A GATA E O PAPAGAIO

A GATA E O PAPAGAIO

(Crônica de Théophile Gauthier, que descreve a cena

como sendo verdadeira, adaptação e versificação de

William Lagos, 16 ago 2015).

A GATA E O PAPAGAIO I

Madame Teófilo era gata avermelhada,

de peito branco, olhos azuis, nariz rosado,

que vivia acompanhando o escritor,

que nessa época não havia se casado

e se portava como a esposa do senhor,

com toda a residência acostumada...

Como é costume dos gatos, adormecia

aos pés da cama, quando o dono permitia,

bem mais comum entre mulheres tal costume,

porém Gauthier com ela se aprazia

e certas vezes, até, sem azedume,

por baixo dos lençóis a recebia...

E como era solteiro, ele brincava

que a gata ruiva era, de fato, a sua esposa;

ela deitava nos braços da poltrona

quando ele qualquer história deliciosa

ia escrever, demonstrando ser a dona

e com frequência até sua pena afocinhava!...

Porém o poeta, mesmo assim, não se animava

a empurrá-la para um lado, divertido,

secando a mancha com seu mata-borrão!

(um objeto quase hoje esquecido,

mas de grande utilidade na ocasião,

quando só tinta líquida se empregava!)

A GATA E O PAPAGAIO II

Naturalmente, só se escrevia à mão,

pois não havia a datilografia

e muito menos o atual computador!

E se você desse atraso hoje sorria,

dentro de alguns anos, meu amor,

do atual computador outros rirão!

E tampouco existia essa ração

que hoje insistem prescrever veterinários:

cães e gatos partilhavam da comida

de seus donos, felizes usuários,

sem que doença os levasse de vencida,

longas suas vidas de grande agitação!

Madame Teófilo tinha a sua tigela,

na mesma mesa que o jovem escritor,

que comia em pratos, como é natural...

Mas não fazia bagunça na mesa, não, senhor!

Lambia a tigela, gentil esse animal,

pois cuidadosa a gata sempre se revela!

Mas às vezes, decerto por capricho,

demonstrava ter um certo atrevimento,

se lhe agradasse a comida do escritor

e roubava, até do garfo, num momento

algum pedaço do melhor sabor,

pois achava ser gente o lindo bicho!

A GATA E O PAPAGAIO III

Ao escritor acompanhava em toda a parte,

exceto quando ele saía para a rua,

mas passeava junto dele no quintal

e no jardim, pois raramente assim se amua,

olhando as aves acomodadas mal

em um pequeno galinheiro, num descarte.

O próprio Gauthier colhia os ovos,

mas quem as matava era sua cozinheira,

de quem sentia até ciúme essa gatinha;

porém roubava os pedaços, bem ligeira

e mastigava até mesmo uma patinha,

ainda mais quando os bichos eram novos!

E assim viviam muito bem os dois amigos.

Madame Teófilo tinha sua bandejinha,

sem que sujasse jamais da casa o chão

e algumas vezes, bancando a espertinha,

subia no vaso, na mais fiel imitação,

sem escorregar ou correr qualquer perigo!

Mas quando vinham visitas, se escondia,

especialmente as do sexo feminino,

ainda mais quando fossem demorar!...

Enfiava-se em algum canto pequenino,

sendo educada demais para miar,

porém muito certamente se ofendia!

A GATA E O PAPAGAIO IV

E só saía quando a casa estava vaga,

sempre depois de Gauthier muito a chamar:

hesitando, sem interesse, falsamente,

para depois, só aos poucos, se ir roçar

nos tornozelos do amigo, bem contente

quando a mão do escritor seu pelo afaga...

Mas certo dia, lhes surgiu um contratempo:

um dos amigos de Gauthier foi viajar

e lhe pediu que cuidasse o papagaio!...

“A gaiola e todo o alpiste vou-lhe dar,

será somente durante o mês de maio,

nem irá notar a passagem desse tempo!...”

Gauthier, a princípio, bastante relutou:

“Logo essa ave que trouxe do Brasil!...

Você não sabe que moro com uma gata?”

“Meu papagaio não é qualquer pássaro vil,

é acostumado a defender-se desde a mata,

de onça e carcaju já se escapou!...”

“Está bem, mas não serei o responsável,

caso a gata o atacar!... Eu o avisei!...”

“Ora, nem se preocupe...” – disse o amigo,

“O meu louro, estando aqui, será o rei!

Sabe livrar-se de qualquer perigo!...

Se algo ocorrer, não o terei por imputável!...”

A GATA E O PAPAGAIO V

E assim chegou o papagaio louro,

que na verdade, era todo bem verdinho,

somente o bico luzindo de amarelo!...

Nunca entendi esse tal apelidinho,

seja embora, de fato, um bicho belo,

que todos julgam ser de bom agouro!...

Mas veio a ave protegida por gaiola,

mesmo assustada com o pouso estranho

e em seu poleiro se encarapitou,

a calcular o seu prejuízo e ganho

logo depois que a gata ele avistou,

girando os olhos redondos como bola...

Mas a surpresa maior foi a da gata...

Aquele bicho não parecia ser galinha!

Nem cachorro, nem pássaro ou mulher!...

Mas a proteção das grades ele tinha

e não temia um bote de qualquer

predador igual àqueles de sua mata!...

Porém a gata ficou imóvel, fascinada,

como um felino no Egito embalsamado,

a evocar toda a história natural

que recolhera no jardim e no cercado.

Lembrava a grade, é claro, um material

que dela protegia a galinhada!...

