A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS
(História contada em prosa por Alexandre Dumas Père, atribuída por este ao poeta
Gérard de Nerval, versão poética William Lagos, 26 ago 15)
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS I
No extremo leste do reino da Hungria
havia há séculos uma pequena aldeia,
tão pequena que nem sequer está nos mapas,
durante o reino de Maria Thereza,
imperatriz da Áustria, a qual pertencia
a coroa da Hungria, por direito hereditário;
Ali Madalena, uma viúva, residia:
vivia de frutas, hortaliças, mingaus, sopas,
sentando-se com ela, junto à mesa,
seu filho Janos, plantador de aveia,
em viver simples, bem humilde e ordinário...
Janos, na época em que transcorre a história,
vinte anos já fizera, moço forte e vigoroso,
cabelos louros crespos, franco e azul o olhar,
que trabalhava então de sol a sol,
podando as árvores, sem qualquer vanglória,
plantando a horta e canteiros de flores,
trigo e centeio, sem buscar vitória
entre as donzelas lindas do lugar,
algumas vezes pescando com anzol,
em um regato claro e vagaroso,
trutas e carpas de variadas cores...
Quase nunca ele da chácara saía,
pois Madalena é que vendia na feira
as frutas e legumes que sobravam;
um ao outro extremamente dedicados.
Só aos domingos ele à missa a conduzia,
na pequena capela de sua aldeia;
após a missa, nas tardes, porém ia
escutar os musicistas que tocavam
as melodias do povo, em tons bem afinados
e então dançava ante a música ligeira,
com as donzelas, a quem o ritmo incendeia.
Madalena com as amigas se assentava,
algum ciúme sentindo de seu filho,
mulher alguma a achar merecedora
desse formoso rapaz que ela gerara...
Mas Janos a nenhuma namorava
e retornava com sua mãe, de tardezinha;
segunda-feira, bem cedo, levantava...
Madalena era também trabalhadora,
porém Janos há muito tempo a acostumara
aos trabalhos mais leves: moía o milho,
o trigo e a aveia e cuidava da cozinha...
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS II
De fato, até mais a pouparia,
se na granja o tempo todo não gastasse;
contudo a casa era pequena; ela lavava,
bem pouca roupa sujando os dois assim,
mas no trabalho o ajudar não permitia:
“Mamãe, a senhora me criou
com o máximo esforço que podia;
Papai da guerra nunca retornava,
firme lutando ao toque do clarim,
sem sabermos se morrera ou se encontrasse
prisioneiro após batalha que travou!”
A essa altura, é quase certo que morrera,
pois os turcos aos prisioneiros não poupavam
e há mais de quinze anos fora embora...
Se Madalena o seguia até o pomar,
ela sentava numa esteira que tecera,
as prédicas a ler no seu missal;
cantava Janos as melodias que aprendera,
louvando a pátria ou a rainha nessa hora;
era patriota, sem querer ser militar,
pois era arrimo e assim o dispensavam, (*)
pois o trabalho na terra era vital!...
(*) Responsável pelo sustento da família.
Mas certo dia, já Janos não cantava
e seguia trabalhando sem vontade...
Pior ainda, quando havia lua cheia,
ficava horas na rua, sem entrar...
Madalena com ele então se preocupava,
mas continuava no labor, forte e robusto:
sua saúde ainda plena conservava,
só não falava no almoço e nem na ceia
e era inútil para a mãe o interrogar,
pois respondia, a pretender sinceridade
que nenhum mal lhe causava qualquer custo.
Mas tanto a mãe com Janos insistiu,
que, certa noite, afinal, lhe confessou:
“O meu problema é que estou apaixonado...”
“E essa moça maldosa o rejeitou...?”
“Não, Mamãe, não fez troça e nem se riu,
mesmo assim, o meu amor é impossível!”
“Por que, meu filho, quem é?” – a mãe pediu.
“Se for a filha do juiz ou delegado,
irei pedir sua mão!... Diga, e já vou!...”
“Não é Bertha e nem Hildiko,” Janos suspirou,
“mas não lhe conto, porque vai achar incrível!...”
