O CORCEL NEGRO
O CORCEL NEGRO – 17 SET 2015
(Skaz tradicional russo, adaptado e versificado por William Lagos)
(Dedicado a meus filhos Gilleanes Thorwald e Abner Gilead,
que tanto insistiram para que eu versejasse esta história...)
O CORCEL NEGRO I
Antes que a Rússia se tornasse uma nação,
reinos havia nesse vasto território,
cada um deles com seu tzar e sua nobreza.
Num dos maiores reinava, na ocasião,
o Tzar Gorokh, um nome bem simplório,
que significa “Ervilha”, com certeza
e a Tzarina Morkovya, isto é “cenoura”,
um outro nome que à aristocracia desdoura;
tinham voiêvodos, patriarcas e boiardos; (*)
não acrescia Gorokh ao povo os fardos...
(*) Generais, arcebispos e nobres latifundiários.
Em uma aldeia, pelos arrededores,
habitava um honesto marceneiro,
que Piotr Pietrovitch Pietrov se chamava,
muito apreciado pelos grão-senhores,
por seu trabalho muito bom e ligeiro:
cobrava o justo e ninguém se recusava;
mesmo porque ali só havia carpinteiros,
por suas carroças cobrando bons dinheiros,
enquanto Piotr delicada obra fazia
e excelente mobiliário construía...
Tinha três filhos. O mais bem-apessoado
chamava-se Vassily, de Vássya apelidado,
que prosseguia na profissão do pai;
o segundo era Dmitry, que de Mítya era chamado,
sem trabalho realizar mais delicado,
mas honesto lavrador, que ao campo vai.
De fato, Piotr, com o lucro que obtinha,
muito em breve já comprara uma chacrinha,
entregada de seu filho aos bons cuidados,
ele e Vássya na oficina já ocupados...
O jovem Nikolay era seu terceiro filho,
chamado Kólya, ou “Nicolauzinho”;
Vássya era também um diminutivo:
“Basiliozinho”, com cabelos cor de milho,
olhos azuis, da cor de um passarinho;
“Demetriozinho” era Mítya, olhar esquivo,
com seus cabelos negros e escorridos,
sendo os de Kólya vermelhos e incontidos,
sob o gorro quase sempre despenteados,
olhos azuis mas um tanto desvairados...
O CORCEL NEGRO II
Ele nascera dos outros bem depois:
de sua mãe Marfa ele era o gurizinho,
mas nos mais velhos se despertou a inveja;
tornou-se alvo das más peças dos dois,
criando fama de ser meio idiotazinho,
tapas levando quando a mãe o beija...
Ora, assim Kólya bem rápido aprendia
que a fingir-se de pateta lhe valia,
para evitar dos irmãos as diabruras...
(Cresceu depressa, apesar dessas agruras.)
Logo tornou-se um homem bem robusto,
muito mais alto que a família inteira,
pois com muito boa-vontade trabalhava;
do que fazia não lhe pagavam qualquer custo,
salvo umas roupas, já de mão terceira
(mas certamente, muito bem se alimentava...)
Os irmãos lhe davam a obra mais pesada,
longas tábuas carregava e, com a enxada,
carpia depressa toda a terra nua,
mais veloz que Dmitry em sua charrua...
Depressa Vássya e Mítya se casavam
e o pobre Kólya nem tinha namorada;
era forte e até bonito, mas idiota;
segunda vez as moças nem o olhavam.
mesmo porque a sua roupa era surrada
e trabalhava muito mais que a quota.
Alguns diziam que um bruxo era seu pai:
quando algo se perdia, a ele o dono vai
dele ganhando conselhos proveitosos,
os seus acertos realmente prodigiosos!
Mas seu trabalho era o que mais maravilhava;
pois também construía mil brinquedos
para seus filhos e depois para as crianças
de toda a aldeia e alguns mesmo enviava
para os boiardos, sem contar os seus segredos;
nem como Vassily repartia tal bonança;
só o ensinava a fazer mesmo o mobiliário,
que executava, mas com sucesso vário,
cabendo ao pai quase sempre o acabamento:
não o aprendera o filho a seu contento!...
O CORCEL NEGRO III
Mas fabricava com cuidado seus brinquedos,
usando molas e cordões no encaixe
ou os fazia mover-se dando corda;
e dominava da hidráulica os segredos,
para fazer com que levante e abaixe
um soldadinho ou a matrioschka gorda; (*)
e com frequência para o pope contribuía:
alguns ícones pintava, que esculpia
e a capelinha da aldeia em que eles vão
reformara, sem pedir um só tostão!...
(*) Mamãezinha = conjunto de bonecas russas, uma dentro das
outras; Popes são os padres da igreja Ortodoxa.
Naturalmente, o bom pope o apoiava
e quando necessário, o defendia,
mostrando a perfeição da iconostase! (*)
Com a família nas missas sempre estava
e aos domingos a oficina fecharia,
sem dar aos invejosos qualquer base.
De qualquer modo, ele gozava a proteção
dos boiardos e voiêvodos na nação
e desta forma, em sua vidinha prosseguia,
até sentir que lhe chegara o dia...
(*) Parede de madeira, cheia de imagens sagradas: retábulo.
E já deitado no seu leito de morte,
despediu-se o bom Piotr de seus filhos:
“Vassily, você fica com a oficina,
mas sempre cuidará da boa sorte
de seu irmão Kólya, em longos trilhos:
perdeu a mãe, não tem esposa, triste sina!”
“Sem dúvida, meu pai, eu o cuidarei.”
Falou sua esposa: “Eu o alimentarei.”
“Naturalmente, eu o porei a trabalhar
e minha família não se irá prejudicar...”
Falou então o moribundo marceneiro:
“Dmitry, a minha chácara será sua,
nada mais justo, pois está nela a trabalhar;
mas igual instrução dou-lhe ligeiro:
nunca deixe seu irmão morar na rua,
dê-lhe cama e quanto mais necessitar.”
