A BOA ESPOSA

A BOA ESPOSA

(Populário português, recolhido por Viriato Padilha em HISTÓRIAS DO ARCO DA VELHA,

adaptação e versificação por William Lagos, 28 set 15).

A BOA ESPOSA I

Esta história em estereótipo se encaixa:

existem muitas de cunho semelhante,

sobre trocas que alguém vai levando adiante,

sem grande inteligência e menos siso,

em consequência a sofrer vasto prejuízo,

embora siga seu final diversa faixa...

Porém vamos depressa à narrativa

e se aqui reconheceres elementos,

não deves suspeitar quaisquer portentos:

de boca em boca as histórias se repetem,

detalhes tiram, ao passo que outros metem,

renova a fantasia e a imaginação se ativa.

Pois morava em uma granja retirada

Pancrácio do Morro, um velho camponês,

com sua esposa Gertrudes, que lhe fez

durante décadas amigável companhia,

que a falta de filhos lhes supria,

quando a paixão por amizade é temperada.

De certo modo, ambos pensavam igualmente

e quando Pancrácio algo modificava

em sua granja ou na casa consertava,

Gertrudes quase sempre agradecia,

por atender a algum desejo que nutria,

sem precisar expressá-lo abertamente...

A BOA ESPOSA II

Alguns casais são assim, embora raros,

em que não haja qualquer tipo de disputa,

já que, às vezes, por bobagens, vão à luta,

perturbada, sem a menor necessidade

a paz doméstica que lhes traz felicidade,

despedaçando mil momentos que são caros...

Podia alguém lhes desprezar a condição:

que estavam simplesmente acomodados,

vivendo de sua granja, sem cuidados,

sem sofrerem os golpes de atroz sorte,

simplesmente na espera de sua morte,

sem desejos a expressar ou ambição.

Mas de fato, enquanto o tempo ia a passar

a sua granjinha parecia ser maior

e o quefazer de casa bem pior,

naturalmente, em função da longa idade,

as energias a lhes sugar em quantidade,

pois certamente não iriam remoçar...

Ora, o casal possuía ali três vacas

e Pancrácio precisava erguer-se cedo,

para o leite ordenhar, limpar o enredo,

pôr novo feno na manjedoura e aveia,

trocar a água, que doença ele receia,

caso as deixasse ficar entre cacacas...

A BOA ESPOSA III

Ora, Gertrudes, durante horas batia

o leite tirado para fazer manteiga

ou requeijão... e certo dia, com voz meiga,

ela falou: “Pancrácio, temos leite até demais

e desperdícios são antinaturais”:

despensa cheia dos queijos que fazia.

“E tens de levar, em carrinho de mão

os potes de manteiga e a queijaria

para vender, quando a feira se reunia...

A nossa idade já não permite isso,

já se passou de ambos nós o viço;

tanto esforço te faz mal ao coração.”

“E para que tanto trabalho, na verdade?

Chegam a horta e as frutas do pomar;

é para os outros que te estás a fatigar!

Nossas gavetas estão cheias de dinheiro,

para deixar nem sequer temos herdeiro!

Seria melhor ter menos faina em nossa idade!”

“Está certo,” disse Pancrácio, “tens razão,

como aliás em tudo o mais, mulher sensata;

a idade já minhas forças me arrebata...

Mas que devíamos os dois fazer agora?

As vacas mugem quando chega a hora:

preciso aliviá-las de seu leite então!...”

A BOA ESPOSA IV

“Ora, é até simples! Uma das vacas vais vender!

Leva-a até a feira, que não falta comprador;

as outras duas nos bastam, sem favor.

Não precisamos fazer mais potes de barro

para guardar manteiga e nem teu carro

terás de empurrar, com tanto padecer!...”