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS III
“Nós somos camponeses, porém trabalhadores
e ambos gozamos de boa reputação...
Mas não me diga!... Será a filha do barão?”
“Mais do que isso, minha mãe querida!...”
“Meu Deus do céu! De qual dos grão-senhores?”
“Não é condessa, Mamãe, e nem marquesa...”
“Meu filho, de onde tirou esses pendores?
Só por retrato apaixonou seu coração...?”
“Eu já a encontrei, Mamãe, na minha vida...”
“Quem então lhe causou tanta emoção?
Uma duquesa, quem sabe uma princesa...?”
“Se eu lhe disser, não vai me acreditar
e é capaz de pensar que fiquei louco;
é por isso que não queria lhe dizer,
mas ela é a filha do Rei das Toupeiras!”
“Meu filho, você está a blasfemar!
Como pode ter amor por um animal?
Vamos à cidade, podemos consultar
a um bom médico, que dirá o que fazer!”
“Não lhe contei essas coisas por inteiras:
ela é humana, Mamãe!” – com a voz rouca,
Janos falou de sua visão fatal...
“Veja bem, certa manhã, de madrugada,
eu levantei e fui logo trabalhar
e vi os canteiros de flor esburacados!
Por sorte, as flores não haviam murchado
e as replantei, com a mão e com a enxada,
mas de repente, abriu-se outro buraco
e ali surgiu uma cabeça desgrenhada
e logo vi quem me causara tal cuidado!
Ergui a enxada e ia matar o bicho malvado,
Mas percebendo o meu aproximar,
interpelou-me com um lamento fraco...”
“Senhor Janos, não me mate, por sua fé!
Esses buracos eu não fiz por mal,
foi ignorância, sou ainda muito nova!...
Caso hoje aceite me poupar a vida,
eu lhe garanto que jamais porá o pé
qualquer toupeira em sua propriedade!”
Nunca soubera que animal falasse; e até
ela podia esconder-se na sua cova,
mas ao contrário, se dava por vencida
e suplicava tristemente o animal!...
‘Vá em paz!’ – eu lhe disse, sem maldade...”
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS IV
“’Muito obrigada,” agradeceu ela, gentilmente.
“Se por acaso quiser me ver de novo,
volte amanhã, tão logo saia a lua,
que irei contar-lhe um segredo, se vier...
Não abrirei mais buracos, certamente!...’
Logo a seguir, enfiou-se pela terra...
Se mais ficasse, me deixaria contente,
mas desaponto na mente me flutua,
sem que o convite eu pudesse agradecer
pois já a terra se fechara, num renovo,
sem um vestígio de que algo ali se encerra...”
“Por certo um tal estranho sucedido
eu pensei de imediato em lhe contar,
mas resolvi esperar até o outro dia,
poderia imaginar que eu só sonhara,
tão singular o que me havia ocorrido!
E decidi esperar o dia seguinte:
pois se, de fato, não tivesse acontecido?
Cada canteiro de flor ileso eu via!...
Sem dúvida, as touceiras replantara,
mas não havia uma só marca para olhar!
Será que alucinara, com requinte?...”
“No dia seguinte, bem na hora marcada,
sem dizer nada, saí para o jardim
e pus os olhos na fímbria do horizonte,
bem onde a Lua deveria então surgir.
Logo o luar, em pura luz prateada,
me envolveu, porém nada de toupeira!
Por que essa emoção descontrolada,
tal desaponto sem qualquer reponte,
porque esse bicho não chegara a vir?
Dei uma risada e já voltava, enfim,
para o descanso em nossa casa hospitaleira...”
“E então, no meio do canteiro do rosal,
vi surgir uma visão de formosura:
uma donzela de negros cabelos,
olhos castanhos, cheios de meiguice,
túnica branca, de caimento natural,
com um cinto tecido em fios de ouro
e um diadema sobre a fronte virginal...
Mulher alguma me mostrara tais desvelos!
Fiquei assim perdido em sua ledice...
Seria um encanto essa visão tão pura?
E embatuquei, em tímido desdouro...”
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS V
“Meu controle retomei e recobrei a fala:
‘Quem é você? Como entrou em meu jardim?’