“Naturalmente,” disse Dmitry ao pai,
“também na chácara contribuir meu irmão vai;
não terei de contratar qualquer peão:
sempre se esforça, sem qualquer reclamação...”
O CORCEL NEGRO IV
E disse Goluba, sua carinhosa esposa:
“Sempre lhe darei uma boa refeição;
junto a meus filhos se assentará à mesa.”
“Fico tranquilo com a promessa generosa;
chamem o pope para a última oração;
vou juntar-me à minha Marfa, com certeza...
Mas tenho ainda um último desejo,
que vou expressar-lhes sem o menor pejo:
vou sentir frio no rigor do nosso inverno,
ainda que parta ao paraíso eterno!...”
“Destarte, exijo de vocês promessa dura:
que durante estas próximas três noites,
um de vocês me acompanhe ao cemitério,
deitando assim sobre a minha sepultura;
e para poupar-me do vento e seus açoites,
levar-me-á a melhor vodka. Eu falo sério,
não pensem que eu estou a delirar:
do cumprimento da promessa vou cuidar;
também levem para mim um pão inteiro,
que irei comer como alimento derradeiro!”
Os dois mais velhos ficaram apavorados,
porém Kólya até achou muito normal
e de imediato obedecer-lhe prometeu.
Vássya e Mítya sentiram-se obrigados
ao compromisso com o pedido inatural.
“Será cumprido!” e assim o velho adormeceu.
Daí a pouco, acordou-se novamente
e perguntou, mais ou menos descontente:
“Não veio o pope para me abençoar?
Não estarei mais aqui, se demorar!...”
Chegou o ancião e celebrou o ritual;
foi Kólya ao cemitério e a cova abriu;
falou com a mãe, na sua sepultura:
“Mati, o Pai vem visitá-la, afinal...
Mas a senhora ao Paraíso já subiu.
bem certamente, com sua alma bela e pura...”
Feito o velório, ocorreu o sepultamento,
assistido, sem grande abatimento,
por toda a aldeia, apesar do frio:
voltou a família para seu lar vazio...
O CORCEL NEGRO V
Chegando a tarde, Vassily declarou:
“Tenho uma entrega de manhã, lá na oficina:
Preciso, irmão, que vá em meu lugar...”
“Posso ir,” o gentil Kólya concordou,
“mas esse frio até meu sangue afina;
quero levar bastante chá e um samovar...” (*)
Svetlana, de Vassily a esposa,
para o marido preservar da pavorosa
ventania, concordou rapidamente:
“Dou o samovar de D. Marfa, bem contente!”
(*) Conjunto de bule de chá e de chaleira, comum na Rússia.
E falou Kólya, com a melhor cara de idiota:
“E tem os lobos por aí, naturalmente...
Preciso de ter arma e munição...”
E Vassily, sem querer cumprir sua quota
da promessa que fizera, deu-lhe prontamente
o bacamarte do seu pai, por proteção,
que há muito tempo já não era disparado
nem funcionava, um polvorinho rachado
e um saquitel velho de chumbinhos
que recebera em pagamento de uns vizinhos...
Sentiu-se Kólya bastante satisfeito.
“Bem, agora vou dormir, levanto às seis,
que a noite toda vou passar bem acordado;
a um cobertor para o pai tenho direito
e uma garrafa de bom vodka me dareis,
mais pão inteiro para o pobre sepultado...”
Sentiram-se espantados os parentes,
com exigências de tal modo inteligentes,
mas o pedido do seu pai fora bem sério
e não queriam ir dormir no cemitério!...
De fato, Kólya às seis horas levantou-se,
sobraçando o cobertor e o bacamarte
e segurando o chá e o samovar,
mas recusou a água quente que lhe trouxe
a sua cunhada. “Prefiro, de minha parte,
colocar neve... Menos peso irei levar...”
Pegou a seguir a vodka e o pão
e lá seguiu, com seu bravo coração,
sem qualquer medo de encontrar fantasma
ou com o frio algum ataque ter de asma!...
O CORCEL NEGRO VI
Chegado ao cemitério, ele ajeitou-se
por sobre a tumba, de neve já coberta,
bem enrolado no quente edredon;
chá fez com neve e logo ali aquentou-se,
no bacamarte colocando carga esperta.
À meia-noite, ele escutou lúgubre som:
“Saia de cima que eu quero subir!”
Da sepultura desceu para assistir
a neve a se afastar, depois a terra
e o ataúde se abriu que o corpo encerra!
Ergueu-se o pai de sua sepultura:
“Está escuro!... Quem é que veio aqui?”
“Sou eu, Nikolay,” sem medo Kólya respondeu.
“Meu belo filho, dotado de alma pura,
trouxeste o vodka e o pão que te pedi?...”
“Estão aqui, meu pai!...” – Kólya acedeu.
O velho Piotr acomodou-se então,
bebeu o vodka e comeu inteiro o pão.
“Querido filho, pela tua obediência
te recompensarei, mas tem paciência...”
“Agora vem e me sepulta novamente
e volta a me cobrir, que sinto frio...”
Deitou-se imóvel dentro do caixão.
Kólya fechou-lhe a tampa e, bem paciente,
a terra reamontoou, com todo o brio,
repondo a neve e retomando a posição,
só se acordando no romper do Sol,
contra o horizonte brilhando qual farol;
seus apetrechos com calma ele juntou
e ao velho lar sem mais delonga retornou...
Vassily indagou se estava bem,
se alguma coisa durante a noite acontecera...
“Não vi nada de mais, querido irmão,
só os lobos a rondar, longe, porém...
Tentei atirar, mas a arma, quem me dera!
falhou o tiro, mas lati igual que um cão
e os lobos foram, bem depressa, embora.
