O BALSEIRO E O FANTASMA
O BALSEIRO E O FANTASMA
(Baseado em um conto de Gerald W. Page,THE HERO WHO RETURNED, 1979,
versão poética de William Lagos, 8 jan 2016)
O BALSEIRO E O FANTASMA I
Em certo ponto havia um rio que se alargava,
chegando quase às dimensões de um lago;
entre penhascos mais acima ele corria,
corrente abaixo mais ainda se espraiava,
formando pântanos de perigoso afago,
por sobre os quais ninguém passar podia.
A outra margem à distância se avistava
e uma estrada conduzia até o rio,
onde fora construído um atracadouro;
uma choupana com galpões ali se achava,
que protegiam os animais no tempo frio,
horta e pomar formando o único tesouro.
Do lado oposto, havia um outro atracadouro
e o contorno a vislumbrar de cabaninha,
com uma balsa amarrada deste lado.
Dunstan, o balseiro, trabalhava como um mouro;
Maelwyn, sua bela e jovem esposinha, (*)
aos seus juntava um esforço continuado.
(*) Leia-se “Méluin”.
Um tempo houvera em que bastante frequentado
era o caminho, conduzindo a uma cidade
e no horizonte, avistava-se um castelo;
mas fora o povo por doença dizimado:
fugiu quem pôde de tal calamidade,
arruinando-se o castelo sem desvelo...
O BALSEIRO E O FANTASMA I
Há muitos anos ninguém mais ali morava;
era a outra margem dita amaldiçoada,
todas as terras estando devolutas.
De quando em vez, um herói se aproximava,
pagava a Dunstan a soma combinada
e corajoso, partia em suas disputas...
O próprio Dunstan construíra um cabrestante, (*)
com um cabo grosso atravessando as águas
e do outro lado, um igual dispositivo.
Tudo mantinha com atenção constante,
com qualquer tempo atravessando as fráguas,
sempre que tinha para tal algum motivo...
(*) Espécie de carretel de grandes proporções, que gira em torno
de um eixo acionado por uma manivela.
Periodicamente, chegavam passageiros,
em geral moços, fortes, bem armados,
que demandavam a torre do castelo;
Com calma Dunstan aguardava esses guerreiros
até a noite, com alma e ânimo pesados:
voltando só, a despeito de seu zelo.
De Kershenlee a torre demandavam,
em que habitava o cavaleiro enfeitiçado,
pela glória de, afinal, o derrotar;
mas todos eles nunca retornavam,
supostamente tendo o corpo destroçado
por Kershenlee, em combate singular... (*)
(*) Leia-se “Querchnli”, acentuando-se o final.
O BALSEIRO E O FANTASMA III
Dunstan cuidava de seus poucos animais,
que leite e carne lhe davam e alguma lã;
cuidava Maelwyn sua horta e a casa;
Dunstan caçava, pescava um pouco mais,
bem conformado, sem nutrir ilusão vã,
frutas enchiam a sua carroça rasa...
Ele as vendia na pequena aldeia,
assim podendo alguns cobres ajuntar;
fôra peão, ferreiro e lavrador,
pagara a nomeação com o pé-de-meia,
posição que ninguém mais queria ocupar,
pois muito poucos ocupavam o condutor.
Mas para ele estava bem assim,
pois gostava dessa vida solitária;
eventualmente por Maelwyn se apaixonara;
foi breve a corte, mas o aceitara, enfim;
era dez anos mais moça e solidária
e alegremente com Dunstan se casou.
Não tinham tido filhos até então,
seu olhar sendo azul como o cristal,
longos cabelos de tom claro e vermelho;
improvisara-lhe uma tubulação,
com uma nora impulsionando, bem ou mal, (*)
água encanada em conforte e agasalho.
(*) Roda a que se prendem corda e vasilhas de barro. Leia-se “nôra”.
O BALSEIRO E O FANTASMA IV
Ele aumentara a choupana facilmente,
sempre um conforto lhe proporcionava,
até o ponto em que na solidão era possível;
ainda a amava desesperadamente,
mas que o amasse de fato não confiava:
ela o aceitara por achar-se disponível...
Ou, pelo menos, era isso que julgava:
embora nunca tivessem dissensão,
em seu rosto percebia olhar distante,
como se houvesse alguma coisa que faltava;
sua juventude causava-lhe apreensão,
dava-lhe vida tão pouco interessante!...
Maelwyn, contudo, nunca se queixava;
sempre alegre, o tratava com carinho;
para agradá-la, ele fazia tudo,
enquanto ela, com prazer, se atarefava,
embelezando o lar que era seu ninho.
