz

e desse modo terás o que desejas;

mas não te sei dizer como o guardar:

a luz do sol que libertar ensejas

de imediato a teu redor vai-se espalhar

e assim em vão a tentarás armazenar...”

“Mas me confundes! De que me servirá

o almofariz com seu mágico pilão?”

“Existe alguém que ensinar-te poderá,

um renomado e lúcido alquimista,

Ibn al-Nafiz, que reside, na ocasião,

em Vandaluzia, na cidade de Toledo. (*)

Terás de retomar da Hispânia a pista

e de como atravessar sei o segredo;

eu te darei um amuleto e o Califado (+)

tu cruzarás sem por ninguém ser atacado!”

(*) Hoje Andaluzia, a “terra dos Vândalos: em árabe “Al-Andaluz”.

(+) As regiões governadas pelos Califas árabes.

“Então me dê, por favor, tal amuleto!”

“Não, meu amigo... Compre o almofariz,

mais o pilão com seu poder secreto

e o amuleto te darei como um presente...”

“Está certo. Faço então o que me diz,

porém não trago comigo muito ouro...”

“Nem é preciso. És bravo e mui valente,

o que requeiro de ti é outro tesouro:

só meio litro de sangue de cristão,

que obterei de um talho na tua mão!”

O CAVALEIRO IDELPRIM XIV

Idelprim estendeu-lhe a mão direita,

seu sangue a respingar em recipiente,

certa fraqueza já sentindo nessa feita...

Mas a seguir Ibn al-Bunya certo unguento

passou na palma, que fechou incontinenti;

“Dou-lhe a beber um vinho de palmeira

que apenas aos cristãos eu apresento,

pois o Alcorão nos proíbe a bebedeira...”

Sem mais receio, Idelprim tragou a taça,

até que toda a sua fraqueza se desfaça!...

Ibn al-Bunya entregou-lhe o prometido:

um crescente com estrela era o amuleto:

“Use-o no peito e não será detido!”

“Mas não me tomarão por muçulmano?”

“É justamente, meu rapaz, seu objeto:

falas um árabe com ótimo sotaque...

Pelas guardas passarás sem mais engano,

cá na fronteira poderia haver ataque;

mas só o coloques após haver deixado

terras cristãs e penetrar no Califado!...”

Idelprim concordou com o expediente

e passou bem facilmente na fronteira,

sem ser detido por catalão ali presente

e nem tampouco pela guarda muçulmana,

cavalgando pela estrada costaneira (*)

até chegar junto às portas de Toledo;

e com um árabe de que ninguém reclama

à casa de al-Nafiz chegou bem cedo,

que não chegava, de fato, a ser mansão,

mas que ostentava uma certa exibição...

(*) Costeira, em português medieval.

Admitido sem achar dificuldade,

chegou ao gabinete do alquimista,

que o recebeu com muita boa vontade,

mas logo disse: “Não sois um muçulmano!

Por que usurpais a nossa santa vista?”

“Não a usurpo, senhor Ibn al-Nafiz!

Nunca afirmei não ser cristão romano,

porém Ibn al-Bunya entregar-me quis

este amuleto, para ter aqui passagem,

sem precisar defender-me com coragem!”

O CAVALEIRO IDELPRIM XV

“Pois está certo. De fato, agistes bem,

mas qual razão teria a vossa visita?”

Idelprim, em um tom formal também,

explicou-lhe o motivo que o trazia...

Para al-Nafiz ouvir das bruxas já o irrita:

“Essa Cicuta é minha péssima inimiga!

Mesmo sem isso, eu já o auxiliaria,

porém me empenho para que a vencer consiga!

Há longos anos que nos desentendemos

e virá o dia em que esta rixa acertaremos!”

“Em Damasco, a minha terra, ainda morava

e praticava sempre ali minha arte pura;

de meus pacientes a maioria curava,

mas essa bruxa disfarçou-se de donzela

e seduziu o nosso Cádi a tal conjura, (*)

que fez a mim de feiticeiro a acusação!

Fui exilado de minha cidade bela...

Pelas minhas artes, descobri qual a razão

e desde o Cairo eu a desmascarei

e sua real aparência ao Cádi eu revelei!...”

(*) Al-Caïd, mescla de prefeito, juiz e sacerdote.