Vou limpar meu bacamarte nesta hora,
depois dormir, passei noite desperto:
hora após hora, conservei-me de olho aberto!”
O CORCEL NEGRO VII
Vassily até pensara em retomar
O bule de chá velho e o bacamarte,
Mas Goluba com Svetlana conversou:
“Hoje é Dmitry quem vai dele precisar!
Quero que Kólya novamente assuma a parte!”
Portanto Vássya a má intenção mudou.
Realmente, quando o dia terminava,
Dmitry a seu irmão logo acordava:
“Tenho amanhã de trilhar todo o meu trigo;
passar a noite acordado eu não consigo!”
“Realmente, dormir à noite nesse frio
será difícil... Mas minha vez eu já cumpri,”
disse Kólya, a se fingir desentendido
e Dmitry precisou falar bem claro:
“Ora, que vá em meu lugar eu lhe pedi!”
“Ah, foi assim? Não havia compreendido,
mas muito frio passei por toda a noite,
caía a neve e o vento era um açoite;
não tenho botas, meus pés ficam gelados:
só nestes panos se acham enrolados!...”
“Que quer dizer?” “Bem, as botas me serviam
que nosso pai não vai mais precisar...”
“Está certo,” disse o irmão, já contrariado,
“mas ande logo, que as corujas logo piam.”
“Um sobretudo seria bom para enfrentar,
sei que o pai tinha um no armário, bem guardado.”
Ora, Dmitry até queria o sobretudo
e de raiva, por momentos, ficou mudo,
porém Kólya se recostou no travesseiro:
“Eu lhe darei meu cafetã!” – falou ligeiro!
Então Kólya prontamente levantou
e Goluba lhe deu vasta refeição;
de Svetlana antes tivera bom proveito...
O pão e a vodka então ele agarrou,
o bacamarte, o samovar e foi então
o seu dever para cumprir sem mais defeito.
E como antes, fez seu chá com neve;
dar um tiro para o alto então se atreve,
pois já havia consertado o bacamarte:
foram os lobos a uivar para outra parte...
O CORCEL NEGRO VIII
E novamente, quando o sino da capela
da meia-noite bateu doze pancadas:
“Saia de cima, que eu quero subir!...”
A mesma voz desde o solo se revela!...
Kólya afastou neve e terra já espalhadas
e do ataúde seu pai voltou a surgir:
“Meu filho, enxergo pouco neste escuro,
quem é você?” “Sou Kólya e não descuro
nossa promessa... A meu irmão substituí,
que está ocupado e não pôde vir aqui...”
“Ah, não pôde!? Meu filho, tu és fiel
e muito em breve recompensa te darei,
porém deves mais um pouco me esperar...
Trouxeste vodka e pão no teu farnel?
Estou com fome e a tudo comerei!...”
“Não esqueci, meu pai, pode pegar!...
E o falecido comeu bem e ainda bebeu,
depois de novo no caixão se recolheu.
Com terra e neve Kólya o recobriu
E então deitou-se e depressa já dormiu...
E quando o Sol se espraiava no horizonte,
seu apetrechos reuniu o bom rapaz
e para casa, bem depressa, retornou...
“Que aconteceu?” Indagaram-lhe em reponte.
“Nada demais. Um só disparo aos lobos faz
ficarem longe.... Só o frio me perturbou;
mas tenho fome. Apenas chá tomei...”
“Uma boa refeição então lhe servirei,”
falou Goluba. Comeu bem e então dormiu.
meio escondido no travesseiro, ele sorriu...
Os dois irmãos de tardezinha ali chegaram:
“Hoje é a sua vez de ir ao cemitério!...”
O gentil Kólya em nada protestou;
as duas cunhadas de novo o alimentaram
e lá se foi, carregando, muito sério,
esses presentes que aos poucos ajuntou.
Vássya e Mítya respiraram, aliviados,
às gargalhadas, da tarefa dispensados...
“Nós o faremos bastante trabalhar:
pelos presentes bem caro há de pagar!...”
O CORCEL NEGRO IX
E repetiu-se toda a cena, novamente:
o pai ergueu-se, comendo todo o pão
e mais a vodka, que de novo ele trouxera.
“Foste um bom filho, fiel e obediente,
pelo pai morto demonstrando compaixão:
terás agora a recompensa que te espera!”
Pôs a cantar, com uma voz de rouxinol,
bem antes que surgisse o arrebol:
“Hey, tvy, Sivka Burka, corcel belo,
Vyeshtchy Kaurka! Requeiro teu desvelo!”
Um cavalo aproximou-se, galopando,
com seus cascos fazendo o chão tremer,
empinou e fortemente relinchou.
“O que me queres?” em voz humana perguntando.
O gentil Kólya, sem espanto, a perceber
como seu pai por uma orelha se enfiou!...
Lá tomou banho e roupas finas colocou,
pela outra orelha logo se escapou:
“Querido Kólya, aqui tua herança vai!...”
E ao cavalo: “Serve ao filho como ao pai!...”
“Lembras da frase que arrecém cantei?”
“Sim,” disse Kólya,”tenho boa memória.”
“Se a repetires, Sivka Burka há de voltar;
no Paraíso, junto à tua mãe, eu te verei!...”
Montou o cavalo e, numa estranha glória,
Partiu depressa para não mais retornar...
Kólya ajeitou-se sobre a cova novamente,
a frase mágica a repetir-se, bem contente;
sabendo dela precisar a qualquer dia,
só acordando quando a aurora já surgia...
O dia todo deixaram-no dormir,
mas escondeu os seus presentes com cuidado;
de madrugada, chegou Vássya bem cedo:
“Acorda, Kólya, tens de me assistir,
na oficina o trabalho hoje é dobrado!...”
