A ÁGUA DA VIDA

A ÁGUA DA VIDA – 03 jul 15

(Conto de fadas de base hinduísta, original de William Lagos)

A ÁGUA DA VIDA I

Bem ao norte da Índia, perto de Shalimar,

vivia Sinabali, uma pobre costureira,

com um filho de colo, por nome Sattiabul

e seu marido oleiro, que por muito trabalhar

construíra uma choupana ao lado da oficina,

em que fazia potes, tal qual a longa sina

de toda a sua família, chegada desde o sul,

que perto descobrira argila de primeira,

moldando terracota que em seu forno queimava,

vendendo facilmente o quanto fabricava.

Um dia, no entretanto, a febre o acometeu

e em questão de semana o carregou consigo;

gastou a viúva com sua cremação

quase todo o dinheiro e um restinho ela deu

ao sacerdote da aldeia para as orações;

mas era habilidosa e da obra de suas mãos

ganhava o suficiente para a alimentação;

fechou a oficina e nela o forno antigo,

para que Sattiabul um dia retomasse

do pai a profissão, consoante a lei determinasse.

Era o costume então seguido na Índia inteira

de que os filhos exercessem o trabalho de seus pais,

seguindo a Lei das Castas, costume secular;

caso fosse menina, seria costureira...

Mas moravam muito longe os parentes do marido;

bastante esforço custaria obter o pretendido

oleiro mestre para a prática ensinar...

E desde então rezava as preces ancestrais

para que os deuses reparassem seu futuro

e mostrassem ao filho o caminho mais seguro.

Porém, quando Sattiabul completou seus quatro anos,

acometido foi pela igual febre malsã

que a seu pai levara depressa para a morte

e grassava entre o povo nesses verões indianos

e milhões carregava das cidades apinhadas...

Sinabali erguia aos céus as preces mais aladas:

que seu pobre filhinho protegessem dessa sorte;

cuidava noite e dia, mas era luta vã

e Sattiabul definhava, da noite para o dia,

não importa o que fizesse, não importa o quão sofria!

A ÁGUA DA VIDA II

Sinabali, em seu mister de costureira,

já trabalhara para um médico estrangeiro,

na outra aldeia, logo após o rio;

prendeu uma cesta ao colo, alvissareira,

e colocou dentro dela o seu menino,

tomou água e provisões e o resto pequenino

do dinheiro que o marido, com esforço e brio,

havia juntado em vida; e com passo bem ligeiro,

tomou sem mais tardar a polvarenta estrada,

a mais vaga esperança sendo melhor que nada!

É bem verdade que a geral superstição

contra a medicina europeia era orientada,

porque era a um deus estrangeiro que serviam

os estrangeiros dessa alheia religião

e ofender aos velhos deuses se temia;

buscavam evitar, tanto quanto se podia,

lidar com os estranhos, que sempre conseguiam

derrotar qualquer tropa, mesmo a melhor armada,

pois decerto eles tinham o apoio dos Asuras

contra os bons Devas de intenções mais puras! (*)

(*) Devas e Asuras são semideuses, primos entre si, mas os Devas, em geral,

são favoráveis aos humanos, ao contrário dos maliciosos Asuras.

Mas Sinabali encheu-se de coragem

e foi do médico visitar o bangalô,

casinha branca, formando dois andares,

em que atendia e até dava hospedagem

a quantos seu conselho ali buscavam;

muitos destes realmente se curavam;

alguns morriam, mas os pobres familiares

davam de ombros: algum deus determinou!

Levando os corpos para um crematório,

sob a égide de Kali em ostensório... (*)

(*) O avatar de Umma (a deusa-mãe) que preside a morte.

O Dr. Johnson tratou bem do garotinho,

que em breve parecia estar curado...

“Tenha cuidado, às vezes a febre volta!

O meu estoque de remédios é mesquinho;

segunda vez não poderei tratá-lo...”

Sinabali se curvou, a pensar como pagá-lo:

“E como estão Dona Anna e a menina?”

“A mesma febre roubou-as de meu lado...

Minha esposa está enterrada no jardim;

nem sei que fim levou minha pobre Eileen!...”

A ÁGUA DA VIDA III

“Como assim..?” Sinabali surpreendeu-se.

“Sumiu daqui, simplesmente, a pobrezinha.

Disse a polícia que teria sido raptada,

mas até o presente coisa alguma descobriu-se

e nem sequer houve pedido de resgate...

Nada posso fazer, exceto dar combate

a essa moléstia por que a região está cercada...

Deve andar por aí minha garotinha,

possivelmente a venderam como escrava;

muitos buscaram, mas ninguém a achava...”

