O GIGANTE SEM CORAÇÃO
O GIGANTE SEM CORAÇÃO
(Folclore norueguês, incluído na coleção OS MAIS BELOS CONTOS DE FADAS,
adaptação e versão poética William Lagos, 19 OUT15)
(*) Oswald soa “Osvald”, fjord se pronuncia “fiórde” e Gjermund, “guiêrmund).
O GIGANTE SEM CORAÇÃO I
Muitas histórias vão de boca em boca,
a passar de um país para o seguinte;
escoam séculos sendo recontadas
e assim parecem ter novidade pouca
contos diversos de diferente acinte,
salvo talvez em certas cenas detalhadas.
O mesmo ocorre com esta narrativa
que da Noruega nos chegou de oitiva.
É parecida com a do Bicho Manjaléu,
que foi por Sílvio Romero recolhida,
em algum ponto do Nordeste brasileiro.
Portugal e a Noruega igual arpéu
utilizavam para a pesca mais renhida
do bacalhau e algum velho marinheiro
contou a história para outro português
ou foi um luso que a narrou ao norueguês...
Naturalmente, os detalhes transformaram,
embora outros conservassem em constância
e hoje me apraz contar esta versão
que escandinavos de há muito registraram.
Como saber qual será a inicial instância?
Em O Monstro do Castelo a narração
já em forma de poesia apresentei,
mas esta agora em meus versos contarei.
Portanto, vamos lá: “Era uma vez”
um rei que fora pai de sete filhos;
não era rico, governava um só fjord
no recortado litoral norueguês;
os reis vizinhos bem mais ricos em atilhos, (*)
sem que aliança com ele algum concorde;
e os rapazes continuavam sem mulher:
não poderiam casar com uma qualquer!...
(*) arames, limitações, fronteiras.
O GIGANTE SEM CORAÇÃO II
Já tendo ambos completado vinte anos,
os dois mais velhos foram falar ao pai,
os quais Harald e Haakon se chamavam:
“Majestade, já sofremos desenganos,
nenhum dos reis vizinhos aceitar vai
contrair aliança, pois todos nos falavam
pobre demais o nosso reino ser,
com escassas tropas para o defender.”
“Assim, pedimos permissão para ir buscar
em algum reino mais distante boa esposa;
noutro fjord, quem sabe, ou alguma ilha...” (*)
O velho rei concordou em os ajudar:
deu-lhes cavalos, armas, alguma coisa
que servisse como dote para a filha
de qualquer rei que aceitasse sua mensagem
e ainda cedeu a cada filho um forte pajem.
(*) Golfo profundo e estreito originado por geleira.
Harald e Haakon cruzaram as montanhas
até a Suécia e com o Rei de Lillhärdal
entabularam as devidas tratativas.
O Rei aceitou os presentes e com manhas,
sem de fato pretender-lhes fazer mal,
porém com certas intenções esquivas,
deu-lhes duas das mais moças de suas filhas;
feitas as bodas, retornaram às suas trilhas...
Bem satisfeitos estavam os dois casais,
mas o caminho por que tinham vindo
por tempestades fora obstruído
e então seguiram por um passo que jamais
haviam conhecido, mesmo no infindo
buscar por noiva em território percorrido;
e depararam com altíssimo castelo,
sem suspeitar que ocultasse algum flagelo...
O GIGANTE SEM CORAÇÃO III
Ora, era aquela a imensa habitação
de Gjermund, troll e feiticeiro,
que o destino comum já revertera,
sem virar pedra em qualquer ocasião
que se encontrasse sob o sol, ligeiro,
mas a humanos por magia pudera
transformar em estátuas, por sua vez,
cada vítima a garantir-lhe mais um mês!
Os dois príncipes, suas noivas e seus pajens
viram belas estátuas no caminho
e pensaram ser ali bem recebidos,
da perfeição desses traços em miragens,
sem perceber em cada rosto ali vizinho
a tristeza dos viajantes ali perdidos,
que permitiam ao feiticeiro troll
andar tranquilo sob a luz do sol!...
Havia também estátuas derruídas,
que após um ano sem força vital,
durante as noites frias, desmanchavam,
o mau gigante usufruindo de suas vidas;
porém marcharam, como era natural,
até os portões que de longe divisavam...