O bom Pancrácio concordou, sem discutir

e no outro dia, após ter ordenhado,

firme cabresto no pescoço já ajeitado,

saiu com a vaca que lhe dava mais trabalho;

mas sem costume de sair, a cada atalho

empacava o animal, em alto mugir!...

Pancrácio já estava arrependido,

por encontrar tanta dificuldade,

mas o animal agia sem maldade

e finalmente à aldeia eles chegaram...

Só que não era dia de feira! E se abalaram

de volta, sem ter nada conseguido...

Bem, tudo tem seu lado bom...

Junto da estrada não faltará capim...

É só a maçada de retornar assim,

puxando por cabresto o bicho arisco!...

Mas de me machucar não corro o risco,

liso o caminho, da luz ainda bom tom...

A BOA ESPOSA V

Mas a estrada era longa e o cansaço

do bom Pancrácio logo se apoderou;

sua boa-vontade em breve se acabou.

Já está tarde!... E se tropeço em valo?

Viu então homem montado num cavalo

e então pensou: Um bom negócio eu faço!

Ao invés de puxar esta vaquinha,

esse cavalo na garupa me carrega!

A vaca vale mais, mas o escuro já me cega...

“Amigo, seu cavalo não quer trocar comigo?

Minha vaca é boa leiteira, mas neste passo não consigo

chegar em casa senão de manhãzinha!...

Então o homem, examinando o animal

e sabendo seu cavalo já estar velho,

achou a troca ser de bom conselho...

“Barganho a vaca pelo meu cavalo,

mas com a sela e arreios eu me abalo:

Só lhos darei por bom dinheiro, é natural...”

Porém Pancrácio dinheiro não trouxera:

tirou o cabresto do pescoço da vaquinha,

montou a pelo, para seguir pela estradinha,

enquanto o outro tomava a senda oposta;

no lombo da vaquinha a sela encosta,

seguindo o rumo oposto ao que viera.

A BOA ESPOSA VI

Antes Pancrácio ele ajudou a montar;

falou ao ouvido, tapinhas deu no lado,

deixando o animal bem sossegado...

Contudo, o velho não era cavaleiro

e somente com o cabresto, bem ligeiro,

logo o cavalo se iniciava a rebelar...

E finalmente, começou mesmo a empinar!

Pancrácio firme agarrou-se na sua crina,

amaldiçoando já sua triste sina!...

E logo estava caminhando a pé,

puxando o bicho que negaceava até,

bem mais difícil que a vaquinha de puxar!

Fiz mau negócio! – Pancrácio resmungava.

Pensei montar feito um imperador

e estou a puxar, já no peito a sentir dor!

Essa alimária não me quer acompanhar,

mas para a chácara antiga quer voltar!...

E a escuridão ao derredor já se espalhava...

Então surgiu em seu caminho um camponês,

conduzindo um porco gordo a bambolear.

“Meu amigo, por que está a caminhar?

Sua montaria já machucou a pata...?”

“Não foi por isso, mas tive a sorte ingrata

de não saber montar nesse freguês!...”

A BOA ESPOSA VII

“Você é que é feliz, com seu porquinho!

Este cavalo não me quer obedecer:

se eu pudesse, iria a troca desfazer...”

“Meu porco está bem gordo,” o outro falou.

Um belo rolo de corda ele mostrou:

“Freio e estribos improviso direitinho...”

E vai palavra aqui, lá vai barganha,

trocou Pancrácio pelo porco o seu cavalo!

Ao camponês foi bem fácil dominá-lo

e já seguiu a bom galope pela estrada.

Bem, me livrei da tal besta quadrada,

este porquinho tem decerto menos manha...

O bom Pancrácio já se achava bem feliz,

mas quando pretendeu seguir caminho

o porco gordo foi deitando, de mansinho

e Pancrácio não o pôde levantar!...

“Ai, meu Deus!... Como a casa vou chegar?

No fim das contas, mau negócio eu fiz!...”