Ergueu-se o bom rapaz, sem qualquer medo,
acostumado que estava a trabalhar,
em troca apenas do seu alimentar...
No dia seguinte, foi Dmitry que o chamou
e sem protestos, no campo ele o ajudou.
O CORCEL NEGRO X
Ora, ocorreu que o bom Tzar Gorokh
e a Tzarina Morkovya apenas tinham
filha belíssima, a mimada Baktriana:
de nenhum pretendente queria o toque,
mas recusava a todos os que vinham:
“Eu não o amo!” a responder, com feroz gana.
“Só casarei com quem de fato merecer
e que consiga meu coração vencer:
um cavaleiro valente e generoso,
lindo de corpo, com coração garboso!”
Porém Gorokh já bastante se abalava:
Quem no meu trono haverá de se assentar
após minha morte? Pode haver guerra civil,
pois cada um que meu reino cobiçava
à viva-força irá tentá-lo conquistar:
grande perda de sangue e morte vil!...
“Não, minha filha, algum deves escolher,
jovem valente a quem possa pertencer
o rico trono desta nobre nação,
dos ancestrais a conservar a tradição!”
Gentil, Morkovya com sua filha insistia:
“Querida, já tens tantos pretendentes!
Os meus pastéis acabaram na despensa
e todo o vinho da adega se esvazia!...
Tens de escolher algum desses valentes:
esse é um dever que só tua mão compensa...”
Pois finalmente, Baktriana concordou:
“Eu casarei com quem se demonstrar
completamente digno de mim
e um grande feito presentear-me assim!”
“Façam, portanto, construir torre bem alta,
com trinta e três andares, bem fechada
e lá em cima ficará meu aposento;
meu cavaleiro deverá subir, sem falta
e me encontrar à beira da sacada,
para um anel me entregar nesse momento:
mas ninguém poderá subir minha escada,
por uma boa escolta bem guardada!...
De algum modo, deverá subir por fora
e só assim me conquistar, sem mais demora!”
O CORCEL NEGRO XI
Vendo-a firmada em sua bizarra decisão,
o Tzar fez a alta torre construir,
com vinte e três andares bem medidos
e tão logo completada a construção
mandou arautos pelo reino, a repetir,
por toda a parte, as condições pedidas:
Quem conseguisse chegar até a sacada
em que Baktriana achar-se debruçada,
certamente com a princesa casaria
e no futuro, ao belo trono ascenderia!
Chegou o dia para a prova demarcado,
Baktriana ataviada ricamente,
suas vestes refulgentes como estrelas!...
Uma fileira de pretendentes, lado a lado,
o Tzar e a Tzarina e sua potente
corte também, com indumentárias belas
e os dois irmãos, com os filhos e as esposas,
mais do que eles pela competição ansiosas,
embarcaram em seu grande carroção,
a capital a demandar em exaltação!...
Kólya falou: “Irmãos, também me levem!”
“Cala essa boca, tolo, e vai cuidar,
lá na chácara, dos porcos e galinhas!...”
Mas no seu coração emoções fervem:
a aldeia inteira se pusera a caminhar
para a cidade, mais as povoações vizinhas.
Tão logo Kólya se encontrou sozinho,
chegou ao centro de um trigal vizinho,
“Hey tvy!” – ele chamou, “Sivka Burka,
animal mágico, Vieshtchy Kaurka!...”
E logo ouviu a terra ribombar:
“O que me queres?” – indagou o cavalo.
“Quero assistir ao torneio!” “Faço bem melhor,
pois dele te levarei a participar!...
Vem subir à minha orelha, sem abalo!...”
Kólya aceitou, sem achar nada de maior
e segurou-se firmemente à crina,
encolhendo de repente, estranha sina!
E lá dentro, se encontrou num aposento,
revestido do maior encantamento!...
O CORCEL NEGRO XII
Por um duende foi agilmente recebido,
que lhe deu banho e ricas roupas lhe vestiu,
o tecido inteiramente em fios de prata...
E de um chicote de Samarkand assim munido, (*)
Sivka Burka, veloz, o conduziu
até a praça em que o torneio se desata.
Lá os pretendentes tentavam escalar
longas escadas, na ânsia de galgar!...
Mas era alto demais, alguns caíam,
enquanto outros do prélio desistiam!
(*) Famosa cidade da Ásia Central.
Sivka Burka um grande salto deu,
passando rente por sobre a multidão,
mais um impulso para um pulo triunfal!...
No vigésimo primeiro andar ele o perdeu
e depressa foi de volta para o chão
e com mais outro foi-se embora no final...
O Tzar do lindo trono levantou,
a Tzarina exclamações soltou,
nobres e popes gritando de surpresa:
maravilhou-se todo o povo, com certeza!
Quando a família voltou para sua aldeia,
exaltados, proclamavam o campeão,
vestido em prata! “Só faltaram dois andares!”
“Maninhos, era eu nessa peleia...”
“Cala essa boca, seu grande paspalhão,
só no trabalho pesado tens lugares!...”
Calou-se Kólya, sem dizer mais nada,
e retornou à sua vidinha acostumada...
Mas os arautos, daí a duas semanas,
de outro torneio fizeram os proclamas!
E novamente, todos foram contemplar,
deixando Kólya, de novo, para trás...
“Me levem com vocês!” – pediu de novo.
“Ficou serragem na oficina, vai limpar!”
Ficou bem quieto, mas não se satisfaz;
só esperou que partisse todo o povo
e foi cantar: “Hey, tvy, Sivka Burka,
meu corcel mágico, Vyeshtchy Kaurka!...”
E logo veio o cavalo novamente
e na sua orelha já penetrou contente!
O CORCEL NEGRO XIII
Dele saiu a vestir negro veludo,
com alamares de bronze, mais colar
e o palafrém pulou rio e valado,
chegou na praça em que já falhara tudo;
com catapultas alguns tentaram se lançar,
porem seus ossos haviam espatifado!