Então as folhas se abriram e o gigante
os acolheu, com um riso delirante!
“Sejam bem-vindos, jovens viajantes!
São doze de uma vez, que maravilha,
seis seres humanos e mais os seus cavalos!...”
Estendeu a mão direita e em três instantes
todos viraram em pedra sobre a trilha
e Gjermund pôs-e logo a colocá-los,
com cuidado e até mesmo com carinho,
belas estátuas, à beira do caminho!...
O GIGANTE SEM CORAÇÃO IV
E retornou a seu castelo, satisfeito,
contando à jovem que mantinha prisioneira:
“Um ano inteiro eu hoje consegui!
ao temor da luz do sol não mais sujeito
e não preciso transformá-la, bela herdeira,
por mais um ano a guardarei aqui,
até que Kaspar, seu pai, pague o resgate
ou mande herói, pensando que me abate!...”
“De fato, Trondheim é bem distante
seu pai decerto perdeu toda a esperança,
ainda que seja você a única filha!...
Deixe o fogo na lareira crepitante,
vou caçar alguns veados e abastança
terei de vinho para encher a bilha!...
Tenho certeza de que fugir não tentará,
Porque em pedra também se tornará!...”
Três meses se passaram, sem notícia
dos príncipes que haviam viajado;
então se apresentaram Aage e Aksel
perante o rei e com um pouco de malícia,
falaram: “O nosso coração anda angustiado,
de nossos irmãos não sabemos o quartel...
E também noivas queremos conseguir...”
De boa vontade o rei seu pai foi consentir.
E concedeu-lhes dois pajens, igualmente,
com dois belos cavalos equipados,
roupas e armas e também um dote,
para o rei de algum lugar, com tal presente
convencer, para ali serem casados
e só voltarem após lauto convescote...
Aage e Aksel marcharam para o sul,
tomando um drakkar sobre o mar azul... (*)
(*) Barco viking.
O GIGANTE SEM CORAÇÃO V
E assim chegaram até a Dinamarca,
bem recebidos em Aalborg pelo rei,
que lhes deu duas de suas muitas filhas
e retomaram sua viagem numa barca,
contudo o vento os soprou para outra grei
e da Suécia percorreram largas trilhas...
Mais uma vez cruzaram as montanhas,
sem saber do troll maligno as façanhas...
E ao avistarem ao longe o seu castelo,
cavalgaram para lá, alegremente,
vendo as estátuas à beira do caminho;
e então Aage reconheceu o rosto belo
de seu irmão Haakon, de repente,
passando os dedos pela pedra, com carinho...
Porém antes que tomassem providência,
chegou o troll em toda a sua potência!
E novamente a todos transformou...
“Que maravilha! Ganhei hoje mais um ano!
De minha Hedvig conservarei a companhia!
Nem sei por que sei pai não procurou
pagar por ela um resgate soberano...
Mas não faz mal, que como escrava serviria
bem mais que qualquer arca cheia de ouro
ou mais heróis a buscar seu morredouro!...”
Passados mais três meses, bem inquietos,
apresentaram-se perante o rei seu pai
Endre e Erik, mais dois outros de seus filhos.
“Majestade, temos os dois grandes afetos
por nossos irmãos e o tempo vai
passando sem noticias de seus trilhos!...
Permiti que agora os vamos procurar
e se possível, também noivas encontrar!...”
O GIGANTE SEM CORAÇÃO VI
Já agora o rei não o queria permitir,
mas Endre e Erik afinal o convenceram
e empreenderam também a sua viagem,
belos cavalos, lindas roupas a vestir,
boas armaduras e bons dotes receberam,
cada qual acompanhado por seu pajem.
Os dois partiram, era verão, havia poeira,
temendo o rei ser despedida derradeira...
Passados mais três meses, chega o outono,
sem o menor sinal dos viandantes
e Oswald, o caçula, pediu para os buscar...
“Mas o quê? Quer deixar-me no abandono?”
Protestou Oleif, em sons altissonantes.
“Perdi seis filhos e também quer me deixar?”
“Senhor meu pai, tenho mau pressentimento:
vou buscar os meus irmãos, não casamento!”
“Nem poderia querer!...” – gritou o monarca.
“Você é jovem demais para casar!
Um filho ao menos deve ficar comigo,
seis filhos me roubou a sorte parca, (*)
não deixarei você também me abandonar!