“Mas a bruxa um effrit conjurou, (*)

que não cessava de me perseguir

e novamente para a Vandaluzia me exilou!

Desde então os dois nos digladiamos

em qualquer ocasião que nos surgir

e por isso, certamente o auxiliarei;

muito maldosos são os seus reclamos!

Que dispõe do almofariz já observei,

mas preciso lhe explicar os ingredientes

que serão ao encantamento mais potentes!”

(*) Um gênio maligno, oposto aos djinns, que são do bem.

“Os meios mágicos para os alcançar

e assim deles retirar a luz do sol,

mais a maneira para a poeira conservar

eu lhe direi no meu laboratório!

Guardam as flores perfume de escol

e os conservam os ramos de Alfazema;

precisará de Incenso de Ostensório

e da fragrância que distribui a Açucena,

mais o Som dos Parapeitos de castelos

já derruídos, mas que antes foram belos!”

O CAVALEIRO IDELPRIM XVI

“Casca de cobra, Nenúfares, Poesia

de antigos Pergaminhos, das gavinhas

de Parras ressecadas, nas quais mosto havia,

Alcachofras, Amêndoas, doce Anis,

do Sol de Hoje e de Antanho as sementinhas

e mais o Sol que no Futuro brilhará,

Pó de Mandrágora, Alvorada e Giz,

mais o sabor que só o Nada lhe dará...”

Pobre Idelprim! Ficou desarvorado:

quanto tempo para tudo ser achado?

Riu-se al-Nafiz. “Tenho muitos ingredientes,

terá apenas que me trazer o sol

de Hoje e de Amanhã, ainda ardentes...

O sol de Ontem tenho aqui guardado;

encontrará sabor de Nada num farol,

a chama extinta há várias gerações,

mas o Incenso terá de ser roubado

de um Ostensório por algumas ilusões;

e da “Semente do Sol” precisará:

Âmbar dourado, que ao Norte encontrará!”

“O sol de hoje da Abelha-Mestra ganhará;

a de amanhã irá pedir ao Grão-Faisão,

que por Capim Sagrado o trocará,

de uma égua de Unicórnio recebido;

ao invés de farol, procure o troll Gygryão,

que facilmente lhe entregará o Nada;

da Mãe das Renas terá o âmbar recolhido;

no alto dos Alpes encontrará Alvorada...

Viu como é fácil...?” Com um sorriso malicioso

Al-Nafiz contemplou o cavaleiro valoroso...

“Não se perturbe, pois lhe ensinarei

como buscar esses tantos ingredientes;

mais do que isso: um Bornal eu lhe darei

do qual nem um só odor escapará...

Dou-lhe Oricalco e Electro potentes, (*)

com os quais untar o seu almofariz

e no pilão mais um pouco esfregará.

O sol de hoje e de amanhã com pó de giz

bem facilmente poderá entorpecer

no almofariz sendo fáceis de moer.”

(*) O Electro era uma liga de ouro e prata; do Oricalco o segredo se perdeu.

O CAVALEIRO IDELPRIM XVII

Ibn al-Nafiz contou-lhe alguns segredos

(Naturalmente, não os descreverei aqui,

caso contrário, perderão os seus enredos!)

“Vamos agora para uma boa refeição,

que amanhã cedo irá partir daqui...”

“Mas quanto tempo levarei nessa viagem?”

“Por cinco anos as três o esperarão,

não foi o que me disse em sua contagem?

Depois... não é você um Cavaleiro-Andante?”

(Formalidades já abandonadas há bastante).

Logo Idelprim armou-se de coragem

e em seu ginete passou a galopar,

muitos meses gastando em tal viagem...

Inicialmente, dirigiu-se a uma colmeia

(quase um palácio de cera em tal lugar);

a Abelha-Mestra era amiga de al-Nafiz

e lhe entregou uma cabaça cheia

e o conteúdo moeu no almofariz:

o Sol de Hoje guardou no recipiente,

por força mística da magia potente!...

Galgou de novo, então, os Pireneus:

sobre alto pico estava o Grão-Faisão,

chamado Fênix nos Relatos Corifeus. (*)

“Foi Ibn al-Nafiz que me enviou!”

“Sei de quem falas no meu coração...”

“Podes me dar o sol de algum Porvir?”