Outros usaram presilhas e correntes,
cravos e ganchos, mas nenhum dos pretendentes
pôde subir mais que dez ou doze andares,
o povo a divertir-se em seus lugares...
Sivka Burka mais uma vez saltou,
chegando até o vigésimo segundo
e mesmo um lenço a princesa lhe jogou...
Mas o cavalo para o chão voltou,
dando um berro o Tzar, já rubicundo, (*)
e a Tzarina, com emoção, também gritou,
entre os aplausos, ohs! e ahs! da multidão;
mas foi-se embora o negro garanhão...
“Minha filha, conseguiu o cavaleiro?”
“Não, meu pai, mas é o meu noivo verdadeiro!”
(*) De rosto vermelho.
Logo a família à aldeia retornou,
o cavaleiro a louvar, quase extasiados
e disse Kólya: “Esse era eu, maninhos!...”
Naturalmente, ninguém o acreditou:
“Eta, palhaço, leva ao campo teus cuidados!
Belo espantalho para os passarinhos!...”
E novamente, o bom Kólya se calou
e em seu trabalho firme se aplicou,
bem escondido o lenço da princesa,
para ninguém revelando sua nobreza!
Terceira vez os arautos proclamaram
novo torneio que seria realizado
e novamente o deixaram para trás:
“Cuida os suínos, que hoje emporcalharam
toda a pocilga, até o pomar contaminado,
que teu trabalho enobrece e satisfaz!”
E assim Kólya, pela terceira vez
o seu cavalo convocou no mesmo mês:
“Hey, tvy! Vem a mim, Sivka Burka,
garanhão belo, Vyeshtchy Kaurka!...”
O CORCEL NEGRO XIV
E dessa vez, todo vestido de dourado,
capacete e armadura reluzentes,
Sivka Burka a dar seus saltos prodigiosos,
o vigésimo terceiro andar logo alcançado!
Anel ganhara do duende, em precedentes
momentos, para a vitória valorosos...
Trocou os anéis com sua bela princesa,
que lhe aplicou uma estrela, de surpresa,
em sua testa grudada por magia...
Porém da torre o cavalo já descia!...
“Papai, o cavaleiro conseguiu!...”
Mas os soldados detê-lo não puderam
e depois Kólya enrolou pano na testa...
Quando a família novamente o viu
e o motivo disso lhe indagaram,
ele disse: “Irmãos, eu venci naquela festa!”
Mais uma vez, todos eles gargalharam:
“Só bateste com a cabeça!” – eles zombaram.
“Vai dormir, para amanhã levantar cedo,
para o serviço enfrentares, sem ter medo!...”
Mas o Tzar mandou a todo o povo examinar,
para encontrar quem sua filha havia marcado
e lá na chácara encontrou o camponês,
o tal pano de sua testa a desatar,
deixando todo o povo admirado:
brilhante estrela a reluzir-lhe sobre a tês!
E foi levado à presença da princesa
que o identificou, apesar de sua pobreza:
“Meu pai, este é meu nobre cavaleiro:
quero casar-me com ele, bem ligeiro!...”
E apesar de todo o espanto, após vestido,
usando jóias e com rica indumentária,
alta estatura, rico porte, bem garboso,
reconhecerem ter o prêmio merecido
e logo a boda celebrou-se, extraordinária,
muito feliz Baktriana com o esposo!...
Vassily e Dmitry também se apresentaram
e com lisonjas bonitas encantaram;
o Tzar deu-lhes cargos, com certeza,
muito lucrando com a fraternal proeza!...
O CORCEL NEGRO XV
Mas a ninguém contou Kólya seu segredo,
salvo à princesa que dormia nos seus braços...
só que os irmãos ficaram envaidecidos
e se acharam muito espertos nesse albedo,
desprezando até os boiardos nesses laços,
como altos funcionários escolhidos!...
E alguns voiêvodos se aproximaram do Tzar:
“Majestade, têm vergonha de falar,
mas esses teus dois novos cavalheiros
vem-se gabando, na presença de terceiros...”
“Eles afirmam saber da mágica macieira,
com folhas de prata e cem frutos de ouro,
seu paradeiro e até a querem vos trazer...”
Chamou o Tzar a dupla que, ligeira,
negou saber onde se achava tal tesouro...
Porém tiveram de ao Tzar obedecer,
quando ele achou que só estavam disfarçando;
então, dois cavalos e ouro já ganhando,
foram partir, a linda árvore a buscar,
sem ter ideia de que forma a encontrar...
Porém Kólya esperou uma semana
e foi ao campo, dizendo que ia caçar,
Sivka Burka de novo convocando;
o que queria bem depressa ele proclama,
na sua orelha de novo a penetrar,
em feroz guerreiro assim se transformando.
E o seu corcel, em uma noite e um dia,
até a árvore desejada o conduzia;
com sua espada pelas raízes a arrancou;
em voo rápido, para o castelo a transportou...
Porém armaram uma tenda no caminho,
na espera dos irmãos a retornar,
naturalmente, a voltar de mãos vazias...
Sem conhecer no guerreiro o irmãozinho,
os dois tentaram a sua árvore roubar...
Depois dinheiro e joias de valias...
Sem conseguirem, tentaram-no matar!...
Facilmente pôde Kólya os derrubar:
“Seus cadáveres deveria pôr no lixo,
mas as macieira lhes darei – por um capricho!”
O CORCEL NEGRO XVI
“Coisa bem simples... Cada um me dê um polegar
do pé direito, em troca do presente:
será o único pagamento que hoje aceito!”
E os dois irmãos acabaram por lhe dar
os polegares do pé, cortados rente,
pensando ter dessa árvore o direito!...
