O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA
(Adaptação e versificação de lendas dos índios Navajos,
do Oeste dos Estados Unidos, apud Roger Zelazny em EYE OF CAT,
por William Lagos, 21 mai 15)
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA I (*)
Antes que Nayenezgani aqui vivesse,
junto a Tobalzichini, seu irmão
ou que o Primeiro Homem aparecesse,
os minerais dominavam a região:
os montes e os rios tinham consciência,
e os animais suportavam com paciência.
Assim narrava o velho Azaethlin,
o “Homem dos Remédios”, nessa noite,
de seu cachimbo subindo aos céus, assim,
volutas de fumaça em brando açoite,
enquanto os jovens e os adultos o escutavam
e a seu redor atentos se assentavam...
Das velhas tradições repositório,
seu nome “Urso de Ferro” (traduzido),
as rugas de seu rosto o ostensório
do mundo antigo há muito já perdido,
velho Navajo de coração aberto,
conhecedor dos desvãos de seu deserto.
Não se negava as lendas a narrar,
mas tão somente quando a hora o propiciava,
sem querer velhos espíritos acordar,
em noite aziaga, quando o vento mau soprava;
mas quando as chamas se alteavam sobre o fogo
bem facilmente aceitava cada rogo...
(*) A pronúncia correta dessa palavra Navajo é “caiôute”.
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA II
O Primeiro Homem não demonstrou alegria
ao ser criado nesse mundo escuro,
com oito outros, cada qual de uma etnia,
mais os insetos, de espírito obscuro,
os Besouros, Gafanhotos e Formigas
a percorrerem essas plagas tão antigas...
Mais o Coyote, a quem logo encontraram
e então chamaram de “Velho Cão Zangado”, (*)
das águas a surgir logo notaram,
magro e faminto, olhar sempre aguçado,
que os tentou enganar desde o começo,
para o Povo eterna pedra de tropeço...
E assim foi, através das artimanhas,
pretendendo lhes trazer mais alimento,
que aos homens convenceu, em falsas manhas,
a criar Libélulas e o Caracol nojento;
pois as Vespas e os Morcegos vêm então
atormentá-los com sua vasta geração...
Logo surgiu ali o Velho Aranha
e a Aranha Fêmea, bem mais ardilosa;
ficou o local repleto por tal manha,
picando humanos com ferroada poderosa.
E então falaram ao Primeiro Homem:
“Vamos embora, esses bichos nos consomem!”
(*) Por “Velho”, os Navajos indicam o “Ancestral”, o primeiro de sua raça.
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA III
O Primeiro Homem já aprendera a conversar
com as Conchas e Pedras mais conscientes
e uma aliança acabou por completar
com as Conchas Brancas, de surgir frequentes,
com a Abalone, o Ônix e a Turquesa
e o Arenito em seus mil veios de beleza.
Com cinco amigos completada a aliança,
o Primeiro Homem colocou a Concha Branca
voltada para o leste e depressa se abalança
a soprar sobre ela e assim estanca
seu movimento, em nuvem transformado,
qual torre branca erguendo-se a seu lado.
Tomou a Turquesa e a colocou no sul,
mais uma vez soprando sobre ela,
surgindo torre de fumaça azul
e entre as duas Primeiro Homem se encastela;
depois tomou a Abalone bela,
de que surgiu então torre amarela,
a proteger assim o lado oeste;
depois o Ônix colocou ao norte,
dele surgindo uma torre de negror;
branco e amarelo numa união bem forte
e o logo o negro com o azul se unia,
surgindo assim a Noite após o Dia.
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA IV
Então ele colocou o Arenito,
branco e vermelho no centro desse espaço
e após molhá-lo com seu hálito bendito,
de uma torre multicor surgiu o traço
e a cada torre que seu sopro tome,
Primeiro Homem deu seu primeiro nome...
A torre leste foi Dobrada Aurora;
chamou depois de Dobrado Céu Azul,
sem perder tempo nessa arcana hora,
àquela torre que se erguia para o sul;
foi Crepúsculo Dobrado a torre oeste;
Dobrada Escuridão ao norte investe.
Mas enquanto Primeiro Homem descansava,
chegou Coyote, o velho enganador,
e logo cada torre visitava,
de cada vez mudando a própria cor
e assim filho se tornou de cada torre,
no mimetismo que seu corpo forre...