‘Subi agora, estava embaixo de sua terra,’
Respondeu-me a jovem, com sorriso belo...’
‘Embaixo da terra?’ – minha dúvida não cala...
‘Meu bom amigo, eu sou a tal toupeira
que em sua bondade, decidiu poupá-la...
Foi caridoso e meu coração encerra
uma grande gratidão por seu desvelo...
Bem pouca gente se portaria assim:
prometi retornar e aqui estou, inteira...’”
“’Contar-lhe hoje um segredo prometi...’
‘Pois então conte...’ – respondi, baixinho.
‘Chamo-me Avenca e sou a filha e herdeira
de Alvinrude, das toupeiras grande rei,
que tinha forma humana, qual eu vi
nessas pinturas penduradas no salão...
Querela teve com o bruxo Belakry, (*)
magia negra a controlar inteira,
que feitiço lançou ao rei e à grei...
Do subsolo ao palácio abriu caminho
E a todos transmutou, nessa ocasião!’”
(*) Querela = disputa; grei = povo, súditos.
“’De todo o povo, só eu posso aparecer
em forma humana, porque nasci depois
e à superfície, quando a Lua é Cheia,
posso subir, mas só por poucas horas;
meu pai e mãe e a corte sem poder
recobrarem jamais a forma humana...
Pedir-lhe então para sempre vir-me ver,
ao se atenuar de tal encanto a teia,
não seria justo!... Vou partir sem mais demoras,
se tempo longo ficarmos junto os dois,
tão só a infelicidade nos irmana...’”
“’Adeus, Janos!’ – disse ela e se afundou
no solo aberto, sem pressa, lentamente
mas no momento em que fui abraçá-la,
meus braços se fecharam sobre o ar!
Desde essa noite não mais ela retornou,
por isso passo as noites no jardim...”
“Meu filho, por que nada me contou?...”
“Porque esta história certamente a abala:
por uma toupeira eu fui me apaixonar!...”
“Meu Janos, é um sacrilégio, realmente:
foi feiticeira que o encantou assim!...”
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS VI
“Não, Mamãe, ela é humana e encantada!”
“Mas como pode desejar uma mulher
que será um animal quatro semanas
e humana apenas parte de uma noite...?
Não, meu filho, por Satanás foi enviada
para roubar o seu honesto coração!...”
“Se fosse assim, ela estaria condenada
a me tentar, tais quais jovens humanas
e submeter-me de sua beleza ao açoite!
Se não voltou, é que tal mal não quer...”
“Meu filho, não foi sonho ou ilusão...?”
“Que nada, Mamãe! Mulheres vi em sonhos,
porém jamais de uma beleza semelhante!
Decerto é a filha do Rei das Toupeiras,
tolhida por um mau encantamento...
Não imaginaria nos devaneios mais bisonhos!
Apaixonei-me, mas por mulher real!...”
“Por causa dela seus dias são tristonhos!
Ela lhe disse, com frases bem certeiras
que não retornaria um só momento!...
Esqueça, meu filho, um tal sonho delirante,
que tal paixão só lhe pode ser fatal!...”
Janos sorriu, porém não concordava:
“Quem pode governar seu coração?”
Mas após confidenciar o seu segredo,
passou a trabalhar mais aliviado...
A Lua Cheia sempre ele esperava:
foram três meses mais em que não via
a prodigiosa donzela que adorava,
sentindo até mesmo um certo medo
de ser por ela eternamente ignorado...
não obstante, pela força da paixão,
lá estava ele, mensalmente, de vigia...
Madalena muitas vezes suplicou
a seu filho que retornasse para o lar
e finalmente, como não o dissuadisse,
disse-lhe: “Também fora então eu ficarei...”
com o que Janos facilmente concordou:
“Mas se assente ali na sua esteira...”
Ele ficou de pé e em silêncio rezou
para que ao menos outra vez a visse,
sabendo embora que era filha desse rei
e lhe dissera que não iria retornar:
queria ao menos uma visita derradeira!”