“Ninguém melhor que eu o conservou,

mesmo que esteja tal sol ainda “por vir”.

Vejo que trazes também o almofariz...

Como guardá-lo te ensinou Ibn Nafiz?”

(*) Coros gregos.

O sol futuro Fênix soprou no almofariz,

da extremidade de seu longo bico.

Fez Idelprim o quanto o mago quis,

guardado firme o pó no recipiente;

e até as pastagens do relvado rico

da Borgonha cavalgou rapidamente;

chamou a Égua de Unicórnio com apito;

seu corcel se assanhou incontinenti,

porém a égua, com desprezo, relinchou

e o garanhão bem depressa se aquietou...

O CAVALEIRO IDELPRIM XVIII

“Podes me dar algum Capim Sagrado?

Foi al-Nafiz que mandou te procurar...”

“Vem apalpar gentilmente do meu lado.”

Idelprim desmontou e obedeceu;

a Unicórnio então fez regurgitar

e num alforje recolheu a fresca relva;

com um nitrido, meia-volta o animal deu

e em breve trote, retornou à selva...

Que faço agora? – imaginou Idelprim.

Vou procurar o grande Troll enfim!...

Uma semana levou subindo a serra,

até chegar dos Alpes na cumeeira,

em que a caverna de Gygryão se encerra.

“Quem é você, forasteiro, a desafiar

o Troll Gygryão, que tem a vida eterna?”

“Ibn al-Nafiz me enviou. Eu busco o Nada.”

“Ah, quer Nada... Mas Algo terá de dar...

Já é estranha coisa a tua empreitada!

Aqui vêm muitos por riquezas alcançar

e facilmente os posso a todos devorar...”

“Mas tu vieste em busca do meu Nada:

e qual Algo vais me dar em seu lugar?”

“Trago um alforje com Relva Sagrada.”

“Se for verdade, é um começo de conversa.”

Sem medo, foi Idelprim se aproximar

da imensa rocha que era o troll gigante,

que ergueu o alforje com disforme dedo,

levando à boca o pasto verdejante.

“Ah!... Estende o almofariz, que te dou Nada.”

Sentiu Idelprim uma invisível revoada...

“Anda depressa, cavaleiro, e mói!

Não existe nada que suma tão depressa

quanto este Nada que tudo o mais destrói!...”

Logo Idelprim manipulou o seu pilão

na reação de qualquer coisa espessa,

embora nada se ali pudesse ver;

mas por saber ser de curta duração,

no seu Bornal fê-lo desaparecer,

que se fechou de novo, por magia...

E agradecendo, bem veloz dali saía...

O CAVALEIRO IDELPRIM XIX

Foi seguindo pela alpina cordilheira,

por sobre os vales e nos passos de montanha,

do alquimista na instrução certeira,

por sobre a neve e o frio enregelante,

até chegar a uma caverna estranha,

cuja abertura ficava para o leste,

com uma poça de brilho cintilante;

de estalactites todo o teto se reveste;

e ali aguardou a noite inteira, enluarada,

até o Oriente tingir-se de Alvorada!

Contra a primeira luz que penetrou

ele estendeu o seu almofariz,

em que o início da Alvorada se enroscou!

E bem depressa tomou do seu pilão,

envolvendo toda a luz em pó de giz,

para moer essa aurora bem depressa,

que novamente guardou na proteção

do Bornal mágico em que caber não cessa

toda essa grossa e repetida polvadeira:

magia pura, em faminta cremalheira!

Saiu dali, pela rédea o seu cavalo,

que parecia quase exausto da jornada,

descendo os Alpes por comprido vale,

seguindo o Reno até o Mar do Norte,

dando ao corcel curtos dias de parada

numa planície de virente pastiçal,

uma semana pousando numa corte

de guerreiros pagãos, sem sofrer mal,

os quais num drakkar até o Báltico o levaram

e aos confins da Finlândia o transportaram.

Em breve tempo, silvou novo assobio,

que lhe ensinara igualmente o alquimista,

a Mãe das Renas fez descer um rio

e lhe pediu as Sementinhas do Sol...

Rinchou a rena e lhe indicou a pista

até uma praia, cheia de pérolas douradas,

das quais reuniu as de melhor escol,

sua outra bolsa de costuras estufadas...