Por isso o chamam de Filho da Aurora
e de Filho do Crepúsculo também;
Filho do Céu Azul em sua mediana hora,
Filho do Escuro e de quanto ele contém.
E a cada torre que o Coyote visitava,
seu poderio facilmente ele ampliava!...
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA V
As quatro torres nos pontos cardeais
eram santas e as mães das orações,
mas a do meio, com tantas cores mais,
englobava tão somente maldições:
ela trazia em si todas as dores,
as doenças, os males e os terrores!...
Porém Coyote convenceu Primeiro Homem
que era o caminho para o Segundo Mundo;
aqui devemos subir, antes que o tomem
os insetos, com seu vasto mal profundo;
e por ali o Povo foi subindo,
ao Primeiro Homem o Coyote conduzindo...
E assim galgaram até o Segundo Mundo,
mas junto a eles também subiram males;
e o encontraram habitado por fecundo
grupo de monstros, nos montes e nos vales;
Primeiro Homem, porém, os combateu
e um a um, os derrotou e venceu!...
Mas antes que Coyote os devorasse,
Primeiro Homem tomou as canções de seu poder,
que no fundo de sua mente bem guardasse
de modo tal a nunca as esquecer...
Mas este era um lugar de sofrimento:
gemia o Povo num vasto desalento...
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA VI
Primeiro Homem então criou fumaça
e a soprou, na direção do Oriente,
engolindo-a de novo; e assim se passa
com cada ponto cardeal, tirando à gente
essas tristezas que lhes sobrevinham,
que então soprou para o mundo de onde vinham.
Primeiro Homem ao Raio colocou,
bem firmemente, na direção do leste
e ao Arco-Íris e ao Sol posicionou
junto dele e seu poder investe;
porém não houve o menor resultado
e assim os colocou já do outro lado.
Depois os pôs nos demais pontos cardeais:
tremeu o mundo, mas sem grande poder;
apelou para a Aliança, uma vez mais,
formou coluna de vasto parecer:
Ônix, Concha Branca, Abalone e Turquesa
e o Arenito, qual coroa de princesa...
Então ergueu-se ao alto o Arenito
e ao Povo inteiro consigo levou,
mas o Terceiro Mundo era maldito,
cheio de Cobras e o Povo lastimou;
e havia temíveis Formigas de Fogo,
cuja picada ardia e inchava logo!...
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA VII
E ali acharam-se, também, o Deus do Fogo
e o Deus do Sal, em companhia da mulher;
Primeiro Homem ali ergueu seu rogo,
lançando duas faixas de luz a combater:
uma vermelha, outra de cor amarela
e o Deus do Fogo contra elas se encastela.
Só então surgiram a Coruja e a Raposa,
o Lobo, o Jaguar e a Cascavel,
que uma joia lhe ofereceu, formosa,
trazida em sua cabeça qual broquel,
agradecendo contra o Fogo a proteção:
futuros totens de nossa geração!...
Mas o Coyote, por malícia pura,
contou ao Povo que Primeiro Homem só vencera
o Deus do Fogo por malícia e diabrura
e em troca a grande joia obtivera;
assim o Povo que ele fosse mau pensou
e em seus hogans contra ele murmurou!... (*)
(*) Cabanas, ocas.
Que fosse a causa de seus males e a razão...
E com um sorriso a lhe arreganhar os dentes,
deu o Coyote ao intrigar continuação:
ao Primeiro Homem contou as queixas existentes;
porém ficando em sua presença todos quietos,
Primeiro Homem dirigiu-se a seus bisnetos.
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA VIII
“Que eu sou mau nos seus hogans murmuram
e não há dúvida quanto à minha maldade,
mas a troquei por mágicas que curam,
em benefício de toda a humanidade,
porque as canções que se canta contra o mal
eu cantarei, na proteção mais triunfal!”
E assim tornou-se o primeiro dos Azaethlin,
os remédios distribuindo e sua magia;
com suas canções afastou seu mal, enfim,
cura final contra quanto os afligia...
Porém o Coyote tudo viu e teve medo,
retirando-se dali quase em segredo...
Mas sua malícia não conseguiu conter
em suas andanças de infiel enganador,
na vida alheia sempre a língua a intrometer,
mentindo a alguns com palavras de louvor,
com falsidades provocando a dissensão,
Velho Coyote, pai da Mentira e seu irmão!