“Quanto lhe devo eu, meu bom doutor?...”

“Posso dizer que não me deve nada,

mas bem sei que seu orgulho ofenderei;

três camisas lhe trarei – tem bom valor

o seu trabalho como boa costureira;

estão rasgadas, porém use a terceira

para remendo das outras e lhe agradecerei.”

Sinabali retirou-se, um tanto consternada,

por saber que da febre perecera também

a boa senhora, que a tratara sempre bem.

Consertou as três camisas com cuidado,

aproveitando as fraldas da terceira,

mas mesmo essa, ainda que curta, devolveu,

deixando o médico muito bem impressionado

com a perfeição do trabalho que fizera

e ainda alguns retalhos lhe trouxera...

Com um sorriso, o doutor lhe agradeceu:

“Guarde os retalhos, boa costureira!

Para outra obra bem poderão servir;

ninguém obra melhor lhe poder-ia pedir!”

Porém daí a semana, Sattiabul

caiu de febre de novo, gravemente...

Pensou em voltar, mas fora advertida

de que essa peste que subira desde o sul

não teria cura, caso houvesse recaída;

mesmo assim, não se deu ela por vencida

e foi ao templo, suplicar pela acolhida

de um velho saddhu, que atendia a gente. (*)

Mahendra fez preces e chás administrou;

depressa Sattiabul de novo se curou!...

(*) Homem santo, asceta; também faquir.

A ÁGUA DA VIDA IV

Sinabali quis pagar ao sacerdote

e este sorriu: “Pague-me com seu trabalho;

limpe este altar erguido à deusa Umma;

vida e saúde são seu eterno dote;

assim as cinzas do altar ela limpou

e num saquinho para casa as transportou...

Tomada de um impulso ou de ato falho,

misturou-as com água e, na olaria,

um pote fabricou, como o marido antes fazia...

Mas logo viu o retorno da doença

e retornou o sacerdote a consultar,

que abanou a cabeça, tristemente:

“Lamento despojá-la de sua crença,

mas dessa febre a recaída não tem cura;

veio buscar meu filho a deusa impura;

lamento também o seu queira levar...”

E assim Sinabali retornou, desconsolada,

vendo a criança definhando de adoentada...

Porém não desistiu. Foi em busca de Kalinda,

a velha bruxa, com sua terrível fama...

E esta lhe disse: “Só com Amrita, a Água da Vida.

Deixe a criança aqui, será bem-vinda;

não morrerá, se retornar dentro de um mês!

Vá empós Lakshmi, que a atenderá por sua vez;

daqui suplicarei e ela será compadecida;

leve esta palha de minha própria cama

e lhe indague como está a minha filhinha;

a febre mesmo de minha casa se avizinha...”

“Siga até o rio e chame a Tartaruga;

explique a ela que fui eu que a mandei,

pois deve-me favores e por certo a levará;

mas como o casco assim ela lhe aluga,

também favor lhe pedirá ao regressar...”

Partiu Sinabali, as palhinhas a trançar,

chamando a Tartaruga que nessas águas há.

“Sem dúvida a Kalinda hoje satisfarei;

monte em minhas costas através do rio;

firme-se bem, que está bastante frio!...”

A ÁGUA DA VIDA V

Realmente, as ondas pareciam geladas

e a pobre Sinabali se encolhia,

mas então seu equilíbrio fraquejava,

tinham as pernas de serem esticadas...

Trazia sempre nos braços sua cestinha,

o pote feito de cinzas e nele até a fraldinha

que com os restos da camisa costurava...

Sempre mais largo o rio lhe parecia:

“Grande Kurma, para onde está nadando?”

“Para Kaumudi, onde Lakshmi está morando...”

“Pensei Kaumudi ser apenas o luar...”

“E onde mais ela morar você queria?

Pelo luar suas seis Gunas distribui,

seis qualidades divinas a nos dar,

deusa da vida, da força e do vigor,

a companheira de qualquer ato de amor,

os Quatro Alvos da Vida ela possui,

para Dharma e para Artha é nossa guia

e sobre Khama preside ela também

e esparge Moksha para o nosso bem...” (*)

(*) Dharma é o dever e a virtude; Artha, a saúde, a carreira, a habilidade;

Khama é o desejo, anseio, esperança; e Moksha o autoconhecimento

que conduz à libertação e emancipação da Sansara.

A pobre mãe de religião não entendia,

queria apenas alcançar a rara cura

para Sattiabul e o tempo se ia passando;

que se esgotasse o mês ela temia...

Mas chegaram até a praia, finalmente

e agradeceu a Kurma, humildemente.