Ficar aqui sem nenhum filho não consigo!”
Mas tanto Oswald com seu pai insistiu
que finalmente o Rei Oleif consentiu...
(*) Escassa, magra, difícil.
“Mas dote não lhe dou, fique sabendo!
Seus irmãos já levaram meus seis pajens
e a maior parte dos corcéis da estrebaria!...”
“Com meu velho cavalo bem me entendo,”
disse Oswald. “Por mais longas as viagens,
será fiel. Sei que me acompanharia...”
Então Oleif permitiu que ele partisse,
fraca a esperança de que algo conseguisse!
O GIGANTE SEM CORAÇÃO VII
Ora, Endre e Erik haviam atravessado
toda a Lapônia até ao Báltico chegar,
entrando em Oulu, um reino da Finlândia
e ali os dois também haviam casado,
para a Noruega igualmente a demandar...
Mas novamente chegou uma tempestade
e na Suécia ingressaram sem vontade...
E como o troll era versado na magia,
mesmo estando ainda no verão,
todas as sendas estavam interrompidas,
menos aquela que ao castelo conduzia
e para lá seguiu a procissão,
e várias faces foram então reconhecidas,
mas antes que pudessem debandar,
surgiu o troll, com vasto gargalhar!...
E assim mais doze esculturas conseguiu,
seis estátuas equestres no beiral (*)
do caminho que levava à sua morada;
por mais um ano a vida delas assumiu,
podendo andar sob o sol sem sofrer mal,
cada uma de suas vítimas empedrada
e continuou com Hedvig a se gabar:
“Prefiro até que não venham te buscar!...”
(*) Estátuas de cavaleiros montados.
Oswald, então, partiu em pleno outono
sem um pajem sequer por companhia;
sua mãe Astrid só lhe deu um amuleto,
com o martelo de Thor, do raio o dono;
segundo ela, proteção concederia
contra qualquer perigo ou desafeto...
E como o príncipe não buscava casamento,
cruzou as terras sem impedimento...
O GIGANTE SEM CORAÇÃO VIII
Eventualmente, um corvo branco ele encontrou,
a debater-se na beirada do caminho,
no tempo firme, quase morto já de fome
e a ave, humildemente, suplicou:
“Ah, meu senhor, lindo principezinho,
dê-me agora alguma coisa que se come!”
“Ora,” disse Oswald, “resta-me pouca provisão
no meu alforje e ainda é longa minha missão...”
“Mas o que tenho, repartirei consigo...”
O pássaro comeu, tomado de avidez
e crocitou: “Mais alimento, por favor,
tenha pena de mim, meu belo amigo...”
E Oswald o alimentou segunda vez...
“Mais um pouco, dê-me agora, meu senhor!”
E deu-lhe o príncipe o restante da comida.
Se não caçar, minha vida está perdida!
Ficou o corvo então bastante forte
e abriu as asas, na ânsia de voar,
mas uma pena derrubou no chão:
“Meu amigo, compartilho de sua sorte.
Ao velho Odin me quiseram consagrar. (*)
se precisar, dar-lhe-ei toda a proteção!
Guarde essa pena: basta dar-lhe um leve toque
e será fácil que me chame e me convoque!...”
(*) O deus Odin era cego de um olho e trazia um corvo ao ombro.
Oswald prosseguiu pela sua senda
e assim chegou às margens de um ribeiro,
junto ao qual enxergou gordo salmão.
Bem, é como fala a antiga lenda,
para ação boa a recompensa vem ligeiro:
dar-me-á o peixe uma boa refeição!...
Mas o salmão logo a seguir lhe suplicou:
“Belo príncipe, que hoje aqui me achou...”
O GIGANTE SEM CORAÇÃO IX
“Por favor, torne a pôr-me dentro da água,
porque Njorthur o recompensará,
o deus das águas, senhor do turbilhão!...”
Oswald era cristão, mas sentiu mágoa:
O peixe é gordo e minha fome acalmará,
mas sinto pena do coitado do salmão!...
E assim lançou-o de volta no ribeiro...
“Belo príncipe, sois mesmo um cavalheiro!”
Ao esfregar-se num seixo, soltou escama
e a assoprou bem depressa para a margem:
“Querido amigo, sempre o ajudarei:
por esta parte de mim, você me chama
e virei logo ajudá-lo, com coragem
de onde quer que estiver, eu chegarei!”