“Mas suas famílias sei que abandonaram,
todo o trabalho para seus filhos deixaram,
a vida da Corte a desfrutar com impiedade:
quero que jurem retornar, sem falsidade!...”
Jamais queriam para casa retornar
e reassumir sua chácara e oficina!...
Que os conhecesse ficaram muito surpreendidos,
mas bem depressa dispuseram-se a jurar...
Levando a árvore, a dupla se destina
à capital, fingindo-se aguerridos...
O Tzar recompensou-os grandemente,
com os dois espertalhões muito contente
e com Morkovya chegou mesmo a comentar:
“Com um destes Baktriana devia casar!...”
Naturalmente, não cumpriram a promessa,
sem dar a mínima para os filhos ou esposas,
porém da Corte granjeando as honrarias:
“Arrancamos essa árvore depressa
e um polegar as suas raízes poderosas,
de cada pé, nos arrancaram com suas guias!...”
E no palácio ainda aumentaram a soberbia,
tratando o irmão com um desrespeito que se via
e cortejando-lhe a mulher abertamente,
seus casamentos a esquecer completamente!
Kólya e a princesa somente se entreolhavam,
mas muito em breve se reuniram cortesãos
e nos ouvidos do Imperador foram dizer:
“Teus novos nobres ainda ontem se gabavam
de ir ao Cáucaso, com garbosos corações,
para Katinka, a javalina, te trazer,
com cerdas de ouro, de prata seus colmilhos
e vinte e cinco leitões que são seus filhos,
que ao invés de fezes, derramam pedra fina,
esmeraldas, rubis, anéis brilhantes de platina!”
O CORCEL NEGRO XVII
Vássya e Mítya prontamente lhe negaram
ter afirmado qualquer coisa assim,
mas riu Gorokh, benevolamente...
“Já da outra vez sua humildade me afirmaram,
mas sei bem que a missão podem, outrossim
realizar, portanto montem prontamente...”
E lá se foram os dois irmãos, em desconsolo:
Ir até o Cáucaso por causa de algum dolo!
Estavam já arrependidos, na verdade,
de se deixarem levar por sua vaidade!...
Kólya e a princesa aguardaram alguns dias
e então o príncipe saiu para caçar:
deixou o cavalo bem no meio de pastagem,
após ter percorrido as mesmas vias,
para longe da cidade se afastar;
e então falou, com voz cheia de coragem:
“Olá tu, hey tvy, Sivka Burka,
palafrém mágico, Vyeshtchy Kaurka,
vem depressa atender a meu chamado,
cavalo amigo, que estás sempre do meu lado!”
E logo um terremoto fez-se ouvir
e até no céu as nuvens balançaram!...
Sivka Burka empinou e relinchou:
“Que me queres?” – falou, após nitrir,
“Os meus irmãos para o Cáucaso marcharam;
leve-me até lá, igual que antes me levou,
quero caçar Katinka, a javalina,
com cerdas de ouro e filhotes de platina...
Poderás conseguir-me uma gaiola...?”
“Claro que posso, mas que pergunta tola!”
“Também vou precisar de uma carroça.”
“Bem facilmente os posso transportar.”
“Mas é que quero me cobrar de meus irmãos...”
“Os maus irmãos que de ti só fazem troça
e os juramentos não souberam respeitar?
Fico feliz em castigar maus corações!...”
Nikolay logo a seguir subiu ligeiro
e transformou-se no feroz guerreiro!...
“Temos que ir até Quatro Passa Três,”
disse o cavalo. E num salto assim se fez!
O CORCEL NEGRO XVIII
E bem depressa a floresta já alcançaram,
em que Katinka, com suas cerdas de ouro,
arrancava raízes com os colmilhos
de dura prata. Seus leitões rodeavam,
tal alimento disputando qual tesouro,
enquanto a porca grunhia para os filhos!
Prendeu-a Kólya com um laço de seda
e uma gaiola de ferro que não ceda...
Sivka Burka a fez materializar,
os vinte e cinco leitões logo a apanhar...
“Mas, e a carroça?” “Não precisas por agora.”
Logo a gaiola pelo ar levou,
até da capital as cercanias...
Saiu o duende da orelha e, nessa hora,
uma carroça com cavalos encantou,
dando alimento aos bichos que ali vias...
Depois, com Kólya, uma tenda confortável,
ergueram rica e de aspecto notável,
Kólya lá dentro esperando, a fazer troça,
cuidando bem a sua gaiola e a carroça!...
Os dois irmãos fugir haviam decidido,
jamais chegando até Quatro Passa Três,
com um vergar de ombros, cabisbaixos...
Bem de longe a tenda haviam percebido
e em lá chegando, seu espírito se refez,
depressa a cogitar seus golpes baixos.
Os cavalos bem rápido a atrelar
à carroça, na esperança de a roubar,
mas lá da tenda surgiu o feroz guerreiro,
na cabeça a trazer elmo alvissareiro!...
“Ah, seus patifes, o que estão fazendo?”
Vássya e Mítya tentaram-no enfrentar,
mas num instante foram derrotados...
Já no chão, outra atitude concedendo:
“Uma carroça de prata vamos dar,
em troca dos animais aqui encontrados!...”
“Acontece que eu conheço vocês dois,
pois só prometem, mas sem cumprir depois;
eu exigi que retornassem para a aldeia,
em que a miséria sua família já rodeia!...”
O CORCEL NEGRO XIX
“Mas desta vez cumpriremos, meu senhor,
após levarmos ao Tzar a javalina...
Diga o seu preço e nós lhe pagaremos...”
“A vara é minha e tem muito valor, (*)
não se vende e não se dá, mas se os fascina,
por um simples capricho a trocaremos...
Neste momento, vocês dois me darão
o dedo mínimo de sua direita mão;
as suas feridas eu cauterizarei,
já que a morte de vocês não desejei...”
(*) Coletivo de porcos.