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS VII
Mas no momento em que saiu a Lua Cheia,
foi-se formando um monte alto de terra,
bem no caminho entre os canteiros do jardim;
e ao invés da bela, surgiu uma toupeira
gigantesca e uma coroa relampeia
bem no alto da cabeça da figura!...
Madalena muito dela se arreceia,
soltando um grito de pavor assim,
porém Janos dirigiu-se até a esteira:
“Não se assuste, Mamãe, quem se descerra
é Alvinrude, o rei, majestade que perdura!...”
“Tenha certeza de que não nos fará mal!”
E a toupeira falou, com voz humana:
“Minha pobre filha não para de chorar:
venha comigo e lhe darei sua mão,
que acederei a seus desejos, afinal;
será meu genro e, mais tarde, meu herdeiro!”
E já o envolvia em um abraço triunfal,
mas a mãe o agarrou, sempre a gritar:
“Meu Janos, não cometa essa traição!
Pense em sua mãe! Não caia nessa trama!
Esse é o Diabo, vai devorá-lo por inteiro!...”
Então Janos escutou a voz materna,
do aspecto do rei já temeroso,
que sacudiu em desaponto sua cabeça...
Já Madalena sentia-se aliviada,
quando surgiu uma figura terna
do tal buraco por que viera o rei!
“Venha, Janos, serei sua noiva eterna!”
Faz o amor que tudo mais se esqueça
e Madalena exclamou, desesperada,
quando ele entrava na cova tenebrosa:
“Não Janos, eu não o permitirei!...”
Mas tão logo desapareceu ali o casal,
surgiu o rei outra vez, para impedir
que Madalena a descida atrapalhasse!
E dando um grito, a coitada desmaiou!
Desceu o rei para a cova tão fatal;
sem mais vestígios, ela inteira se fechou!
Madalena não morreu, é natural...
Abriu os olhos, sem que sinal notasse
do buraco em que Janos se afundou!
Entrou em casa aos gritos, a inquirir,
porém em peça alguma o filho achou!...
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS VIII
E tanto a pobre Madalena lamentou
que os vizinhos ficaram perturbados:
primeiro uma comadre, depois um bom amigo
foram chegando e a pobre mãe fez o relato.
A princípio, ninguém a acreditou,
mas a seguir se dispuseram a ajudar...
Em sua tristeza, Madalena comentou:
“Eu preferia que doença ou inimigo
tivesse morto meu filho! Mais me abato
ao ver seus restos aqui enterrados,
com ele vivo e não podendo respirar!...”
E tanto ela falou, que seus vizinhos
escavar foram no lugar ali indicado,
porém sem nada encontrar... E então
foram rápido os canteiros cavoucar,
abrindo neles covas e caminhos...
Os homens as hortaliças carregaram
e as mulheres as flores sem espinhos,
deixando a chácara numa desolação,
mas sem nada conseguirem encontrar,
colhendo mesmo das frutas um bocado
e do alimento a Madalena despojaram!...
Não eram maus, mas já que trabalhavam,
queriam ter uma certa recompensa;
ninguém achou quaisquer túneis ou toupeiras.
Passou-se um ano, Madalena a definhar...
Nas Luas Cheias, seus passos a levavam
até o ponto em que Janos lhe sumira;
de lágrimas seus olhos marejavam,
até que um dia, já quase as derradeiras
Madalena continuava a derramar
e então surgiu diante dela uma presença:
a bela jovem que havia um ano vira!...
“Ah, malvada, que roubou-me o filho!...”
Mas a princesa falou-lhe, ternamente:
“A Senhora pode vê-lo uma vez mais,
mas para isso, deverá descer comigo...”
“E se eu seguir o amaldiçoado trilho,
é de certeza que de novo o encontrarei...?”
“Eu lhe prometo, mas enquanto dura o brilho
do luar. Terá de ser agora ou então, jamais!”
Persignou-se a viúva ante o perigo:
“Dá-me coragem, ó Deus, que ora me alente!”
Fechou-se a terra e de novo viu o rei...
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS IX
Logo no reino subterrâneo penetrou,
em um palácio feito só de terra,
porém completo em sua magnificência,
com toupeiras a correr por toda parte,
mas a princípio o seu filho não achou.