Um dia, ele encontrou o Rochedo Viajante,
Tsê Nagahai, tranquilo e quieto, geralmente,
à luz do sol em modorrar constante,
nos pensamentos, porém, sempre consciente
e o Coyote achou muito divertido
que um rochedo tivesse algum sentido...
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA IX
E foi passando ali, constantemente,
fazendo troça de sua imobilidade,
coçando as costas, urinando até frequente,
o Velho de Pedra a suportar com equidade...
Certo dia, pintou na rocha uma careta,
trazendo argila de qualquer grota secreta.
“Velho de Pedra, você está com cara feia!”
E finalmente, o Rochedo replicou:
“Não me agrada essa cara... Ela me peia.”
“Você é imóvel mesmo,” o outro falou.
“Por que não vai até o arroio se lavar?
Sem movimento, nem consegue se esticar!”
“Reparo agora que você está careca!”
Subindo ao alto do penhasco, defecou!
“Dei-lhe cabelos marrons como uma beca!...”
Novamente, o Homem de Pedra protestou:
“Velho Coyote, você vem me perturbando,
contudo agora já me está desrespeitando!...”
“Pois vou fazer na sua base uma fogueira,
para nela cozinhar o meu jantar
e depois trazer água fria na chaleira:
jogo no fogo e você vai se arrebentar!... (*)
Mas primeiro, eu vou caçar sem pressa,
só não se espante se eu voltar depressa!...”
(*) Quando uma pedra é aquecida e esfriada de repente, em geral, racha.
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA X
“Sabe o que mais? Pois vou caçar também!”
disse Tsê Nagahai e então moveu
as suas raízes, com que no solo se sustém.
O Velho Coyote para trás retrocedeu.
“Não, espere, era tudo brincadeira,”
disse o intrigante, já com certa tremedeira.
E começou logo corrida bem ligeira...
Naturalmente, se movia bem depressa,
mas Tsê Nagahai desceu uma ladeira
e muito embora fosse rocha bem espessa,
foi aumentando a sua velocidade,
largo caminho rasgando, na verdade!...
E se vendo perseguido, já bem perto,
correu o Coyote até o Velho Leão:
“Homem de Pedra me persegue em campo aberto,
posso esconder-me em sua toca, meu irmão?”
“Está brincando?” – disse o Leão da Montanha.
“Não vou virar gato amassado por sua manha!”
Ao Velho Urso foi o Coyote procurar:
“Meu irmão, hoje me segue um inimigo!
Você não pode, por favor, vir me ajudar...?”
“Ora, eu temo poucas coisas, meu amigo!”
disse-lhe o Urso – e então a rocha percebeu.
“Essa é uma delas!” – e depressa se escondeu!
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA XI
“Mas de que modo escapar conseguirei?”
“Corra depressa e filosofia estude...”
“Minha malícia toda eu já gastei!...
“Resignação com seu destino que o escude!”
O Velho Coyote aumentou sua rapidez;
Homem de Pedra apressou-se, por sua vez!...
Foi ao Velho Búfalo, então, pedir socorro:
“Ai, Velho Búfalo, estão me perseguindo,
com seu rebanho me proteja, senão morro!”
O Velho Búfalo logo notou o que vinha surgindo.
“Apoio moral completo eu lhe darei,
mas meu rebanho para longe eu levarei!...
Cruzou Coyote o rio, rapidamente,
até o pouso de um bando de Gaviões.
“Velho Gavião, estou a fugir inutilmente!”
“Que bem merece, lembro de outras ocasiões!”
“Se me ajudar, serei sempre seu amigo
e o ajudarei contra o Homem inimigo!...”
“Está certo,” concordou o Velho Gavião.
“Tsê Nagahai não tememos, nós voamos!...”
Saiu o bando todo, em vasta agitação;
batendo as asas os tais gaviões americanos
foram quebrando o Rochedo em fragmentos,
alacremente a provocar descascamentos!...
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA XII
Em pouco tempo, o Rochedo desmancharam
a nada mais que uma pilha de pedrinhas...
E do Coyote sua promessa reclamaram.
“Foi brincadeira, queridas avezinhas,
eu nunca estive em um real perigo:
Homem de Pedra jamais foi meu inimigo!...”
“Não nos demonstrará o agradecimento...?”
“Por que faria, se não ganhei nenhum favor?”
“Pois muito bem, aguarde só um momento...”
E a um sinal de seu Chefe, com fervor,
os Gaviões cada pedrinha recolheram
e com cuidado, no lugar as repuseram...