E estando assim sem outra alternativa,
a não ser de toda a empresa desistir,
concordaram com sua mutilação...
“Ide dizer ao Tzar, de minha oitiva,
que em Quatro Passo Três fui descobrir
a javalina e a cacei nessa ocasião!
Mas não lhe mintam de novo que a apanharam;
digam que acessos de saudades lhes chegaram,
que têm família e já de grande porte,
razão por que irão deixar a Corte!...”
Os dois juraram, sem mais hesitar...
Kólya cortou de cada mão o seu mindinho
e os curou com ferro em brasa e com unguento.
Logo a carroça ambos puseram a marchar,
da capital a trilhar longo caminho,
suas costas perfurando um olhar atento...
Mas é claro que, assim que se safaram,
o juramento bem depressa descuraram
e foram ao Tzar se apresentar
como os autores de tal prova sem par!...
Assim o Tzar os apreciou ainda mais,
conselheiros os nomeou, um alto cargo,
e seu orgulhou tornou-se ainda maior!
Disse o Tzar à Tzarina: “Se jamais
os conhecesse antes,” seu sorriso amargo,
“seria um deles o meu genro, sem favor!
Esse Kólya passa o dia com a princesa,
nunca se envolve nos feitos de nobreza
e até mesmo quando diz que vai caçar,
à Corte volta sem sequer lebre apanhar!”
O CORCEL NEGRO XX
Contudo, Kólya limitava-se a sorrir,
com Baktriana sempre do seu lado,
enquanto o par ainda mais se envaidecia,
os empregados a maltratar no ir e vir,
a Corte inteira já odiando o par airado;
e suas famílias nunca um deles via...
Mas não tardou que trouxessem ao Tzar
um novo engano para os dois prejudicar:
“Esses teus conselheiros que aqui estão,
afirmaram ir até o Cazaquistão!...”
“Pois lá se encontra, numa imensa estrebaria,
um cavalo com patas de diamante
e crina e cauda do mais puro ouro,
que da Serpente Gorvinitch ele seria,
mas a qual derrotarão num só instante,
para trazer-lhe mais este tesouro!...”
Chamou o Tzar seus dois mais novos conselheiros,
que se afirmaram caluniados por terceiros,
mas à missão o Imperador os enviou,
que em suas desculpas não acreditou!...
E no caminho só se iam lamentando:
“Melhor fugir para um país distante!
Alforjes temos transbordando de dinheiro!”
Enquanto isso, alguns dias esperando,
de novo Kólya foi caçar adiante,
levando apenas seu cavalo parelheiro,
o qual deixou a pastar na pradaria
e então cantou, igual que cotovia:
“Olá querido! Hey, tvy, Sivka Burka,
amigo mágico, Vyeshtchy Kaurka!...”
E prontamente a planície estremeceu
e até os rios correram ao contrário!
Sivka Burka empinou e relinchou:
“Que me queres?” Logo Kólya respondeu:
“De Gorvinitch sabes o itinerário?”
“Por certo eu sei, mas a loucura te assaltou?
Essa serpente tem a baba venenosa
e o sangue queima, com uma fúria temerosa!”
“Não é a serpente que eu quero, é o tal cavalo,
com cascos fortes de diamante a rasgar valo!”
O CORCEL NEGRO XXI
“Então a mim pretende desprezar...?”
Protestou Sivka Burka, despeitado.
“Claro que não! Essa é a tarefa nova
que a meus irmãos determinou nosso Tzar,
ele é que quer o tal cavalo airado...”
“Então, o ajudarei nessa outra prova.
Eu lhe darei armadura impenetrável
e uma espada de poder incontrolável...
Vamos, portanto, partir para mais uma,
lá do Outro Lado de Parte Nenhuma!...”
E com uns poucos saltos lá chegaram,
do “Outro Lado de Parte Nenhuma”,
bem muito além do tal Cazaquistão!
E logo os dois a estrebaria divisaram,
muito mais bela que qualquer castelo assuma,
feito um palácio real, sem negação!...
E revestido da invulnerável armadura
e dessa espada forjada em liga pura,
a Serpente Gorvinitch ele enfrentou:
levou três dias, mas enfim a degolou!...
E mais três dias as portas a arrombar
daquela estranha e singular estrebaria,
os cavalos a relinchar, sem alimento;
e só depois do empreendimento os libertar,
tomou Kólya o mais garboso que ali via,
crinas de ouro para seu encantamento,
tendo, de fato, cascos de diamante,
que ele albardou para seguir adiante,
até amarrá-lo pela rédea a seu cavalo,
sem que intenção sequer tivesse de montá-lo...
E destarte, aliviado no seu brio,
Sivka Burka saiu em saltos pelos ares,
o outro animal a puxar, bem facilmente.
Mas ao sentir da atmosfera o frio,
pôs-se o cavalo a relinchar os seus pesares,
Sivka Burka a troçar dele, contente...
E logo no seu reino eles chegaram,
mais uma vez nas cercanias acamparam,
Sivka Burka como antes ocultado,
o adamantino cavalo bem mostrado!...
O CORCEL NEGRO XXII
E lá chegaram os dois irmãos, desanimados,
sem ter fugido, cheios de indecisão,
e viram logo um archote já à distância;
indo com fome para lá esperançados:
“Será o guerreiro, mais uma ocasião?”
“Mas que dirá, após nossa inconstância?”
“Ora, alguma desculpa lhe daremos;
mais uma vez, decerto, a encontraremos...
Não mentimos que Katinka é que arrancou
esse dedinho que de nossa mão faltou...?”
Mas era a cauda, que brilhava como fogo!
E desta vez, ambos temiam o guerreiro,
batendo palmas, para logo regatear,
pois em armadura resplendente saiu logo
o herói de elmo que conheciam de primeiro
e seu cavalo buscaram então comprar...