“Onde está Janos, dizei-me, Majestade!”
Alvinrude uma cortina descerrou
e viu recompensada a sua paciência:
como um príncipe seu filho viu destarte,
saúde e alegria sua aparência encerra
e o abraçou, na maior felicidade!...
“Deus, afinal, escutou minha oração!
Venha comigo, de volta para o lar...”
Janos falou: “Mamãe, não poderei...”
“E quem o impede, esse rei peludo?
É uma toupeira e nem tem coração!
Devolva-me meu filho, por favor!...”
“A senhora está enganada em tal menção:
piedade eu tenho,” – respondeu o rei,
“E um bravo coração, disposto a tudo;
porém seu filho irá hoje desposar
a minha filha, por quem tem grande amor!”
“Ai, meu Deus!” – lamentou-se Madalena.
“Jamais na vida poderia imaginar
que este meu filho, tão belo e educado,
tão bom cristão, acabasse por casar
com uma princesa a quem o azar condena
para ser, que tristeza!... uma toupeira!...
Não, senhor rei, essa ideia me envenena!
Quero meu filho de volta, do meu lado,
ou não terei neste mundo mais lugar!...
Eu vou morrer, senhor rei, de lastimar...”
“Para tudo solução há derradeira...”
“Já que não pode de seu filho se afastar,
pode a senhora ficar morando aqui...”
“Ah, eu fico!... Eu tenho muito medo,
mas com meu filho, todo lugar é belo!...”
“Ah, sim, Mamãe, só poderia desejar
que a senhora permanecesse de meu lado...”
“O que eu receio é que venham me atacar
esses cegos animais em seu degredo!...
“Mas foram homens, senhora, antes de sê-lo,
pois um mau encantamento eu recebi,
a maldição de Belakry, o Malvado!...”
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS X
“Não que algum crime eu tenha cometido:
só o derrotei em um torneio de xadrez
e então caí na asneira de troçar!...
Belakry é o pior dos perdedores
e nesta maldição fui envolvido...
Nós somos gênios protetores dos humanos,
mas fui tomado então desprevenido
e eis-me com minha corte a lamentar!
Conservamos a inteligência e os pendores
dos seres humanos, mas não mais sua tez
e há muitos anos a má sorte suportamos!...”
“Só consegui conservar a voz humana
e até um certo ponto, a sua visão,
todos meus súditos aqui cegas toupeiras...
Quando minha filha nasceu, dei-lhe poder,
uma vez a cada mês, sob a Lua soberana,
voltar à forma humana, em sua beleza,
mas nem a mim igual poder conclama...
Mesmo minhas tropas leais e verdadeiras
ao subsolo não consegui trazer,
há muitas décadas já dura a maldição
e já morreram todos, com certeza...”
“E precisando dispor para a defesa
deste meu reino, por minúsculo que seja,
de alguns soldados, mandei minhas toupeiras
nos campos de batalha achar feridos,
que para cá trouxeram, sem lerdeza
e de imediato todos se curavam...
Mas uma hora depois, igual vileza
os transformava, suas formas sobranceiras
eles perdiam... Toupeiras são, bem aguerridos,
mas a cegueira sobre os tais se enseja
e assim melhor à escuridão se adaptavam...”
“Somente eu e minha filha é que enxergamos
e ela há um ano transferiu igual poder
a Janos, seu filho, no mais puro amor;
assim ambos conservam forma humana
e conseguem enxergar, sem sofrer danos...
Só há um problema: se a senhora aqui ficar,
se deixará cegar, sem mais reclamos...”
“Mas não há alternativa a tal horror?
Senhor rei, é uma ordem desumana!...
Meu filho assim não poderei mais ver!...
“Mas estará a seu lado e o poderá tocar...”
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS XI
“Contudo, senhor rei, isso é demais!...
Poupe-me a vista e apenas olharei
para meu filho! Caso falhe ao juramento,
a minha visão perderei, como castigo!”
“Isso é impossível! Em circunstâncias naturais
é claro que a senhora há de enxergar
outras coisas... Mas poderá, ademais,
à superfície voltar neste momento;
mas nunca mais o verá em outro abrigo.