“No seu caminho de mim se vá lembrando

e peça a Lakshmi que me envie bênção pura,

que em seu retorno você me entregará.

Sem falta Kurma por você esperará...”

“Leve uma lasca de meu casco em oferenda,

repasse a Lakshmi meus sinceros cumprimentos....”

Havia um Lobo parado junto à margem.

“Kalinda ordena que você atenda

a esta senhora, que busca a Água da Vida...”

“Pois suba logo, que a planície percorrida

será por mim depressa e sem vadiagem...

Sobre meus lombos encontrará amplos assentos:

firme-se bem, pois bem longa é a distância,

mas a percorro desde os anos de minha infância!”

A ÁGUA DA VIDA VI

Sinabali o envolveu em forte abraço;

partiu o Lobo, correndo velozmente,

saltando as poças e cobrindo os pastiçais,

firmes seus braços como um forte laço,

até chegarem a uma terra pedregosa,

já no planalto, em que aguardava uma Raposa.

“Leve uns fiapos de meus pelos naturais

como oferenda para a deusa tão potente;

por seu retorno aqui aguardarei

e de Lakshmi pela bênção esperarei...”

Montou Sinabali nas costas da Raposa,

que depressa a transportou pelo planalto.

“Firme-se bem, não a deixarei cair,

mas fale bem de mim à Dadivosa,

que me transmita vida em recompensa

por esta boa ação em sua presença...”

O terreno não parava de subir...

Logo a Raposa resfolegava alto,

quando encontraram uma Cabra Montês.

“Siga com ela, que já gastamos meio mês!...”

“Retire de minha cauda um bom chumaço

e o leve a Lakshmi como honesta oferta,

que aqui no aguardo de bênção ficarei...”

Sinabali agradeceu com firme abraço,

os pelos a guardar em sua cestinha,

junto com as outras oferendas que ali tinha.

“Pela falda da montanha a levarei!...”

As costas lhe mostrou a Cabra esperta;

desta montada já tinha mais receio,

pelos abismos que encontrava de permeio...

Chegou, enfim, ao pico da montanha.

Disse-lhe a Cabra: “Aqui esperarei;

leva a Lakshmi uma apara de minhas unhas,

espero a bênção que da deusa só se ganha...”

“Mas como posso chegar à Abençoada...?”

“Virá o Corvo para abrir-lhe a estrada...”

Logo a ave negra rasgou do céu as cunhas:

“Monte em mim, que o caminho indicarei...”

E a boa mãe fez das tripas coração:

como o Corvo cumpriria essa missão?...

A ÁGUA DA VIDA VII

De fato, ela era maior que a montaria!

Notou que o Corvo então as garras cravava

no que lhe parecia pleno ar!

Sequer as asas bater-lhe percebia,

tal e qual se caminhassem por escada!

Sinabali sentiu-se assim maravilhada,

até que o Corvo suspendeu seu avançar

e firmemente sobre o ar pairava!...

“Chegou agora o momento do Pardal...

Desmonte aqui, não sofrerá o menor mal!”

A jovem desmontou, por mais medo que sentisse

e então notou sob seus pés a solidez...

Logo a seguir, apareceu-lhe um Pardalzinho!...

Tão pequenino! Impossível que subisse

nas costas frágeis da minúscula avezinha!

“Não temas,” disse o Corvo. “Uma peninha

arranca de minha cauda. É um presentinho

que levarás para Lakshmi em minha vez.

Caminha agora atrás desse Pardal,

que a escada encontrarás, sem qualquer mal!”

Lembrando apenas de seu grande amor

pelo filho doente, ela ascendeu,

degrau após degrau, pelo invisível...

Logo sentiu a força do calor

que transmitia o prateado do luar;

com mais confiança, continuou a galgar

pelas alturas da escada incompreensível.

E o Pardal finalmente lhe estendeu

um remígio de sua asa direita, (*)

qual outra prenda a Lakshmi sujeita...

(*) Uma das penas longas da ponta das asas.

Mas, e agora? Solta em pleno espaço,

sem os degraus que lhe indicara o Pardalzinho!

Então à deusa a sua vida encomendou,

descendo um raio de luar em fino traço,

puxado aos poucos por uma Mosquinha!

Ela agarrou-se, então, ao fio de linha

e mais degraus, aos poucos, encontrou

até chegar bem no alto do caminho,

pisando em grossas nuvens de algodão,

quais fios de prata em frágil armação...

A ÁGUA DA VIDA VIII

E lá estava, em seu trono de luar,

a santa Lakshmi, em lótus envolvida,

que lhe acenou, em gesto sorridente...