Oswald agarrou a escama, sorridente:
Se comer isso, ficarei até doente!...
Algumas horas depois, junto da estrada,
o seu cavalo num susto se empinou,
ao ver um lobo magro e desvalido...
“Jovem príncipe, há um mês não como nada!
Com boa razão o seu cavalo se assustou,
deixe que o coma, tenho o estômago encolhido!”
“Mas se o deixar, precisarei de andar a pé...”
“Bem ao contrário, em mim pode montar...”
Assim Oswald, tomado de piedade,
(estava fraco o seu cavalo e bem sabia
que muito em breve não marcharia mais...)
desmontou, tirando a albarda com bondade (*)
e logo o lobo a atacar o animal via,
a devorar-lhe carne e osso e tudo o mais!...
Tomado de receio, puxou a espada!
Disse-lhe o lobo: “Não precisa temer nada!...”
(*) Arreios e sela.
O GIGANTE SEM CORAÇÃO X
“Salvou-me a vida,” o lobo lhe falou.
“Meu nome é Fenris e lhe serei fiel,
pode encilhar-me com os seus arreios...”
Um arrepio por Oswald perpassou.
“Não tenha medo, meu caro donzel,
vou ajudá-lo por todos os meios...
Não sou maligno e conheço esse gigante
e o levarei até ele em breve instante!...
E muito em breve chegaram à estradinha,
com vinte estátuas perfeitas enfeitada
e ali Oswald reconheceu a cada irmão!
As tristes lágrimas já não mais continha,
mas disse o lobo: “Eu o ajudo na empreitada:
matar o troll será somente a solução!
Desmonte agora e nas portas vá bater,
que alguém virá depressa lhe atender!...”
“Mas o gigante não me virá matar?”
“Esse é o Troll Gjermund, um feiticeiro,
que anda no sol, por força da magia,
enquanto pode a outros encantar...
Mas está a caçar agora, aventureiro!...
Sei que ele à noite apenas voltará.
Aqui mantém prisioneira uma princesa:
que odeia o monstro e agirá em sua defesa!...”
Oswald então encheu-se de coragem
e foi bater à porta imensa do castelo...
Em um dos lados abriu-se janelinha:
“Que mau destino lhe trouxe sua viagem!
Vá embora depressa, jovem belo:
o troll malvado bem depressa se avizinha!”
“Mas meus irmãos eu quero libertar,
sei que esse troll os foi em pedra transformar!”
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XI
“O Troll fareja qualquer cristão de longe!”
“Eu sou cristão, mas trago um amuleto
do velho Thor, que minha mãe me deu
e que disfarça qualquer cheio de monge...”
“Pois entre, então, tenho um lugar secreto...”
Alguma comida também lhe ofereceu,
porém lhe disse: “Não vá fazer um movimento,
que o Troll Gjermund tem ouvido bem atento!”
Ao escurecer, o enfiou em vasta arca,
Em que guardar a lenha costumava;
e na espera do retorno do gigante,
lenha verde queimou e fumaceira abarca
toda a cozinha e o cheiro disfarçava,
mesmo ficando com o olhar lacrimejante.
Logo a seguir chegou Gjermund carregado,
trazendo às costas duas carcaças de veado...
Cravando espetos, na lareira as estendeu,
mas logo pôs-se pela casa a farejar...
“Eu sinto cheiro aqui de carne humana,
por acaso algum cristão apareceu...?”
“Não, meu senhor, só um corvo veio largar
um osso na lareira, sobre a chama...”
Ficou o troll um pouco desconfiado,
mas atribuiu o cheiro ao bom assado...
Ficou a princesa assim assando a carne inteira
e depois o gigante comeu-a fartamente
e ainda bebeu três garrafões de vinho...
Foi a seguir esticar-se na sua esteira
e Hedvig coçou-lhe a barba, suavemente,
enquanto Oswald se encolhia, bem quietinho,
dentro da arca, agarrando o amuleto,
que fora de sua mãe um dom secreto...
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XII
E adormeceu, sentindo a proteção,
não só de Thor, porém também de Odin,
o corvo branco a ele consagrado
e de Njorthur, que protegia o salmão (*)
e mesmo Fenris, que o ajudara, enfim,
tal qual por Loki, se deixando ser montado.