E em seu cavalo a mil lagos contornou,

até que em terras da Polônia se encontrou.

O CAVALEIRO IDELPRIM XX

Por lá seguiu e cruzou toda a Alemanha,

até alcançar um castelo derruído,

em que esperou da meia-noite a sanha,

ouvindo as Vozes de Homens em combate!...

Com bom cuidado o Som foi recolhido

no seu almofariz, de tanta utilidade:

a golpes de pilão as vozes ele abate,

a poeira no Bornal de total capacidade;

e retomou novamente a sua jornada,

somente um item faltando da empreitada...

E finalmente, chegou a uma abadia

em que pediu pousada no mosteiro.

Durante a noite, a congregação dormia

e foi buscar incenso no ostensório.

Era um pecado, mas o item derradeiro,

dele tomando só pequena parte,

que o Bornal engoliu, peremptório,

finalmente parecendo que se farte.

Ninguém deu falta de seu pequeno roubo,

Mas de manhã já partiu com grande arroubo!

Levou dois meses de novo, até Toledo,

enfim chegando à residência do alquimista,

de demorar demais sentindo medo,

mas al-Nafiz, muito alegre, o acalmou:

“Levou somente treze meses nessa pista

e de seu prazo ainda sobram quatro anos!

Pode repor se um ingrediente lhe faltou...”

Mas ao abrir o Bornal, não havia enganos...

E acrescentou a Alcachofra e a Alfazema,

mais as Amêndoas, o doce Anis e a Açucena... (*)

(*) Todos estes nomes são de origem árabe.

Além de todos os temperos requeridos,

que misturou com um óleo misterioso,

ao Bornal os resultados devolvidos...

“Mas, e o Âmbar?” – indagou o cavaleiro

“Para jóias é o elemento mais valioso!

As bruxas vencerás com meu feitiço

a com a venda desse âmbar, bem ligeiro,

comprarás um castelo bem castiço!...

Só não esqueças de um pouco reservar

para à tua bela oferecer um bom colar!...”

O CAVALEIRO IDELPRIM XXI

“Mas qual será, então, seu pagamento?”

“Eu só almejo a destruição das feiticeiras

e para o Cairo então retorno num momento!”

Mas Idelprim insistiu e ele escolheu

meia dúzia das contas mais faceiras...

Fez Idelprim retomar a sua viagem:

por mais de mês as estradas percorreu,

seu coração já batendo com coragem

quando à distância discerniu a torre,

curto caminho velozmente ele percorre!

E ao chegar à torre, que alegria!

Lá no balcão Bellatrix o esperava,

ainda mais bela do que quando antes a via!

Mas as três feiticeiras lhe surgiram:

“Conseguiu o nosso prêmio que buscava?”

“Tenho-o aqui. Porém que garantia

Terei de que a promessa cumpririam?”

Guinchou Cicuta: “Então não nos confiava?”

Riram-se as três, preparada já a traição:

queriam o sol e mais a morte do campeão!

Mas no momento em que o Bornal se abriu,

expandiu-se numa nuvem e em clarão,

que envolveu todo o malvado trio

e entre uivos, as três se incineraram,

sem afetar a Idelprim, que era cristão,

nem atingirem Bellatrix em sua janela!...

Ele benzeu-se, vendo as cinzas que restaram

e num repente, temendo por sua bela,

subiu as escadas a correr, até o alto

e a donzela arrebatou, como de assalto!...

Não foi sem tempo. A torre estremeceu

e em mil pedaços se desfez, rapidamente,

quando a princesa a sua fúria compreendeu

e se abraçaram no mais doce beijo...

Idelprim transportou-a, incontinenti,

a uma cidade, para tratar do casamento,

confessando o seu pecado nesse ensejo,

pelo qual foi absolvido num momento;

e nesse mesmo dia celebrou-se

a linda boda, pois aos banhos dispensou-se! (*)

(*) Avisos sobre o matrimônio, proclamado durante três domingos.

EPÍLOGO

Os dois seguiram até grande cidade

em que Idelprim o seu âmbar foi vender,

por fabuloso preço, na verdade,

com o qual comprou o seu castelo,

no qual felizes foram os dois viver,

com muitos filhos e mais longo amor,

realizado assim seu sonho belo...

E o alquimista, tão leal e sabedor?

