O Primeiro Saci que Conheci
"... todo escritor que conta um causo (ou história) sobre o saci Pererê é um Caçador de sacis..." - SOSACI-São Luis de Paraitinga (SP).
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Toda vez que chegava uma nova família na fazenda de café, onde eu vivia, todos se alegravam. Os adultos, por terem mais um amigo por perto, já para a molecada da fazenda, nem se fala! E, ao ver-mos que na família nova tinha um menino da nossa idade então, ficávamos curiosíssimos: será que o novo amiguinho teria um dote especial? Será que ele sabe jogar bola melhor, brigar melhor, nadar melhor? Será que ele sabe tocar viola ou cavaquinho, fazer gaiola de passarinho e arapuca; será que é bom de estilingue ou bodoque e etc.?
Cada um de nós ficava imaginando qual seria a sua experiência de vida; se ele tinha irmãos e outras coisas. Como era praxe, colono novo almoçava na casa do administrador no dia da chegada: era as «boas vindas». O Administrador, meu pai, pagava a despesa do próprio bolso, pois o fazendeiro sovina jamais o reembolsou; talvez Deus tenha feito isso por ele! Papai tinha muita pena de gente que viajava com filhos pequenos durante muitas horas, às vezes passavam o dia todo sem comer.
- Naquele sábado não foi diferente, quando vi o «panelão» que borbulhava no fogão à lenha, logo imaginei: como não vai haver festa, é colono novo chegando, e de longe.
- Percorri toda a colônia avisando meus amiguinhos que teríamos gente nova na fazenda e que meu pai afirmou que tinha um menino da minha idade. Nesse dia não saímos para pegar frutas, nem caçar, nem jogar bola: passamos o dia todo debaixo da mangueira do quintal da minha casa, brincando com vaquinhas e cavalinhos de bucha, caminhõezinhos de lata de marmelada, aos quais atávamos um «cordoné» para poder puxá-los.
Desse modo transportávamos uma boiada do curral de um até o piquete de outro, e vice-versa. Fazíamos transações comerciais, as quais eram pagas com tampinhas de refrigerantes (o guaraná Paulista valia um conto; guaraná Caçula, destões (um mil réis); Mãe-Preta ou Níger, quinhentos réis).
A tarde já se anunciava mostrando a barra do dia avermelhada e o céu azul, que só a região de Cravinhos tem, quando percebemos um certo alvoroço com o pessoal da casa: a carroça com a mudança do novo colono chegou.
Eu e meus amiguinhos corremos até o portão da frente da casa e deparamos com uma família diferente: o pai, que estava conversando com o meu, era um crioulo alto, forte, com dentes brancos e perfeitos, com as carapinhas já embranquecendo; a mãe parecia bastante jovem, com um bebê no colo, ao mesmo tempo que dava ordens ao menino e sua irmã, um tanto atarantados com minha presença e de meus amiguinhos, e remexia em sacolas, sacos e embornais à procura de não sei o quê.
Meu pai muito gentil, pediu que apeassem e se preparassem para aquele almoço fora de hora. Minha mãe foi chispando reacender o fogo e botar o panelão e a assadeira para aquecer.
- Eu e meus amiguinhos não desgrudávamos os olhos do menino, que agora sabíamos chamar-se Ditinho, que por sua vez parecia muito incomodado com a nossa presença. Toda a família do Ditinho foi até a «vasca» do fundo do quintal, se refrescaram, banharam os braços e o rosto, molharam delicadamente a cabeça e a mãe penteou-os todos, até o marido.
Nesse ínterim minha mãe chamou-os para comer e já estava com a mesa posta: no panelão, risota caipira: uma espécie de sopa de pouco caldo com arroz, batata, frango, cenoura, vagem, cozidos com açafrão recém colhido, coberto de salsinha picada e queijo curado ralado; havia também mandioca frita, feijão, uma farinheira cheia de farinha de mandioca, que eu ajudei a fazer, e uma assadeira com um pernil de tatu «rabo mole» tostadinho, duas jarras de água da bica e uma tigela de arroz-doce com folhas de laranjeiras.
Eu e meus amiguinhos não ficamos ao lado da nova família de colonos, mas ficamos apinhados do lado de fora das duas janelas da sala com a grande mesa, onde freqüentemente comíamos em, no mínimo, nove pessoas.
Enquanto o pai do Ditinho almoçava, os camaradas da fazenda descarregaram a mudança na casa recém caiada da colônia, com chão de terra - batida, dois quartos, sala e cozinha. Na fazenda, os banheiros são feitos do lado de fora, diretamente sobre uma fossa, que a cada ano era coberta de «cal viva» e aterrada, sendo então feita uma outra.
Na verdade era cercada por folhas de zinco, e de zinco era também a cobertura. Eu e meus amiguinhos assistimos a despedida da família do Ditinho, agradecendo a hospitalidade e rumando para sua nova casa. Quando passou por nós, o Ditinho disse amanhã eu quero falar com vocês!