(Até o castelo o conduzira fielmente,
mas não sabia se o veria novamente...)
(*) Pronuncie “niôrtur”.
Assim que viu o troll semidormente,
ela indagou: “Está bem alimentado...?”
“Estou, sim, boa noite, princesinha...”
E continuou a acariciá-lo, brandamente,
cada baraço de sua barba desmanchado
“Posso fazer-lhe só uma perguntinha?”
“Ora, o que é?” Gjermund bocejou.
“Seu coração, em que lugar guardou...?”
“Que lhe interessa? Está bem escondido,
tenho certeza de que ninguém o pode achar...”
Mas a princesa insistindo continuou.
“Quero dormir...” – disse semiadormecido.
“Curiosidade é que me leva a perguntar...”
E finalmente, o gigante resmungou:
“Está debaixo da pedra do portal,
bem lá no fundo, que não sofra qualquer mal...”
Dizendo isso, o gigante adormeceu
e a princesa foi para a própria cama,
enquanto Oswald na arca se encolhia...
No outro dia, restos de carne ele comeu
e quando ia para o bosque, reclamou
que a caça bem mais longe se escondia.
“Mas carne humana eu não posso comer,
pois isso iria o meu feitiço desfazer!...”
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XIII
Assim que achou que estava bem distante,
Hedvig abriu a arca e a Oswald libertou,
meio sem ar e com falta de alimento
e à tarefa se aplicaram, incessante:
Oswald fundo cada vez mais cavou,
juntando a terra Hedvig em olhar atento,
até que os dois a mentira compreenderam
e toda a terra no buraco já esconderam...
Mas Hedvig foi com ele colher flores
para a soleira cobrir do vasto umbral...
Quando chegou, o troll já quis saber:
“Por que esses matos de todas as cores?”
“São flores, meu senhor! Não fiz por mal,
foi por carinho, depois de conhecer
o lugar em que está seu coração...
Colhi as flores com minha própria mão...”
“Então não foi para disfarçar esse fedor
de carne humana que empesta toda a casa?”
“Foi uma fera que matou uma criança
E veio devorá-la logo aqui, que horror!”
Aceitou Gjermund essa desculpa rasa
e se assentou para logo encher a pança.
O amuleto do deus Thor interferia
no raciocínio que normalmente empregaria!
Assim que se deitou na longa esteira,
veio Hedvig para seus pés lavar,
trazendo bacia de água de sua fonte,
enquanto Oswald a audição esgueira
para a conversa de ambos escutar...
“Meu senhor, já que a resposta se desconte,
em que lugar esconde mesmo o coração?”
“Bem num lugar em que jamais o acharão!”
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XIV
“Mas onde está, meu senhor? Estou curiosa!!
“Ai, quer de novo impedir-me de dormir?
Eu o escondi na parede, atrás do armário...
Agora deixe que eu durma, sua teimosa!
Já lhe contei, portanto pode desistir!...”
E então voltou-se para o lado contrário...
foi Hedvig no próprio leito se deitar
e Oswald adormeceu, já quase a sufocar!...
No outro dia, o gigante armou um laço:
“Desta vez são javalis que eu vou caçar!”
A grande arca a princesa logo abriu
e após comer, Oswald, embora lasso, (*)
foi bem depressa o armário a empurrar
e uma parede em pedra lisa então surgiu...
Respirou fundo e a atacou com picareta,
tentando achar a tal câmara secreta...
(*) Cansado
Mas tudo em vão; e a tarde já no meio
o buraco preencheram totalmente,
as pedras a rejuntar com argamassa
e empurrando o armário de permeio,
que Hedvig cobriu, completamente,
com lindas flores, que arrumou com graça.
Quando Gjermund retornou, bem carregado,
viu o arranjo e ficou muito espantado...
“Ora, mulher, para que essa sujeira?”
“São flores, meu querido, que arrumei
para enfeitar onde está seu coração...”
“Princesa, você é só minha cozinheira,
naturalmente outra mentira lhe contei,
é bem secreta sua localização...
Vamos assar meus javalis, mulher safada!”
Disse o gigante, com vasta gargalhada...
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XV
“Não me engane, passou um humano por aqui!”