Assim que o pobre Rochedo Viajante
se percebeu novamente recomposto,
mais uma vez, em marcha pôs-se avante...
O Velho Coyote logo atingiu para seu gosto:
na rapidez de seu pesado porte
ao intrigante esmagou até a morte!...
Os Gaviões, lá do alto, contemplaram
a cena inteira, para seu divertimento;
restos de ossos e carne ainda bicaram,
porém os pelos afastaram-se no vento...
“O Velho Coyote fez sua última tolice,”
Velho Gavião para seu povo disse...
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA XIII
Tsê Nagahai, então, tornou-se mau,
tudo ao redor de si esmigalhando,
acrescentando a si cada calhau,
sem os Gaviões poder ir alcançando...
Mas então o deserto foi abrindo,
a vida inteira, aos poucos, destruindo...
Primeiro Homem chamou os Irmãos Guerreiros,
Tobalzichini e o feroz Nayenezgani,
para dos homens proteger os derradeiros...
Cada um deles nove Monstros bane,
poupando apenas Velha Serpente Sem Fim,
reservada à função futura assim...
Mas essa é outra história, meus amigos,
agora é a vez de lembrar Tsê Nagahai...
Mataram os irmãos seus inimigos,
Zipecna e Cobracán, sem sofrer ai,
e Sete Araras, o maior desses gigantes,
para outras lendas razões interessantes...
Saiu em busca do Rochedo Viajante
Nayenezgani, o Grande Caçador;
quando chegou a um lugar a seu talante, (*)
oito facas embutiu, com grande ardor,
naquele solo duro e pedregoso,
indo atiçar seu inimigo, pressuroso...
(*) A seu gosto, adequado a seu propósito.
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA XIV
Duas Facas Negras ali ele plantara,
após as lâminas cruzar em sua magia;
mais adiante, Facas Azuis ele enterrara
a uma distância; e em enviesada via
duas Facas Amarelas e, no fim,
duas Facas de Serra cravou no chão, enfim...
Só então fora a Tsê Nagahai desafiar:
“Você não ataca a gente de minha raça?
Quer apenas aos inermes esmagar?”
Um frêmito ao Rochedo então perpassa:
moveu-se, inicialmente, devagar,
para súbita velocidade demonstrar...
Mas Nayenezgani desviou-se, facilmente
e correu na direção de sua armadilha...
Sobre as Facas Serrilhadas, de repente,
deu grande salto, como de ilha em ilha!
Tsê Nagahai, porém, não desviou
e dele um largo pedaço se quebrou!...
Nayenezgani continuou a correr
e então pulou sobre as Facas Amarelas!
Seu perseguidor passou, sem perceber:
perdeu pedaços, expondo suas costelas!
Quando saltou sobre as Azuis o Caçador,
Tsê Nagahai já desgastara o seu ardor...
O COYOTE E O HOMEM DE PEDRA XV
Agora a pedra já se balançava,
perdida a maior parte de sua massa
e as Facas Negras o Caçador pulava,
esperando que a rocha se desfaça...
Voltou-se então sobre ela, em sopetão,
só um pedregulho restando sobre o chão!...
E ao ver que vinha sobre ele o Caçador,
o Rochedo Viajante bem depressa desviou
e rolou velozmente, em seu pavor!...
Nayenezgani nem ao menos se apressou,
pois já perdera sua anterior sabedoria
a pedra antiga e pouca vida ainda trazia...
Finalmente, apanhou-a o Caçador
e a colocou bem no fundo do embornal.
“Pouca virtude te resta, meu senhor,
e certamente não mais podes fazer mal...
Mas ainda serves para acender fogueira
e assim te chamo de Pedra Pederneira!...”
E os Navajos, até os dias de agora,
usam a pedra para acender seus fogos;
com uma varinha de metal batem na hora
e surge a chama, sem maiores rogos...
Vencido fora esse terrível inimigo,
tornado escravo para o Povo Antigo!...
EPÍLOGO
Voaram os pelos do Coyote ao vento;
o Leão, o Urso e o Búfalo os juntaram,
chamando o Pai Gavião nesse momento
e todos juntos, nova vida lhe assopraram;
por isso, vive de novo o Enganador,
muito mais fraco, porém, no seu ardor...
“Na Yá!... Na Yá!...” – clamou o Azaethlin.
“A nossa história aqui termina assim!...”