Ficamos bastante ansiosos, e mal podíamos esperar para falarmos com o novo amigo no dia seguinte. De manhã, como de costume, apanhei a caneca de louça, coloquei dois ou três dedos de café, acrescentei quatro colheres de açúcar cristal e fui até o curral, para tomar meu café com leite «direto da fonte».
A «fonte» era uma vaca rústica, toda «chitadinha» de branco e preto, chamada Bela Vista, que era a nossa preferida. O tirador de leite, que começava a ordenha por volta das quatro da manhã, precisava tirar o leite todo antes das sete horas, quando então enviava para minha casa duas latas de vinte litros: uma para os colonos e outra para fazer os queijos dos patrões; pelo menos dois por dia.
Portanto, o tirador de leite sempre deixava a Bela Vista para o final, pois a qualquer momento eu e meus irmãos podíamos querer leite fresco. Ele esperava até sete horas, aí então terminava seu serviço.
Pois bem, após meu desjejum, passei em casa e comi um belo pedaço de pão caseiro com queijo e me dirigi à colônia: pretendia reunir os meus amiguinhos e, juntos, irmos a casa do Ditinho. Mas, ao chegar à colônia, já os vi todos, inclusive o Ditinho, num bate-papo animado, que só parou quando me aproximei e disse: - o que você quer falar com a gente? Antes mesmo de o Ditinho abrir a boca, o Ném, meu amigo disse: ele vê e ouve saci - pererê!!.
Ele vê o que?, disse eu sem entender direito: saci - pererê, disseram todos em coro.
Nesse ponto, o Ditinho começou a contar a sua história: disse que sua mãe verdadeira já havia morrido, e aquela que morava com seu pai, era sua madrasta, e que sua irmã, por parte de mãe sofre de vermes e desmaia quando passa vontade de comer alguma coisa, mas que o bebê é lindo; a madrasta não liga pra ele e seu pai é generoso e trabalhador e que desde que era menino, ele via saci - pererê, só que não sabia o que era: a primeira vez que viu tinha quatro anos, fazia muito tempo, pois agora já tem sete e que qualquer criança pode ver o saci - pererê e que ele não faz mal a ninguém, só faz estripulias, que quando tinha cinco anos ele não quis brincar com o Saci e que o Saci derrubou todas as panelas da madrasta no chão da cozinha, durante a madrugada e que seu pai deu dois tiros de espingarda nele e que agora tem medo do saci se vingar do seu pai.
Eu e meus amiguinhos, inclusive o novo, ficamos ali até que ouvi o sino da sede da fazenda: era o sinal da minha mãe, avisando os filhos e meu pai que o almoço já estava pronto. Durante o almoço com minha família comentei com meu pai do menino novo que via e ouvia saci - pererê e enquanto meus irmãos faziam caçoada de mim, meu pai falou: Pois, agora, toda vez que vocês saírem juntos, você tem que levar uma caixa de fósforos no bolso.
Meus irmãos todos se calaram e meu pai não disse mais uma palavra, continuou calmamente a almoçar, com o olhar cúmplice de minha mãe: No mesmo instante eu percebi que meu pai também acreditava, ou já tinha visto um saci - pererê.
Durante os próximos dias e durante todo o ano, até a colheita do café, após a qual todos os contratos dos colonos venciam e discutia-se, quem vai ficar na fazenda e quem vai sair, discutíamos os casos dos sacis - pererês.
Certo dia o tirador do leite não encontrava os baldes para a ordenha, num outro dia os rabos dos cavalos apareciam amarrados uns aos outros, noutra ocasião esvaziaram o lavador de café, inundando todo o terreiro de secagem e atrasando o beneficiamento por mais de uma semana, enfim de vez em quando alguma traquinagem acontecia na fazenda: e eu sempre com a caixa de fósforos no bolso.
No final da colheita do café daquele ano, a família do Ditinho resolveu ir embora para São Paulo e eu e meus amiguinhos ficamos muito tristes, pois embora o Ditinho não pudesse jogar bola e tivesse dificuldade de nadar ou caçar de estilingue suas estórias eram muito excitantes.
No dia da sua partida, marcamos com ele para nos despedirmos junto à porteira da fazenda, uns dois quilômetros longe de casa, em meio a uma mata fechada. Quando a carroça com a mudança chegou, não vimos o Ditinho. Perguntamos por ele, e seu pai disse: ele vem vindo a pé pelo meio do mato - e foi embora. Estranhamos muito, mas ficamos ali esperando.
Após algum tempo, ouvimos um assovio longo e forte e nos voltamos para uma «picada» no mato e vimos o Ditinho com um boné vermelho na cabeça, cachimbo na boca, pulando sobre sua perna aleijada, completamente pelado e gritando:- me dá o fogo senão morre ou fica bobo!
Todo amedrontado, retirei a caixa de fósforos do bolso e entreguei ao Ditinho, que saiu rindo alto e assoviando, pulando atrás da carroça de mudança.
- O Ditinho era o próprio saci-pererê!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!