Seu coração inquietava-se, contudo...
Certo dia, apresentou-se um viajante,
com o peso da armadura acostumado,
mochila às costas, sobre ela escudo,
a longa espada a balançar vibrante,
já várias décadas em seu rosto marcado,
barba grisalha, mas olhar agudo...
O BALSEIRO E O FANTASMA V
“Meu nome é Falke. É você o balseiro?”
“Chamo-me Dunstan e de fato o sou.”
“Qual o preço que me cobra na portagem?”
Dunstan e Falke acertaram-se ligeiro.
“Mas já é tarde. Conduzi-lo hoje não vou;
por gentileza, aceite minha hospedagem...”
“Alimento aceitarei, mais algum vinho,
mas não posso ficar entre paredes,
acostumei-me a pernoitar ao livre ar...”
Logo assentou-se sob os ramos de azevinho
que de macieira pendiam como redes,
a sua mochila começando a desmanchar.
“Não vai chover. Da barraca não preciso,
porém trago almofada e cobertor...”
Notou Dunstan que trazia alguns arreios.
“E seu cavalo?” – indagou em tom conciso.
“Está morto, mas me foi bom servidor;
pesada a sela, vendi-a sem receios...
Maelwyn trouxe-lhe logo refeição
e os três comeram, sentados no gramado.
“Conte as histórias de sua vida,” ela pediu.
“Não quero aborrecê-los na ocasião...”
“Deixe esse julgamento a meu cuidado...”
Com muita graça a jovem insistiu.
O BALSEIRO E O FANTASMA VI
“Pois muito bem...” Mesmo um tanto retraído,
contou histórias de façanha e de combate.
sobre os heróis com que um dia convivera,
sobre as cidades que já havia conhecido,
até que cansaço sobre a voz se abate...
“Lindas cidades!...” – Maelwyn falou, ligeira.
“Se eram lindas, não o sei. Fui prisioneiro
mais de uma vez, após perder batalha;
conheço apenas suas tavernas e prisões...”
“Por isso é que gosta de acampar, guerreiro?”
Era a voz de Dunstan que atalha...
“Também por isso, mas amei sempre amplidões...”
Os dois entraram em casa, finalmente,
deixando o velho guerreiro adormecido.
“Ele parece ser um bravo cavaleiro!...”
disse Maelwyn, ao pentear-se gentilmente.
“Muito mais velho que quantos têm surgido:
vinte anos mais que eu, isso é certeiro!...”
“Ou sofreu muito sob o vento e o sol
e parece bem mais velho do que é...”
Sentiu Dunstan de novo a inquietação:
“De qualquer modo, amanhã, no arrebol,
eu vou levá-lo para a luta e vai a pé,
sem que retorne, como todos que lá estão.”
O BALSEIRO E O FANTASMA VII
“Mas por que tantos buscam essa morte?
Quiçá demandem plaga mais distante...”
“Lá só existem as montanhas e o deserto,
duvido encontrem diferente sorte...”
“Ouvi na aldeia certa lenda delirante:
exército de mortos está treinando a céu aberto...”
“Não me parece que isso faça algum sentido;
Kershenlee, se é verdade isso que contam,
não se pode afastar muito da torre;
e dos que foram, nada mais eu tenho ouvido;
os que transporto já a centenas montam
e cada um deles certamente morre...”
No outro dia, Dunstan ergueu-se muito cedo:
Como era bela a sua esposa adormecida!
Foi em silêncio dar comida aos animais.
Falke dormia, sem parecer ter medo.
Foi a um galpão, em que estava escondida
a valha espada, que não se usava mais...
Fôra presente de seu tio guerreiro,
depois de olho perder numa batalha,
muito pesada para um adolescente...
Pedira que a afiasse esse ferreiro
de quem era aprendiz, mas tudo falha:
marcas demais que a lâmina apresente.
O BALSEIRO E O FANTASMA VIII
Mas deu de ombros e na arca a colocou.
Não sei ao menos como brandir espada
e quem viria me assaltar aqui...?
Os animais atendidos, retornou;
Divisou Maelwyn contra a porta apoiada,
Falke no chão. A esposa lhe sorri...
“Achei que o hóspede comer só não deveria
e com ele eu já quebrei meu desjejum...
Venha depressa, antes que esfrie o seu...”
De novo o aperto no coração sentia:
Nunca a vira assim portar-se com nenhum
desses guerreiros que em sua casa recebeu...
Enquanto ele comia, ela indagou:
“Me fale de sua vida, meu marido!”