“De fato, veio à tarde hoje um mendigo
a quem dei algumas sobras de comida;
velho e leproso, eu logo percebi
que não servia nem de ajuda, nem perigo
e o espantei, fingindo estar enfurecida...
Como outra estátua não lhe serviria,
tive certeza de que em breve morreria...”
“Mas não seria de seu pai um mensageiro?”
“Meu pai decerto de mim já se esqueceu;
já se estão desmanchando pela estrada
as estátuas de cada cavaleiro
que por mim a enfrentá-lo se atreveu
e realmente, estou desesperançada...”
“Pois muito bem, hoje terei um bom assado,
estou com fome, com sono e até cansado...”
Logo depois de concluída a refeição,
o gigante se esticou, a bocejar,
e Hedvig foi fazer-lhe uma massagem.
“Então me diga onde está seu coração...”
“Não me vai mesmo parar de importunar?”
Falou o gigante, com cruel visagem.
“Já está demais esse aborrecimento,
a verdade vou contar-lhe em um momento...”
“É mesmo longe demais para se achar...
Há uma ilha, passando o Skagerrak, (*)
que separa a Suécia e a Dinamarca;
bem lá no meio existe um lago a cintilar;
ninguém pode atravessar sem que o ataque
um monstro que de feitiço traz minha marca...
Bem no meio do lago, há ilha menor,
com um círculo de dolmens e um tambor...”
(*) Estreito que sapara o Mar do Norte do Báltico. Pronuncie “chagueraque”.
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XVI
“Que alguém o encontre, não há possibilidade,
mas além disso, há outra arcana proteção:
para entrar lá, certo tambor deve rufar,
sendo preciso muita força, na verdade,
porque foi feito com couro de dragão,
que só o Mjölnir de Thor pode acionar... (*)
Dentro do henge existe ainda uma lagoa, (+)
Para chegar lá é preciso ter canoa...”
(*) O martelo de Thor. Pronuncie “miêlnir”
(+) Círculo pré-histórico de dolmens e menires.
E nada um cormoran no centro da lagoa;
de fato, é uma fêmea, que traz ovo
que enfeiticei para jamais chocar;
dentro do ovo, meu coração ressoa,
para que bata, sempre o ritmo renovo,
cada vez que um viajante vou encantar...
Já tudo lhe contei, sem mais a iludir,
mas por favor, agora deixe-me dormir!...”
No outro dia, falou o troll, logo a acordar:
“Veja bem, eu lhe contei o meu segredo,
porém isto não lhe servirá de nada...
Se de algum modo a seu pai o comunicar,
desde agora vá sentindo muito medo,
pois morrerá, se vir minha vida ameaçada!”
Mais tarde Oswald despediu-se da princesa:
“Não sei onde é, mas o procuro com firmeza!”
“Terá de achá-lo com bastante pressa,
que o tempo rapidamente já se escoa:
de seus irmãos mais velhos, ao fim do ano
as estátuas se desmancham, não se esqueça!”
Mas teve Oswald a seguir notícia boa:
o Lobo Fenris o esperava sem engano.
“Monte em mim, que o caminho já conheço
e meu esforço em lá chegar não meço!...”
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XVII
E assim partiu, na maior velocidade,
com o príncipe agarrado no seu freio
e após dois dias, chegaram ao estreito;
nadou o lobo na maior tenacidade,
das águas frias sem sentir qualquer receio,
seu destino alcançando sem defeito
e após um descanso muito breve
a retomar a jornada já se atreve...
Logo chegaram ao tal lago interior;
de fome o monstro estava enfraquecido,
Oswald e Fenris o mataram bem depressa
e atravessando as águas sem temor,
foi logo o círculo de dolmens atingido,
mas a entrada, porém, não se atravessa
e a única coisa que parecia com tambor
era um cilindro com cobertura multicor.
Mas sem baqueta não o poderia tocar...
Então o lobo apontou para um ressalto:
lá estava ela, bem no topo de um menir!
“Somente o corvo poderá ali chegar!”
Oswald ergueu a pena, então, bem alto
e em breve o corvo viu no ar surgir!...
Com o bico a baqueta, facilmente
ele agarrou e entregou-lha bem contente!
Mas o tambor não conseguiu tocar!...
Então lembrou-se do seu amuleto,
que a mãe lhe dera, da tradição antiga
e de Thor o poder foi invocar!...
