OS TRINTA E NOVE CAMELOS

OS TRINTA E NOVE CAMELOS

(Dedicado a Sami Ali e a Suzana Abunader Kalil)

(VERSIFICAÇÃO (EM TERZA RIMA) DO FAMOSO CONTO DO PROFESSOR CARIOCA JÚLIO CÉSAR DE MELLO E SOUSA, 1895-1974, QUE ADOTOU O PSEUDÔNIMO DE ALI YAZZID IZZ-EDIN IBN-SALIM HANAK MALBA TAHAN, CONHECIDO COMO MALBA TAHAN, AUTOR DE DEZENAS DE LIVROS AMBIENTADOS NO ORIENTE PRÓXIMO, ALÉM DE 51 OBRAS SOBRE MATEMÁTICA, ENTRE OBRAS DE DIFUSÃO E OBRAS DIDÁTICAS, POR William Lagos, 14 jul 2015)

EM O NOME DE ALLAH, CLEMENTE E MISERICORDIOSO!

OS TRINTA E NOVE CAMELOS I

Após minha santa peregrinação a Mecca,

Obrigação de todo o muçulmano,

Oásis em terra pedregosa e seca,

Entre o deserto arenoso e desumano,

Tomei a trilha que conduz a Baghdad,

Arquitetando parcialmente o plano

De passar por Medina, onde ainda há

Velha mesquita, bela e imponente,

Que novas bênçãos para mim trará,

A qual também o verdadeiro crente,

Sempre que tenha meios financeiros

Deve uma vez visitar com fé potente,

Para seguir depois os caminheiros

Que se aglomeram em longas caravanas,

Cruzando o Iraque e a Síria, pegureiros,

Até El-Quds, onde em épocas arcanas

O Profeta Maomé aos céus subiu:

Jerusalém para gentes mais profanas...

OS TRINTA E NOVE CAMELOS II

Quando cheguei a Basra, me contaram: “Já partiu

À sua frente a caravana que buscava...”

Durante meses, nenhuma outra se reuniu

E como minha viagem assim tardava

Busquei o auxílio de um fiel e honesto guia,

Abu Salim, que no caravançará se achava.

Ele aceitou fazer-me companhia;

Nesse período não havia salteadores,

Mas na areia do deserto mal se via

A trilha oculta por mil ventos traidores,

Que ele afirmou conhecer bastante bem,

Amizades mantendo nos seus arrededores...

Montei em meu camelo e ele também,

Outro levava nossa água e mantimentos

E seguimos pelas trilhas que nos vêm.

Até encontrarmos perigosos ventos

Que levantavam a areia em tempestade

E envoltos já ficamos em momentos!...

OS TRINTA E NOVE CAMELOS III

Banho de areia recebemos de verdade,

Que a tempestade demorou três dias,

Encolhidos os dois na densidade

Dessas dunas de areia luzidias,

Vivendo apenas da água que trouxéramos,

Até que o vento nos abrisse as vias...

A Allah agradecemos, porque éramos

Depois de todo o mal, sobreviventes,

Mas aos camelos dar água não pudéramos

E ao fazermos os esforços mais ingentes,

Somente um dos três desenterramos

Ainda vivo, os outros dos ali jacentes,

Sufocados pela areia os encontramos...

Reunimos o que restou dos mantimentos

E ao restante camelo carregamos...

Mas não montamos, por mútuos julgamentos,

Já que o animal, com nosso peso, morreria

Para aumentar nossos padecimentos...

OS TRINTA E NOVE CAMELOS IV

Abu Salim, porém, de fato conhecia

Perfeitamente bem essas paragens

E conduziu-me sem erro nem folia

A um outro oásis perdido nas paisagens...

Tinha amizade com seus moradores

E água nos deram e prestaram homenagens,

Até aguardamos a passagem dos ardores;

Meu pobre camelo a boa saúde retomou

E a hospitalidade já pagara a esses senhores

Quando pequena caravana ali chegou:

Eram trinta e nove camelos a marchar;

Da cáfila Abu Salim se aproximou, (*)

(*) Rebanho ou fila de camelos.

Buscando conseguir algum comprar;

Naturalmente, seria eu quem pagaria...

Os cameleiros não quiseram aceitar.

Eu indaguei para onde a tropa iria

E me disseram que pretendiam acampar,

Enquanto a herança de seu pai se discutia....

OS TRINTA E NOVE CAMELOS V

Boa amizade não tardamos a travar

E ofereci-me para contratar algum,

Mas gentilmente me foram recusar.

“Não podemos desfazer-nos de nenhum

E nem tampouco dos irmãos nos separar;

Sempre tivemos todas as coisas em comum,

Mas nosso pai faleceu e, por azar,

Que dividíssemos a cáfila nos determinou:

Três tropilhas de treze seria fácil separar...

Mas nosso pai (Allah o tenha!) ladino se mostrou.

“Não, meus filhos, não será igual a divisão,

Pois Hassan é o mais velho e já casou..”

“Metade é dele por meu desejo, então.