“Fui tão somente ferreiro e lavrador,
minha vida inteira você já escutou...”
“Nunca pensou em viajar, querido?
Nunca a guerra despertou o seu ardor...?”
“Quando menino, talvez, então meu tio
deu-me sua espada e logo após, morreu.”
“Ainda a tem? Você nunca me mostrou...”
“Para quê? Já perdeu todo o seu fio,
a ferrugem junto ao punho já a comeu,
nem sei por que ainda não quebrou...”
O BALSEIRO E O FANTASMA IX
“Ser soldado... Baixo o soldo, má a comida,
sofrendo sempre no maior perigo...
Morreu meu tio sem ter casebre seu...
Há anos não há guerras, minha querida...
Talvez por isso procure um inimigo
tanto rapaz que além do rio já pereceu...
Despediu-se da esposa com um beijo;
Falke já havia a sua mochila enchido.
“Se está pronto, descemos até o rio...”
Da balsa ante a corrente fez despejo;
com o cuidado que sempre tinha tido,
examinou-a desde a proa até o lio.
Mas num impulso, Dunstan dirigiu-se,
sem nada ao outro dizer, ao seu galpão:
abriu a arca e retirou de dentro a espada;
mesmo esgarçada a bainha, ele cingiu-se (*)
e depressa retornou à embarcação,
onde achou Falke, de expressão embasbacada.
(*) Amarrou a espada à cinta.
“Mas o que é isso...?” – o guerreiro perguntou.
“Não vou deixar que vá até lá sozinho.”
“Mas qual é a sua experiência de combate?
“De fato, nunca a tive...” – retrucou.
“Porém não quero que siga esse caminho,
em que o destino a cem jovens abate.”
O BALSEIRO E O FANTASMA X
“Aos que vieram antes, ajudou...?”
“Jamais o fiz, você será o primeiro.”
“Não será ajuda, vai até me atrapalhar!”
“Como assim?” – o balseiro perguntou.
“Sem experiência, não me serve de escudeiro:
a menor coisa eu terei de lhe explicar!...”
Dunstan deixou-se convencer, a contragosto;
em um rolo de corda guardou a espada.
“Mas por quê?” – indagou veementemente.
“Já lhe disse que não serve para o posto.”
“Isso já sei; mas por que toda essa empreitada?
Percebo bem que é um homem bem valente.”
“Mas já está velho. Deve ter sessenta anos.”
“Mais de setenta, se é que quer saber...”
“Percebo bem que é forte e vigoroso,
mas por quê? Esses jovens em afanos, (*)
desejam fama e glória receber,
ser contratados por algum nobre poderoso...”
(*) Esforçados, ansiosos.
“Mas o que espera encontrar, caro senhor?”
Falke encarou-o, com olhar brilhante e vivo.
Depois de alguns momentos, continuou:
“Dois meses atrás... não recebeu um viajor,
jovem e forte, bem armado, altivo...
Percebo por minha vez que o recordou...”
O BALSEIRO E O FANTASMA XI
“Recordo todos eles...” – respondeu –
“por mais que sejam já algumas centenas:
Todos cruzaram, mas nenhum voltou...”
“Pois foi Tavish, meu filho, que acorreu,
atraído pela fama ou pelas penas
e a Kershenlee decerto ele enfrentou.”
“Entendo,” disse Dunstan. “E outros tem?”
“Não, foi Tavish somente que eu gerei...”
“Entendo,” repetiu, “ainda que eu
nenhum tenho e nem creio que algum vem.”
“Mas ainda pode tê-los, bem o sei,
com a linda esposa que o fado concedeu.”
Então o olhar de Dunstan perturbou-se:
“Não sei por quanto tempo ainda a terei...”
“Ela o ama, ouça bem o que lhe digo.”
“Não percebeu como ela emocionou-se?
Às longes terras eu nunca a levarei...”
“Mas não é o que ela deseja, meu amigo.”
“Mas seu olhar se perde na distância...”
“Ela é romântica e deseja o inatingível,
mas é sensata e só você a pode expulsar...”
“Não farei tal, qualquer que seja a instância!”
“Tenho certeza, então, que inexaurível
será o carinho com que o há de presentear.”
O BALSEIRO E O FANTASMA XII
Calou-se Dunstan até o fim da viagem.
“Tem certeza de que não quer minha companhia?”
“Não, meu amigo, só recorde o que lhe disse...”
E o velho guerreiro, com coragem,
tomou a trilha que à torre conduzia,
Dunstan à espera, sabendo ser tolice...