Em suas mãos eis o martelo já completo!
E como a força de Thor então consiga,
aplicou um feroz golpe no tambor,
que então ressoou, irresistível seu fragor!
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XVIII
Desfez-se a proteção e os dois entraram
e bem no centro encontraram um laguinho
e nele um cormoran fêmea nadava!...
Pela magia do amuleto então a chamaram
e veio dócil, qual um meigo passarinho...
Mas no instante em que Oswald a segurava,
mansamente soltou o ovo lá no fundo
e então o gigante sentiu um frio profundo!
E no temor de que ocorresse qualquer mal,
quis retornar direto a seu castelo!...
Porém Oswald agarrou firme a sua escama:
Surgiu o salmão de Njorthur e, triunfal,
desceu ao fundo e trouxe o ovo com desvelo;
e lá no mato o troll de dor exclama,
passando a caminhar bem lentamente
e estava longe do castelo, realmente!...
Não tenho dúvida, Hedvig me traiu,
mas de que forma até lá alguém chegou?
Nenhum cristão assim depressa chegaria!
Só se o poder do povo antigo o conduziu,
mas a traidora matar primeiro eu vou,
que enfeitar meu coração tanto fingia!
E vou quebrar as estátuas no caminho,
se vou morrer, não morrerei sozinho!
Montou no lobo Oswald novamente
e retornaram na mais rápida viagem.
o velho troll pelo bosque a se arrastar!
E logo se encontraram frente à frente:
quebrou Oswald o ovo ante a abordagem
e o gigante por sua vida suplicou!
“Primeiro, meus irmãos vai libertar,
caso contrário, seu coração vou esmagar!”
O GIGANTE SEM CORAÇÃO XIX
Gjermund, com um resto de energia,
desfez o encanto que a todos conservava:
irmãos, cavalos, pajens e princesas!...
Oswald esmagou então o órgão que trazia
e com um berro já o troll se transformava
em um penhasco de ásperas durezas,
pois esquecera que estava sob o sol,
logo morrendo à luz desse farol!...
E na mão de Oswald, o coração
esmagado transformou-se em cem rubis!
Foi ele então a sua Hedvig resgatar
e cada um dos irmãos beijou-lhe a mão,
e lhe jurou, sem ter reservas vis
que como rei e soberano o iria aceitar!
De fato, estavam muito enfraquecidos
e ainda mais que isso, agradecidos!...
Hedvig e as princesas prepararam,
gastando nisso da despensa as provisões,
para todos o mais lauto banquete;
também no pátio o corvo branco alimentaram
e no riacho grande família de salmões,
e o lobo Fenris também comeu por sete!
Embora olhasse com gula seus cavalos,
mas sem pensar de fato em devorá-los...
E foram todos para o reino de seu pai,
mas no caminho forte exército encontraram:
era o rei de Trondheim buscando a filha!...
Feliz Hedvig para seus braços vai
e Oswald, o salvador, todos louvaram!...
Ao lobo Fenris ser montado não humilha
pois amplo crédito lhe dava o cavaleiro,
todos marchando até o fjord bem ligeiro!...
EPÍLOGO
Oleif e Astrid no maior contentamento,
pois sete filhos e as esposas recobraram,
mas o Rei Kaspar insistiu, bem firmemente,
e tão logo celebrado o casamento,
sua filha Hedvig e Oswald o acompanharam,
em direção a Trondheim, naturalmente.
Fenris, porém, aproveitou essa ocasião
e despediu-se, a prometer-lhe proteção!
Muito em breve Oswald e Hedvig governaram
o reino de Trondheim, com muitos filhos;
antes Oswald quis o amuleto devolver,
mas deu-o Astrid a Hedvig e o conservaram;
o corvo branco seguiu os mesmos trilhos,
que o lobo Fenris, já cumprido o seu dever.
E no fjord pescar salmões foi proibido,
por ter Oswald grande ajuda recebido...
Gjermund, certa noite, desmanchou-se;
logo a seguir, o seu castelo desabou.
Mas no fjord prepararam um torneio
em que Haakon como herdeiro transformou-se
mas cada irmão um reino seu também achou,
mediante a sua conquista ou outro meio
e com Haakon todos firmaram aliança,
em liga forte e sempre cheia de pujança!...