Apareceu-lhe nesse instante outro rapaz,

com uma cabra a puxar pelo cabresto;

o animal cabriolava a passo lesto...

Olha aqui!... Enfim, Deus me ajudou!”

E bem depressa pelo porco ele a trocou:

com duas lambadas logo erguer-se o outro faz!

A BOA ESPOSA VIII

E realmente a cabrita era veloz:

logo saía a correr pelo caminho;

puxou Pancrácio por seu cabrestinho,

mas não parava na estrada simplesmente;

pulava os valos como animal valente,

subia as barrancas com vigor feroz!...

Pobre Pancrácio, homem já bem velho,

era forçado a seguir o animal,

sem lhe largar o cabresto, é natural,

todo doído, com os joelhos machucados,

por entre espinhos os braços esfolados,

a lamentar não ter trazido um relho!...

E quando viu que um rebanho ali se achava

propôs trocar a cabrita por ovelha:

o pastor logo aceitou, de boa telha

e se afastou com seu rebanho pela estrada;

mas a ovelha, ao se ver abandonada,

por seguir as companheiras se esforçava!...

Triste Pancrácio, que nessa direção

não pretendia seguir de modo algum!...

E já pensava: Vou trocar com qualquer um

que um bom negócio agora me ofereça

ou então vendo baratinho esta má peça,

que já me esfola toda a palma de minha mão!

A BOA ESPOSA IX

E não tardou outro campônio a aparecer,

um ganso gordo a trazer sob seu braço:

“Meu amigo, a sua ovelha, nesse passo,

vai morrer logo em seguida, não sou cego,,

mas estou mesmo precisando de um pelego:

troco sua ovelha por meu ganso com prazer!”

Seguiu Pancrácio com a ave sob o braço,

mas o ganso estranhou seu novo dono:

ele grasnava e se agitava feito um mono!...

Pancrácio, exausto, avistou um galinheiro

e o trocou por um galo com o rendeiro,

suas patas amarradas por um laço...

Mas logo o galo começou a se agitar,

tentando abrir as asas e fugir!...

Pancrácio não mais pôde se iludir,

já noite escura, um vento muito frio...

Preciso me abrigar, pois não me fio

de minha saúde. E se a morte me pegar?

Uma estalagem então viu iluminada,

vendendo o galo em troca de um escudo...

Comeu, bebeu, dormiu, cansado e mudo

e de manhã, pagou com o escudo sua despesa...

Homessa!... Olha em que deu minha proeza!

Perdi minha vaca e não me sobrou nada!...

A BOA ESPOSA X

E foi andando, sem saber direito

o que dizer, quando chegasse a casa,

como explicar a lógica que embasa

aquela série de trocas sem sentido...?

Melhor seria ter voltado arrependido,

com o cabresto que a vaquinha tem sujeito...

Então encontrou o Serapião, um seu vizinho:

“Olá, compadre! O que faz na estrada agora?”

“Eu fui vender uma vaquinha...” “Nesta hora?”

“Não, eu fui ontem...” Estava bem envergonhado:

Como explicar o que se havia passado?

Mas Serapíão o convenceu, devagarinho...

E finalmente, desembuchou o coitado:

“Olhe, minha vaca eu troquei por um cavalo,

Mas era xucro, quase me lançou num valo!

Troquei-o então por um porco – era empacado!

Troquei por cabra e então fui arrastado

e essa troquei por uma ovelha, já aliviado...”

“Pois a ovelha então por ganso destroquei;

troquei o ganso depois por lindo galo...

Mas senti frio e confesso, não me calo,

que vendi por um escudo na estalagem...

Descansei e comi, não foi vadiagem,

só que o dinheiro dessa venda ali gastei...”

A BOA ESPOSA XI

“Meu compadre, mas que encrenca me arranjou!

Dona Gertrudes vai arreliar por mais de mês!...”

“Pelo contrário,” disse o velho camponês,

“Gertrudes é cordial e não somente

Me irá perdoar, como dirá estar contente...”