Mas por todos ele aguardava até a noite,
para depois acionar seu cabrestante
e retornar sozinho à sua choupana.
Da incerteza de Maelwyn sofria o açoite,
pensando embora em Falke, nesse instante
e ao do guerreiro, seu coração se irmana...
Num impulso, apoderou-se de sua espada
e empreendeu, finalmente, o tal caminho,
que antes nunca sonhara em ir trilhar;
logo viu ossos brancos de montada,
restos de sela, o freio no focinho:
nem um só cavalo ela vira retornar...
E a seguir, encontrou dezenas deles.
Por que teriam morrido os animais?
Logo chegou a bem cuidada pradaria:
de espadas e armaduras, restos reles,
mas esqueletos inteiramente naturais,
tal qual se alguém de tais ossos cuidaria...
O BALSEIRO E O FANTASMA XIII
A maioria tinha os crânios separados.
mas de outros lanças brotavam das costelas
e mesmo hastes de flechas nos demais;
muitos mais que poderiam ser contados;
a pradaria quase não podia contê-las:
tantas ossadas sem desgastes naturais...
Um arrepio correu-lhe pela espinha...
Decerto outros tinham andado por aqui
e vendo os ossos a tal lenda imaginavam
de que uma tropa de mortos se mantinha,
prontos a erguer-se, ao receber ali
ordens fantásticas, que deitados esperavam...
Logo alcançou semiarruinada torre,
a seu redor somente restos de paredes.
Havia um fosso e uma ponte levadiça,
Já apodrecida, a qual o limo forre;
e entre os ossos, enlaçados como redes,
viu armadura com seu broquel de liça... (*)
(*) Escudo ornado para combates singulares.
Eram, sem dúvida, os ossos do rapaz...
Qual era o nome?... Tavish, lhe dissera
o viajante de sua última portagem.
A armadura já aos poucos se desfaz,
mas o esqueleto não se desmerecera,
cravada a espada do pescoço em cartilagem...
O BALSEIRO E O FANTASMA XIV
Sentiu um novo arrepio correr na espinha:
sem qualquer dúvida, gemido ele escutara!
Mas gemem mortos à luz do meio-dia...?
Logo do fosso o balseiro se avizinha:
lá estava Falke. O gemido ele soltara,
olhos abertos, mas pouco se mexia...
“Então veio acompanhar-me, no final?
Quebrei a perna, que coisa mais idiota!...”
“O que o levou a tentar cruzar tal ponte?
Não percebeu que se aguentava mal e mal?”
“De meu filho reconheci escudo e cota,
ódio senti que perturbou-me a fronte!...”
Dunstan cravou sua faca na beirada,
descendo ao fosso, sobre ossos pisando.
“É só a perna? Não feriu mais nada?”
“Só meu orgulho, por ter feito tal burrada...”
“Com boa tala, estará logo caminhando,
mas a madeira por aqui está estragada...”
“Pois minha espada terá agora serventia!...”
Quebrou-a com o pé, bem rente ao punho.
“Na sua mochila não traz alguns arreios?
Das velhas armas nenhuma têm valia,
mas sua espada pode dar bom testemunho.
Posso parti-la, apesar de seus receios...?”
O BALSEIRO E O FANTASMA XV
“Siga em frente, já não posso combater...”
Dunstan partiu junto ao copo a outra espada
e com os arreios firmou bem a tala...
“Mas um problema maior consigo ver:
Não posso erguê-lo do fosso sem escada.”
“Do lado interno é bem mais rasa a vala...”
“Mas entraremos, então, nessa ruína?”
“Existe uma outra ponte do outro lado,
que decerto há de estar mais conservada...”
“Pois muito bem, se assim decide a sina...”
Saem do fosso e o portão cruzam assombrado:
lá dentro a escuridão bem mais pesada...
Havia escombros e muitos ossos espalhados,
mas de fato, uma outra ponte havia,
em cadeias firmada, enferrujadas...
“Se ele vier, estamos arrumados...
Será que Kershenlee anda de dia,,,?”
“São estas salas, afinal, amaldiçoadas...”
“Nunca entendi o porquê da maldição...”
“Kershenlee foi cavaleiro corajoso,
matou um dia a um perverso feiticeiro,
mas sentiu pena de concluir a ação,
sendo marcado por conjuro tenebroso,
que provocou sua morte bem ligeiro...”
O BALSEIRO E O FANTASMA XVI
“Ninguém sabe exatamente a maldição,
mas seu espírito para aqui foi transladado
e uma fumaça atrai outros cavaleiros...”