Não há meio termo: ou cegá-la eu mandarei
ou para a superfície há de voltar!...”
“Em sendo assim, que mais posso fazer?
Que a luz dos olhos me tirem eu consinto,
mas de meu filho quero agarrar as mãos:
não mo podem roubar segunda vez!...”
Chegou-se Janos, sem nada mais dizer,
e ajoelhou-se a seus pés, a segurar
suas duas mãos, pois não mais o iria ver...
Em um braseiro, aqueceram dois ferrões...
Ao ver as brasas, chorou de insensatez
e disse a Janos: “Sua face em mim eu sinto,
está gravada e jamais a irei olvidar!...”
Então o rei falou-lhe, lentamente:
“Está bem decidida, boa mulher?
Reflita bem. Pode voltar atrás,
pois há de sofrer horrível dor:
não prefere a luz do dia novamente?”
“Ah, não me tente, Majestade: decidi
e a decisão mantenho firmemente!
Jura, meu filho, que não me deixarás!”
“Juro, Mamãe, por todo o nosso amor!”
“Pois então, faça agora o que quiser!
Lembra, meu filho, o que por ti hoje sofri!”
E as duas toupeiras se foram aproximando,
cada uma delas com um ferrão em brasa
e Madalena ergueu firme sua cabeça!
Mas no instante em que seria tocada
um enorme trovão foi ribombando
e a Terra inteira em terremoto estremeceu!
A pobre mãe outra vez foi desmaiando,
mas quando abriu os olhos, sem ter pressa,
tendo certeza de que já fora cegada,
o rosto amado de seu filho divisava:
que era um lugar maravilhoso percebeu!
A FILHA DO REI DAS TOUPEIRAS XII
Mas diante dela se ajoelhava o rei,
junto com a filha de singular beleza,
mais cortesãos em grande multidão,
cercados por soldados e por pajens...
“Mas o que é isso? Meus olhos eu salvei?”
“Mais do que isso, a todos nos salvou:
o encantamento que jamais quebrei
foi derribado por sua abnegação;
de muitos outros testamos as coragens,
mas nunca algum aceitou esta crueza;
somente assim a maldição nos quebrantou!”
“Este é o meu palácio verdadeiro
e o rei dos gênios destruiu o malefício
e colocou a Belakry no meu lugar!...
Vamos, portanto, realizar o casamento!”
Um dos soldados pediu ao rei, ligeiro,
permissão para falar com Madalena;
pensou primeiro que fosse um estrangeiro,
mas a seguir foi novamente se espantar:
“Você é Lajos!” – gritou nesse momento.
“Mas está igual, sem sofrer do tempo o vício!
E eu estou velha! – falou, com grande pena.
“Não, Madalena, você é jovem novamente,
tão bela quanto em nosso casamento!
Isso faz parte do bendito sortilégio
que provocou com sua abnegação...
Quase morri numa batalha, realmente,
mas as toupeiras me trouxeram para aqui
e me curei das feridas, totalmente...
Se me quiser, em novo florilégio,
de nosso amor haverá a renovação...”
“Tudo mudou a partir desse momento,
só porque num sacrifício eu consenti...?”
E assim foi celebrado o casamento
e Alvinrude recuperou o seu país;
porém vivera muito tempo e abdicou:
“Tem o reino precisão de sangue novo!”
E assim tiveram Janos e Avenca assento,
por longos anos no trono esplendoroso;
tudo porque dera a mãe consentimento
para a sentença que se não executou;
amor maior não há em qualquer povo
que o de uma mãe pelo filho que mais quis,
todos felizes nesse mundo prazeroso!...
EPÍLOGO
Infelizmente, no mundo dos mortais,
nem sempre se realiza essa esperança,
mas qual de nós seria capaz de tal bondade?
Contudo, é certo que no país das fadas
sempre os bons têm recompensas naturais
e sempre os maus no final são castigados.
Ninguém se prenda só a coisas materiais,
mas na virtude encontrará a felicidade!
Eis que tocaram já as nove badaladas!...
Chegou a hora de dormir qualquer criança,
para acordarem de manhã bem humorados!