“Mais uma vez quebrantaram a juramento,
como esperam que os ajude a seu contento?”
Promessas mil lhe fizeram desta vez...
“Está bem, vale o terceiro pelos três!...”
“Mas meu cavalo não se vende e não se dá:
matei por ele Gorvinitch, a má serpente,
lá do Outro Lado de Parte Nenhuma...
Por um capricho, no entanto, se fará:
corto uma orelha e lhes arranco um dente:
com sua falta cada um depressa se acostuma...”
E os pusilânimes bem depressa concordaram;
cortar-lhes Kólya uma orelha eles deixaram
e arrancou dos dois irmãos um incisivo,
dente da frente, sem anestesia, ao vivo!...
Assim munidos do cavalo adamantino,
cujas caudas e crinas rebrilhavam,
de sua promessa novamente se esqueceram,
por mais que Kólya insistisse no destino
dessas famílias que os dois abandonavam,
mas na vaidade e no orgulho se envolveram!
E na cidade eles contaram tais mentiras
que a Corte inteira dilatou suas iras,
sem poder nada fazer, porque o Tzar
determinara que iriam agora descansar!...
O CORCEL NEGRO XXIII
“Majestade, estivemos do Outro Lado
de Parte Nenhuma e lutamos com a serpente,
que arrancou de nós ambos uma orelha!
E mais teríamos por ali deixado,
pelo prazer de servi-lo! Perdemos dente,
mas para nós já é isto coisa velha,
porque daríamos o nosso corpo inteiro,
pois sua vontade para nós chega primeiro
e a seu serviço morreríamos com prazer,
nada fizemos, senão cumprir nosso dever!...”
O Imperador com muitas jóias os presenteou,
sacos de ouro, grandes propriedades,
assim movido por alegria tremenda!...
E um enorme banquete então montou,
esvaziando suas adegas, sem vaidades,
e sua despensa também, nessa prebenda...
Mas Baktriana a sós se apresentou.
“Onde está seu marido?” – ele indagou,
“Meu pai, hoje ele está meio cansado,
mas ora por mim ele está representado...”
O Imperador então se aborreceu:
“Está cansado, esse meu genro inútil?
Mas por que, se não faz mais nada que comer?
Por que a um destes dois não escolheu?
Só se casou por um motivo fútil!...
Pois eu exijo vê-lo aqui comparecer!...”
Nesse momento, abriu-se a porta do salão
e Kólya então surgiu, na ostentação
do trajo de ouro que havia utilizado
na ocasião que tinha a esposa conquistado!
Porém usava agora o elmo forte
e seus irmãos, quando o viram, se engasgaram;
então o Tzar convidou-o a se assentar,
mas o seu genro afirmou não ser boa sorte
tomar assento onde escravos se assentaram,
os dois irmãos com um nobre gesto a indicar.
“Mas como assim? São meus bravos cavaleiros!”
O antigo lenço desatou, em gestos ligeiros,
depositando os pedaços que cortara
perante a mesa em que a dupla se assentara!
O CORCEL NEGRO XXIV
“Não, meu Tzar, pude esses dois escravizar,
que não passam de relapsos e covardes!...
Fui eu que conquistei seus três presentes,
ao pretender que só saía a caçar!...
Fazei os dois prender agora e os guardes,
pois são com suas mentiras complacentes
e pelo menos quatro juras quebrantaram:
primeiro a nosso pai, que abandonaram,
depois a mim, ao buscarem-me comprar
as grandes prendas, se deixando mutilar!...”
Não precisou de mais. Os cortesãos,
que a Mítya e a Vássya sempre desprezaram,
como guardas os cercaram prontamente.
“Nenhuma vez completaram suas missões
e pela árvore em Três Menos Seis trocaram
um pedaço dos pés, bem facilmente...
Dedos das mãos me entregaram como preço
da javalina por que tendes tanto apreço...
Deram orelhas e cada um me deu um dente
pelos cascos do cavalo da Serpente!...
Ficou o rei extremamente irado:
queria à morte os mentirosos condenar,
porém Kólya falou: “São meus irmãos,
basta que seja cada um deles rebaixado,
para os porcos e galinhas irem cuidar,
tal qual merecem os seus baixos corações!”
E assim foi Kólya proclamado como herdeiro
e do banquete o espaço derradeiro
foi dedicado só a ele e à sua princesa,
que mereciam, de fato, essa nobreza!...
Eventualmente, o Tzar velho morreu
e foi Kólya no seu trono coroado,
muitos filhos a gerar com Baktriana...
Nem na velhice a sua beleza feneceu,
de seu Kólya permanecendo sempre ao lado,
num reino extenso em que a justiça irmana;
enquanto isso, como antes já fazia,
porque dos seus jamais ele esquecia,
mandava Kólya dinheiro a seus sobrinhos,
e às suas cunhadas, a lembrar dos seus carinhos...
EPÍLOGO:
Logo depois de ter sido coroado,
Mandou Kólya chamar seus dois irmãos,
imundos, magros, a tiritar de medo...
“Vosso castigo já vos foi bem aplicado?”
Eles gemeram, a palpitar seus corações:
“Sim, Majestade, foi pesado esse degredo...”
“Permito, então, que volteis à velha aldeia,
vossa família está bem, não se arreceia
de receber de volta vocês dois:
sejam humildes ou o castigo vem depois!”
Mas Katinka se tornou porca comum
e trouxe ao mundo outras dúzias de filhotes;
gastou o cavalo seus cascos de diamante
e a macieira não deu mais fruto nenhum,
pois sendo mágicos, perderam os seus dotes
e normais se tornaram doravante...
Sempre que Kólya o chamou, se apresentou
Sivka Burka, enquanto ele o precisou,
mas ninguém sabe onde fica o tal terreiro
onde até hoje ele tem seu paradeiro...