“Centenas deles espalhados aqui estão,
porém um corpo não pode ser cortado
por arma alguma não feita por armeiros...”
“Mas decerto percebeu a diferença:
muitas armas mataram os coitados!
E armas humanas a fantasmas nunca ferem;
praga malvada existe nisso – e densa!
foi outra coisa que apanhou os descuidados,
certo feitiço por que jamais esperem...”
“Bem, sair daqui nós precisamos...”
disse Dunstan e tentou mover a ponte.
“Os pinos com ferrugem estão grudados...
para quebrá-los, qualquer ferro procuramos...”
Disse Falke: “Ali, naquele monte:
não é um machado entre os ossos amontoados?”
Foi Dunstan apanhar a ferramenta.
“Sem dúvida! E está até em bom estado!”
E com golpes do machado ele quebrou
os pinos da corrente, que rebenta,
tombando a ponte para o outro lado.
E o machado ainda intacto se mostrou.
O BALSEIRO E O FANTASMA XVII
Mas no momento em que a Falke foi erguer,
no andar de cima escutou-se um estalido
e logo passos pesados pela escada!
“Bem, ao menos eu nos posso defender!”
disse Dunstan, com o machado erguido.
“Não, meu amigo, não procure fazer nada!”
“Mas como assim? Vou deixar que ele nos mate?”
“Não reparou em todos esses esqueletos,
derrubados por muitas armas bem diversas?
É o feitiço decerto que os abate,
e nisto estão seus atributos mais secretos:
com as próprias armas suas carnes são abertas!”
“É essa a maldição!... Entende agora?
Quem dá o primeiro golpe, a própria arma
se volta contra si e o assassina!...”
Dobrada a curva da escada nessa hora,
uma sombra mais negra do que o carma,
mas com a espada reluzente, em estranha sina”
E nos seus olhos cintilava triste luz,
inexorável em sua melancolia...
Ergueu-se, imenso, diante do balseiro!
Insistiu Falke: “Por amor da cruz,
não o ataque, pois é fantasmagoria:
nenhum golpe o cortará, por mais certeiro!”
O BALSEIRO E O FANTASMA XVIII
Deixou Dunstan pender braço e machado,
sem saber se por razão ou por pavor
e a aparição brandiu sua própria espada!
Pensou sentir o seu crânio ser cortado,
de Maelwyn lembrou ainda, com amor,
julgando mergulhar direto ao nada!...
Mas tão somente um sibilar ele sentiu
e a grande forma jazia despencada,
em seu pescoço a espada atravessada!
“Você venceu!...” De Falke a voz se ouviu.
“Foi Kershenlee que seu golpe desferiu,
sua própria carne fantástica cortada!...”
“Era essa, afinal, a maldição:
quem o primeiro golpe desferisse,
teria a arma contra si voltada!...
Mas não percamos tempo, meu irmão:
alguma coisa no coração me disse
que esta torre será logo derribada!...”
E dito e feito: tão logo eles cruzaram
para o ar livre a ponte resgatada,
a torre inteira começou a desabar!...
De uma certa distância contemplaram,
deram a volta, a empreender a caminhada
até a balsa que sabiam esperar...
O BALSEIRO E O FANTASMA XIX
E para sua surpresa, os esqueletos
se haviam desmanchado totalmente
e ressequido tornara-se o gramado...
“Não se desvendam tais atos secretos,”
disse Falke, a capenguear penosamente.
“Basta saibamos que o encanto foi quebrado!”
E do outro lado do rio, no atracadouro
Viram Maelwyn, esperando ansiosamente;
logo atirou-se nos braços do marido:
“Não sabia se voltava, meu tesouro!”
Mas vi a torre desabando finalmente,
pensei que o outro não havia morrido!...”
Entre os dois, conduziram o cavaleiro.
Durante o dia, Maelwyn já construíra,
com cuidado, um abrigo provisório;
”Eu me ocupei construindo esse telheiro,
tinha certeza de que alguma coisa vira
terá ele ali um descanso obrigatório”...”
“Agora venha tomar banho e descansar,
como eu temia por sua segurança!
Mas boa noticia preciso hoje lhe dar;
tenho certeza de que lhe irá agradar.
Caro marido, espero uma criança,
que nossa vida doravante irá abençoar!”
EPÍLOGO
Os dois viveram juntos longos anos,
tiveram muitos filhos e alegria
e de repente, as pessoas retornavam
para a cidade refazerem com afanos,
por toda a parte, Falke a nova transmitia
de que não mais os fantasmas a assombravam!