“Essa eu duvido!...” E cada um dos dois teimou!

E Serapião, que era rico e apostador,

falou, pensando em lucro fácil alcançar:

“Vinte escudos como um mês irá arreliar!”

“Aposta feita!” – disse Pancrácio, já afogueado.

“Numa gaveta esse dinheiro está guardado!”

“Pois eu trago no meu bolso igual valor!...”

Os dois chegaram à granja ao meio-dia

e Serapião se escondeu junto à janela,

para escutar como o receberia ela...

“Marido, já estava preocupada!...

Aconteceu algum percalço pela estrada?”

E nos seus olhos já o alívio reluzia...

Respirou fundo Pancrácio e lhe falou:

“Gertrudes, não achei ontem comprador:

troquei a vaca por um cavalo, meu amor!”

“Fizeste bem. Vai abreviar tua caminhada;

da estrebaria foi a vaquinha retirada,

temos lugar... Ou lá você já o colocou...?”

A BOA ESPOSA XII

“Não, mulher, eu o troquei por um porquinho...”

“É justamente aquilo que eu faria!

Sabes o que é que a vizinha nos diria?

Que o tal cavalo era um luxo sem razão!...

Melhor um porco para a nossa condição:

pode nos dar salsichas e toucinho!...”

“Mas, Gertrudes, por uma cabra eu o troquei...”

“Uma cabra? Mas é até muito melhor!...

O porco a gente come e, o que é pior,

chegam vizinhos com glutoneria,

vendo se a gente um bom toucinho repartia...

Com essa cabra uns cabritinhos ganharei...”

“Mas mulher, eu já a troquei por uma ovelha...”

“Ótima troca, por que cabras tudo estragam;

As ovelhas nos dão lã e a ração pagam...”

“Pois é, mas por um ganso a barganhei...”

“Muito melhor! Fiar sua lã eu não terei

e uma ovelha bem depressa fica velha...”

“Dará o ganso boas penas de almofada

e depois, nós o comemos ensopado

com arroz e batatas! Grande achado!...”

“Tens razão, mas o troquei depois por galo...”

“Para as galinhas precisávamos... E o badalo

de seu cacarejar nos avisa da alvorada!...”

A BOA ESPOSA XIII

“Mas eu não trouxe o galo, minha mulher...

Caiu a noite e eu não levei dinheiro:

vendi a ave para um estalajadeiro...”

“Mas fizeste muito bem! E então, dormiste?”

“Pois é, sentia frio e a fome insiste...”

“Meu querido, é isso mesmo que se quer!”

“O tal galo só nos iria perturbar,

cantando à noite, desde a madrugada!

E tua saúde não foi prejudicada...

Melhor assim, fizeste muito bem:

é justamente o que eu faria também!

Vem para a mesa para um bom café tomar!”

Então Pancrácio abriu a porta, bem contente:

“Compadre Serapião, nossa prosa ouviste bem?”

“Tudo escutei... Perdida a aposta que se tem...

Mas não me fará falta e a alegria

de saber como a comadre te aprecia

vale bem mais que vinte escudos, minha gente!”

Juntos os três fizeram bela refeição

e Serapião foi-se embora, carregado

de manteiga, requeijão, queijo curado...

Pois, na verdade, a aposta ele fizera

só de pena pela vaca que perdera

seu bom amigo, para lhe dar compensação...

EPÍLOGO

A boa índole de Gertrudes conhecia:

com vinte escudos lhes pagava sua vaquinha,

sem confessar qual intenção que tinha;

caso ao prejuízo compensar se oferecesse

talvez Pancrácio até mesmo se ofendesse...

E foi pensando como era de valia

ter em sua casa uma esposa tão gentil,

capaz de remediar até o mais vil

dos maus negócios com palavras de carinho...

Pois de você tenho até inveja, meu vizinho!...