Mustafá é o segundo, também está casado:

Que tenha um quarto para a sua possessão.”

“Abdul é o mais moço, sem esposa ao lado,

Portanto será dele esse quinto que sobrar.

Façam assim, meus filhos, que morro descansado.”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS VI

Nosso pai era esperto e pressentiu nosso pensar:

“Meus filhos, os camelos são sua herança,

Guardem-se bem de nenhum deles matar!”

“Que sejam bons irmãos será minha esperança;

Tomem conselho sobre como dividir,

Sigam minhas ordens e terão sempre bonança!”

“Pouco depois, nosso pai vimos partir

Com grande lástima, fora bom e amoroso

E o enterramos após um digno carpir...”

“Tínhamos de discutir como seu dom piedoso

Poderíamos então separar entre nós três

E o resultado demonstrou ser enganoso...”

“Trinta e nove camelos, de tão formosa tês!

Dezenove era a metade e ainda meio...

De Mustafá a herança seria, por sua vez,

“Nove camelos e mais um quarto de permeio;

Para Abdul cabia o quinto que sobrou

E mais um quinto de camelo! Algum matar é feio!...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS VII

“Pensamos ter de abater o que restou,”

Assumiu Mustafá a narrativa,

“Mas isso era contra ao que o pai determinou.”

“De qualquer modo, conservando a tropa viva,

Seriam dezenove mais nove e então mais sete,

Só trinta e cinco nessa conta progressiva...”

“Sobram-nos quatro e se cada um comete

Uma infração à determinação expressa

De nosso pai, a quem então compete,

“Esse último camelo? Não se esqueça

Que não podemos nenhum deles abater...

Mostrou-se inútil o conselho que se peça...”

“Nem nosso cádi nem o xeque a compreender,

Só concordando que devíamos respeitar

Os desejos do pai e apenas empreender

“Aquilo que nos quis determinar...”

Falou então Abdul, que era o mais moço:

“Por mim, a tropa inteira devemos conservar...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS VIII

“Pois reconheço ser bem duro o osso

Da divisão, do jeito que o pai quis...

Mesmo amigos e irmãos neste retoço!”

“Igual proposta no princípio eu fiz,”

Falou Hassan, porém não nos acertamos,

Talvez pensassem em artimanhas vis...”

“E assim esposas, filhos e a mãe deixamos

No antigo oásis, junto ao cemitério

E para este outro então nos afastamos...

“A discutir com muita calma o despautério,

Sem desrespeito, junto do pai a sepultura,

Nossas famílias a lamentar no eremitério...

“Para cá os três viemos, mas a discussão já dura

Por duas semanas, sem acharmos conclusão

E algumas vezes, até dissensão perdura...”

“Mas aguardamos o mullah desta região,

Que é um velho sábio e talvez nos dê resposta

Que possamos aceitar nesta ocasião!...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS IX

“Eu também já apresentei outra proposta:

Que os camelos se vendam,” falou Mustafá,

“E o dinheiro se divida, mas é mal disposta,”

“Por nosso pai a divisão que chegará...

Cada camelo vale sete e meio dinares,

Dos trinta e nove a venda então resultará

“Duzentos e noventa e dois, em bons contares

E mais meio dinar nos sobrará,

Sem dar um fim para nossos disputares...”

“Mas a minha parte jamais se venderá!”

Falou Hassan. “Nós somos cameleiros,

Nenhuma outra profissão me servirá!...”

Disse então Abdul: “Noventa e sete dinheiros

Muito em breve também se acabarão.

O que faremos depois, meus companheiros?”

“Talvez por sete a gente os venda então,”

Foi proposto outra vez por Mustafá,

“Noventa e um dinares nos resultarão...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS X

“Será para nós um lucro ainda menor!”

Foi protestando Hassan, incontinenti,

“E o pai não quer que se vendam, meu senhor!”

“Ele não quer que se mate, é diferente!”

“Mustafá, nós não queremos essa venda!”

“E se obtemos dez dinares, de repente?”

E começaram de novo a sua contenda,

Cada um a apresentar novo argumento,

Sem resultado que no final se entenda!

Acalmou-se Hassan e falou, lento:

“A minha parte jamais eu venderei!”

E Abdul concordou nesse momento.

Então disse Mustafá: “De novo proporei

Que não se faça nenhuma divisão:

A par com vocês dois trabalharei!”

“Assim foi sempre a nossa vocação...

Mas resolver esta disputa precisamos:

Para as crianças o leite é a alimentação!”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS XI

Abu Salim chamou-me à parte e conversamos.

“Meu amo, pode o senhor confiar em mim?”

“Não desconfiei enquanto viajamos...”

“Você me trouxe ao bom caminho assim,

Depois do terrível Harmatan nos assaltar

E onde guardo meu dinheiro sabe, enfim...”

“Então, concorde com o que vou falar,

Por mais estranha que pareça minha proposta,

Escute apenas, assim, sem protestar...”

“Verá que a minha ideia é bem disposta

E que no fim não sairá prejudicado;

Não lhe irei retirar o que mais gosta!...”