A pouco e pouco, ela ousou se aproximar,

sentindo a bênção que dela se emanava

nessa voz meiga com que lhe falava:

“Fiel Sinabali, sei teu esforço ingente

e tua prece encontrou em mim guarida;

destarte te enviei meus emissários

e de mim receberás meus dotes vários...”

“Para ti e para quantos te auxiliaram

demonstraste a maior perseverança

e aqui chegaste movida por coragem;

por isso as súplicas mudas me encontraram.

Porém te aguarda uma nova provação,

pois o Amrita não te darei nesta ocasião,

mas a Água da Cura em vassalagem,

pois teu retorno ainda mais te cansa:

não poderás beber gota sequer

e nem falar, que o encanto assim requer.”

“Agora chega até mim, para meu beijo:

colocarei a água santa na tua boca

e assim a levarás todo o caminho!...

Avança agora, pois terás só este ensejo!”

Sinabali ao santo beijo se atreveu,

que o santo liquido sua própria boca encheu.

“Teu filho beijarás com o meu carinho

e desse beijo de esperança louca

ele há de usufruir de longa vida

e também tu, que a dor levaste de vencida!”

Depois Lakshmi chamou a si a Mosquinha

e com um só gesto a transformou em Moscardão,

maior ainda que magnífica cegonha;

seu luar em torno dela se avizinha:

“Terás as bênçãos para os demais ajudadores!

E na cestinha, meus divinais pendores!

Agora monta, sem ter nojo ou vergonha;

se obedeceres, sem qualquer hesitação,

irás cumprir inteiro o teu dever,

muito embora no caminho hás de sofrer!”

A ÁGUA DA VIDA IX

Ela montou no dorso da Mosquinha,

asas azuis batendo com zumbido

e então desceu, em direção à Terra;

quando o Pardal da Mosca se avizinha,

deixou cair sobre ele uma virtude

e fez o mesmo para o Corvo, que o escude

de outros perigos desde o alto dessa serra;

Para a Cabra outro bem foi estendido

e a cada um dos demais ajudadores,

de longa vida e prazer santos penhores!

E sem demora, chegou até a casinha

em que a esperava Kalinda, a feiticeira;

ela entrou sem uma palavra proferir,

dando ao filho essa água que continha

dentro da boca, por tempo interminável;

logo a criança lhe mostrou sorriso amável,

cheia de vida, do líquido ora a se nutrir...

No mesmo instante, qual bênção derradeira,

o Moscardão transformou-se na menina

que à boa Kalinda como bênção se destina!

Saíram dali os quatro de mãos dadas

até o templo em que aguardava o sacerdote

e diante dele o estranho pote ela quebrou,

em vasta nuvem as cinzas espalhadas,

permeio às quais logo se materializou

o próprio filho por quem tanto ele aguardou!

Rendendo graças, o padre a abençoou...

Sinabali carregou o último dote,

para entregá-lo ao doutor, que lhe falasse,

que no túmulo da mãe ele a plantasse!

Reunidos os sete perante a cova da mulher,

uma mandrágora cresceu logo dentro dela (*)

e em breve tempo transformou-se em Eileen,

o médico todo incrédulo sua filha a receber.

“Pai, hoje eu voltei por que chegou-me a hora;

eu não queria que Mamãe se fosse embora!...”

Cumpriu-se assim toda a magia bela:

quatro crianças ao mundo retornaram

que as garras da peste antes roubaram!...

(*) Segundo a lenda, raiz que dá fertilidade ou se transforma em criatura

humana. Também chamada de ginseng.

EPÍLOGO

Os quatro adultos então se combinaram,

enquanto viam brincarem as crianças.

“Guardo minha filha,” disse a feiticeira.

“Moro afastada e poucos duvidaram

do meu poder.” Disse o mesmo o sacerdote:

“Noutro mosteiro foi desenvolver seu dote:

minha palavra aceitarão por verdadeira.”

Disse o médico: “Recobrei minhas esperanças,

mas todos sabem que Eileen desapareceu;

contar não posso o que lhe aconteceu...”

“Vou retornar, então, para minha terra;

permissão me darão meus superiores

e o ataúde de minha esposa eu levarei.

Sigo, portanto, de retorno à Inglaterra,

sem revelar o milagre acontecido,

em um lugar assim distante do ocorrido.

Sinabali, caso o aceite, eu a contratarei,

com seu menino, como meus dois servidores...”

Eventualmente, os dois adultos se casaram

e as duas crianças, no final, se enamoraram...

Mas o poder de Lakshmi, a Fada Lua,

até hoje em sua casinha se cultua...