A GATA E O PAPAGAIO VI

Seus olhos, tão somente, se moviam,

como expressando claros pensamentos,

imersa a gata em tal perturbação:

Decididamente, não me falham julgamentos:

isso não é um pardalzinho, como são

esses que às vezes no jardim cantam e piam!

Bastante bons de comer bem que eles são,

mesmo que o “meu marido” desaprove,

mas já engoli canários e pardais:

seu sangue é quente e como se comprove,

como-lhes penas, o bico e até mais

devoraria, caso caíssem em minha mão!

Mas esse bicho que os pardais é bem maior;

pequeno e estreito demais para galinha...

Um galo verde eu tampouco jamais vi!...

Chegada à conclusão, essa gatinha

pulou da mesa ao topo, a olhar dali

esse “frango” que a encarava com terror!

Depois, igual ao que fazem as panteras,

seu ventre arrastando contra o chão,

as patas estendidas e a cabeça

inclinada para a frente, em contração,

sobre o canto da mesa, era uma peça

a apresentar-se qual verdadeira fera!

A GATA E O PAPAGAIO VII

O papagaio acompanhava o movimento

bastante inquieto, reconhecendo seu perigo:

a mesma tática para caçar uma gazela!...

Seu olhar esgazeando ao inimigo,

sem ter certeza se o protegia dela

de sua gaiola o gradil já ferrugento!...

Ele eriçou as penas, como um galo,

fez ressoar, apressurado, sua corrente,

as patas levantando e aguçando

o bico contra o comedouro, loucamente,

todo ele o tal confronto já esperando:

talvez a fera acabasse por matá-lo!...

Pois nos olhos da gata ele enxergava

certa linguagem que compreendia muito bem:

Acho que é um frango bom de se comer,

Embora seja verde a cor que tem!...

A decidir se teria jeito de o abater,

mesmo com o tal gradil que a atrapalhava!

Gauthier toda essa cena observava,

com bastante interesse e divertido,

pronto a intervir, chegado o seu momento;

mas antes que algo o tivesse prevenido,

Madame Teófilo, em fluido movimento,

Sobre a gaiola já se precipitava!...

A GATA E O PAPAGAIO VIII

Contudo, é claro que a grade resistiu!

No lado oposto, encolheu-se o papagaio

e ela tentou a volta dar, pensando:

Vou com cuidado, senão daqui eu caio!

E de fato, se acabou precipitando,

caindo em pé, como gata, já se viu!...

Gauthier a abraçou e a gata lhe pediu,

com uma série de miados lastimosos,

que o papagaio no almoço lhe servisse!...

Deu-lhe o poeta abraços carinhosos:

“Mas não é de se comer!” – ele lhe disse

e com amor para a gata então sorriu...

Foi depois à avezinha consolar,

que tremia, lá no alto do poleiro,

mesmo estando sua gaiola bem fechada.

Acusou-o a gatinha, bem ligeiro,

dessa traição com que fora desprezada

e então Gauthier lhe ofereceu outro manjar...

Porém a gata não havia desistido

e nessa tarde já continuou a rondar,

suas garras a fechar, depois a abrir,

os olhos lentamente a revirar,

seu pelo estremecendo sem sentir,

a calcular a refeição que havia perdido!

A GATA E O PAPAGAIO IX

Não obstante, sendo animal inteligente,

observou quando a água era trocada,

mais o alpiste e a folha de jornal

que pelo louro, em seu terror, fora sujada!

E percebeu, com sua esperteza natural,

que se abria a portinhola facilmente!...

Já no outro dia, ela deu um novo bote

e com os dentes, ergueu fácil o ferrinho

que a porta da gaiola destrancava!

Mas Gauthier foi se achegando, de mansinho,

ou o papagaio do amigo ela matava,

pois a cabeça ali enfiara até o congote!...

Mas antes que a pudesse retirar,

e papagaio exclamou, em alta voz:

“Não almoçaste ainda, Frederico?”

Sentiu a gata qual se animal feroz

a atacasse, mas sem sequer o bico

o seu focinho rosado pinicar!...

Pois foi tomada de um pavor irresistível,

tal se escutasse um toque de clarim

ou a banda marcial mais estridente

ou alguns tiros de arma de festim,

foguetes ou o som mais imponente

de um canhão, na descarga mais terrível!

A GATA E O PAPAGAIO X

Os seus conceitos sobre aves transtornados,

o seu focinho expressando claramente:

Mas isso não é ave, é meio gente!...

Gauthier nos braços acolheu-a, facilmente,

passando os dedos no seu pelo, como um pente,

seu coração em batimentos desvairados!...

E o papagaio, até então bem quieto,

pôs-se a palrar, com voz bem forte e rouca,

para Gauthier meio ensurdecedora,

já convencido de que este som treslouca

a gata – bela defesa protetora –

vencedor sobre o terrível desafeto!...

Madame Teófilo permaneceu no colo

durante, pelo menos, meia hora,

a olhar Gauthier acusadoramente;

então pulou ao assoalho e foi-se embora

para o jardim, em que ficou tranquilamente,

lambendo os pelos, quase em torcicolo!

No dia seguinte, recuperada a calma,

aproximou-se, devagar, dessa gaiola,

mas antes que tentasse outra tocaia

o grasnar do papagaio até a sua cola

agitou, como o vento agita a faia,

que aquela voz lhe perturbava a alma!

EPÍLOGO

Muito em breve, o amigo retornou

e encontrou o papagaio imperturbado.

Agradeceu e o levou logo consigo...

Percorreu a gata toda a casa com cuidado,

convenceu-se de que o terrível inimigo

tinha ido embora... e finalmente se acalmou!