Ibn al-Nafiz para o Cairo retornou,

onde a fortuna bem veloz recuperou!

Naturalmente, Idelprim fez preparar

um par de brincos e mais uma pulseira,

além de longo e magnífico colar,

como presente à sua linda companheira!

O alquimista Ibn al-Nafiz é um personagem histórico bastante conhecido, nascido em Damasco em 1213 e falecido no Cairo em 1288. Já Anwar Ibn al-Bunya somente é citado em um dos escritos do viajante Ibn-Batuta, que o localiza na metade do século treze. Quanto a Idelprim, é referido no folclore português e as ruínas de seu solar são mostradas alternadamente em Miranda, Macedo dos Cavaleiros e Freixo de Espada-à-Cinta. Naturalmente não era um castelo, nem D. Affonso Terceiro o permitiria. O solar de Serramar e o mosteiro de Montalto teriam de fato existido no norte de Portugal, mas de localização também incerta. Naturalmente as peripécias narradas só se encontram no “cancioneiro” e foram descritas nestes versos com bastante liberdade poética, já que omnia licet a nós e aos pintores.

Todas as referências à fundação do estado português são históricas, embora as datas exatas sejam disputadas entre a Espanha e Portugal, que adota oficialmente o ano de 1040. Os borguinhões de fato vieram participar de uma “cruzada”, desposando as filhas do rei de León. E a figura de Susnando Davides é igualmente histórica, embora também envolta em lendas, que dariam um poema épico provavelmente tão extenso quanto este.

Todas as referências a El-Rey D. Affonso Terceiro são rigorosamente históricas, salvo, talvez, a armação de D. Idelprim como cavaleiro após a tomada de Faro, no sul de Portugal. D. Affonso foi de fato o segundo filho de El-Rey D. Affonso Segundo e de Dona Urraca de Castela e se tornou o quinto rei da Dinastia Afonsina, após a morte de seu irmão, D. Sancho Segundo. Nasceu em Coimbra, em 1210 e faleceu em Alcobaça, em 1279, onde foi enterrado, tendo reinado de 1248 a 1279, após ter sido “Visitador, Curador e Defensor do Reino” durante dois anos.

Efetivamente foi casado com Dona Matilde Segunda, condessa de Bolonha, a quem repudiou para contrair núpcias com Dona Beatriz, filha de Alfonso Décimo de Castela, conhecida como “Dona Brites de Castela”, em 1253. O Papa Alexandre Quarto quis que repudiasse Brites, mas o impasse se resolveu pela morte de Matilde, em 1258. Como iria repudiar a filha do rei de Castela sem provocar nova guerra? Além disso, Dona Brites trouxera como dote as cinco cidades de Algarves a leste do rio Guadiana, Moura, Serpa, Noudal, Mourão e Niebla, completando-se assim o mapa português e findada a disputa secular com Castela sobre essa região.

El-Rey Dom Affonso Terceiro foi um governante justo e muito amado pelo povo, favorecendo a classe média e os “peões”, sem desgostar com isso os fidalgos. Entre outras coisas, aboliu a “Anúduva”, obrigação dos plebeus a trabalhos braçais forçados em determinados períodos, semelhante à Corveia imposta pelos nobres durante o feudalismo. Mas as “Inquisições Reais” desgostaram os prelados, membros da aristocracia, que de fato haviam usurpado terras da Coroa ou de plebeus. Finalmente, o papa Gregório Décimo o excomungou em razão dessa disputa, no ano de 1277 e como o rei não se dobrasse, lançou o Interdito sobre Portugal, suspendendo toda e qualquer cerimônia religiosa, inclusive encomendações e sepultamentos em campos santos. Dois anos depois, o rei entrou em concordata com o Abade de Alcobaça, na época o “Prior” de Portugal (hoje seria Cardeal ou Primaz) e este levantou o Interdito e a Excomunhão, mediante juramento de fidelidade ao Papa e à Igreja; alguns meses depois, o rei faleceu e foi enterrado na Abadia de Alcobaça, onde se afirma estar ainda enterrado.

Na verdade, Ibn al-Nafiz sabia muito bem que as bruxas queriam era o âmbar; mas fez Idelprim coletar os ingredientes que lhe faltavam para completar o feitiço como que, enfim, se livrou da feiticeira Cicuta e suas associadas.