Eu aquiesci, um tanto desconfiado,

Porém confiante na proteção de Allah.

“Faça o que quer,” lhe falei, “fico a seu lado.”

Abu Salim retornou para acolá,

Onde o trio permanecia a discutir:

“Tenho resposta que cada um aceitará!...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS XII

“Hoje meu amo concordou em permitir

Que o camelo que é dele eu ajuntasse

A essa cáfila que necessitam dividir...”

“Como assim?” fez Abdul. “Que acrescentasse

Mais um camelo aos trinta e nove animais...”

Os três me olharam e, como eu concordasse,

“Mais um camelo não nos será demais,”

Falou Hassan. Grande a generosidade

De seu patrão. Mas condições são naturais...”

“Nem um dinar pagarão por sua bondade.

Bem ao contrário, ele pretende contratar

Sua caravana para a viagem, na verdade,

“Ou parte dela, o pagamento a combinar...”

“Bem, se é assim, claro que aceitaremos!”

Falou Hassan, os outros dois a concordar...

“Por estranha esta proposta que hoje vemos...

Mas, afinal, o que teremos a perder?

Que ajunte esse camelo, assentiremos...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS XIII

“Com um camelo a mais a pretender,

Temos quarenta, ao invés de trinta e nove...

Senhor Hassan, você deveria receber,

“(Que o testamento do Sr. seu pai se louve!)

A metade da cáfila, não é fato?

São dezenove e meio, só que agora se move

“Esse total, pois receberá, exato,

Vinte camelos – ou a metade de quarenta.

Está de acordo? Tenho o seu acato?”

“Naturalmente. Nessa conta que apresenta

Meio camelo, afinal, eu ganharia...

Agradeço a divisão que assim se atenta...”

“Pois bem. Mustafá, o senhor receberia

Nove camelos e ainda mais um quarto,

Sendo quarenta, dez agora eu lhe daria...”

“Está de acordo? Terá um total bem farto,

Sem precisar sacrificar um animal:

São dez camelos, um generoso parto...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS XIV

“Aqui eu lucro, sem dúvida, afinal...”

“Tenho, portanto, o seu assentimento?”

“Claro que sim. Dou-lhe todo o meu aval...”

“Bem, senhor Abdul, conforme o testamento,

Teria direito a sete camelos e um quinto,

Mas se cortassem um animal neste momento,

“Não seria suficiente, assim pressinto:

Um quinto, um quarto e mais uma metade,

Resultam em onze partes, não lhes minto.”

Após ouvi-lo, concordou de boa vontade

O último filho do velho cameleiro:

Receberia oito camelos, na verdade.

“Se fosse o quinto disputar, certeiro,

Dois camelos teriam de morrer,

Para criar onze pedaços, companheiro...”

“Matando outro, o quinto lhe iria pertencer,

Mais nove pedaços do pobre animal,

Que três pedaços a cada um iriam caber...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS XV

“Que me diz de ganhar oito no final?”

“Será um lucro, nosso pai nos proibiu

De abater qualquer camelo do total...”

“Exatamente. O testamento se cumpriu:

Um tem vinte camelos, a metade,

Outro mais dez dos animais já conseguiu...

“Você ganhou seus oito, na verdade;

Cada um dos três lucrou nessa partilha.

Estou correto ou falo falsidade...?”

“Está correto, mas falta algo nessa trilha:

Entre os três, trinta e oito recebemos,

De que modo o restante se perfilha?”

Insistiu Mustafá. “Dois deles perderemos?”

“Não, meu senhor, pois um pertence a meu patrão

E o restante, nós lhes compraremos

“Por nove dinares, preço acima do padrão,

Cada um três moedas a embolsar,

Ainda que eu mereça ganhar um, na divisão...”

OS TRINTA E NOVE CAMELOS XVI

E foi assim que consegui me apoderar

De um segundo camelo, por bom preço,

Até doze dinares eu poderia pagar...

Dos três irmãos conquistamos o apreço,

Seus animais depressa a carregar,

Com boa mercadoria, de tâmaras a gesso,

Alegremente para Baghdad marchar...

Algumas vezes a discutir, embora,

Entre os três sobre o estranho partilhar...

Mas não puderam descobrir, em qualquer hora,

Qualquer falha no raciocínio esperto

De meu fiel Abu Salim, senhor agora

De sua própria montaria, um sinal certo

De que Allah essa partilha lhe abençoara,

Os três irmãos com meus dinares em acerto...

Em Baghdad, na mesquita que se alçara,

Oramos todos cinco, lado a lado...

Por baixo preço Abdul outro comprara...

EPILOGO

Juntos ficaram os irmãos a trabalhar,

Que era a vontade de seu pai esperto.

Abu Salim decidiu me acompanhar,

Sempre honesto e de coração aberto,

Até chegarmos a Jerusalém,

Que El-Quds chamam os verdadeiros crentes

E finalmente me acompanhou, também,

Até Damasco, onde vivem meus parentes...

Maktub! Estava escrito, meu irmão!...