A GATA E A RATINHA
A GATA E A RATINHA
Conto popular irlandês, adaptado e versificado por
William Lagos, 29 Abril 2015
A GATA E A RATINHA I
Havia uma curandeira, chamada Llewellyn,
um nome estranho, já que era masculino,
mas a gente com ela estava acostumada
e tal apelido nem estranhava mais;
era parteira e auxiliava assim
no nascimento de qualquer menino
ou menina que deixasse atrapalhada
a sua mãezinha, demorando por demais...
O povo inteiro também a consultava
pelos remédios herbais que fabricava...
Contudo, só aos pobres auxiliava;
não tinha os ricos por merecedores
e até mesmo tinha raiva dos ingleses
que nessa época dominavam a Irlanda.
Dessa forma, sempre pobre continuava
e repelia oficiais e mercadores
com essas pragas que conhecem irlandeses,
que os considerava de índole nefanda...
Mas mesmo assim, ninguém a perseguia,
já que o respeito do povo merecia...
Mas mesmo para a gente que atendia
ela falava com jeito de aspereza,
sem procurar de ninguém a amizade,
mesmo curando, na medida do possível,
com as poções de ervas que fazia,
sem esperar recompensa, com certeza,
mas apenas encontrar sinceridade,
um dom de raridade mesmo incrível,
segundo a velha Llewellyn acreditava
e pouco ou nada de outrem esperava...
Só meia dúzia contava como amigos,
mas dentre estes havia um caçador,
chamado Haroldo, que sempre a visitava,
caça trazendo desde que era criança,
já enfrentando da mata mil perigos,
que com bodoque apanhava com ardor
os coelhos e perdizes que apreciava,
dividindo com a velha a sua bonança.
Cedo aprendera a usar o arco e flecha,
para de caça maior abrir a brecha...
A GATA E A RATINHA II
Eventualmente, ele comprou um arcabuz,
podendo agora caçar os javalis,
de vez em quando, até alguns veados
que encontrasse à solta nas pastagens;
mas por mais que esta caça lhe seduz,
poderia até torná-lo um infeliz,
pois para os nobres eram reservados,
se encontrados das reservas nas paragens;
quando os caçava, era sempre à luz do dia,
certificando-se de que alguém veria.
Que em seu favor fosse testemunhar
que não fora nas reservas abatida;
com as testemunhas a carne dividia,
para Llewellyn sempre dava bom pedaço,
o restante para casa ia levar,
para sua mãe, já de velhice consumida,
para seu pai, que no campo ainda carpia
e ali o ajudava também por bom espaço;
mas igualmente ele curtia cada couro,
cuja venda lhe rendia um certo ouro...
Ora, ali morava um rico fazendeiro,
com uma filha, Cecília, muito bela
e cobiçada por numerosos pretendentes,
de suas terras herdar esperançosos;
mas seu amor era por Cecília verdadeiro
e tinha a certa correspondência dela,
o que deixava aos outros descontentes,
das boas graças alcançadas invejosos...
Logo dois deles um ardil arquitetaram
e ao Vice-Rei da Irlanda o denunciaram.
Disseram ser um caçador furtivo,
atrás dos gamos na área das reservas,
um crime que merecia enforcamento
ou então o corte de sua mão direita,
estando o juiz de bom-humor no crivo.
Podia o maneta ainda arrancar ervas,
por mais triste que lhe fosse o passamento,
porém menor pena não se aceita
e denunciado pelos caluniadores
o pobre Haroldo passava por terrores!
A GATA E A RATINHA III
Terrível dor sofreu então Cecília,
que dirigiu-se até a curandeira
que com Haroldo tinha boa vontade,
conforme antes ele já contara...
Cheia de raiva, a velha os dentes rilha:
“Isso é mentira de tal gente traiçoeira!
Darei um jeito de castigar a sua maldade,
mas precisarei de sua ajuda, minha cara!
Está disposta a vir aqui à meia-noite,
da escuridão a enfrentar o frio açoite...?”
“Por Haroldo, faço o quanto precisar!”
declarou-lhe Cecília, firmemente
e nessa noite, recolheu-se cedo,
até uma hora antes da meia-noite,
quando se ergueu, sem a família despertar,
colocou manto e saiu furtivamente;
sem uma lamparina, caminhou em segredo
e partiu para Llewellyn com afoite,
pelo escuro caminhando meia hora,
até chegar à choupana sem demora!...
Bateu à porta e recebeu ordem de entrar,
encontrando ocupada a feiticeira,
a traçar figuras místicas no chão,
dentro de grande círculo de giz...
Disse Llewellyn: “Ninguém a viu passar?
Venha aqui, sentar-se à minha lareira...
Deve-lhe ter sido grande provação
caminhar nesse frio sob o céu gris...”
“Nada encontrei no caminho, fui prudente,
Somente árvores deparei à frente...”
“Embora alguma vez me parecesse
que elas tentassem a passagem me impedir,
que não chegasse do bosque ao coração,
mas era o vento que os ramos açoitava...”
“Talvez a mata se compadecesse
dos perigos que acharás no teu porvir
e não quisesse que os enfrentasses sem razão;
ou algum feitiço que a maldade dominava...”
Cecília viu de pé uma ampulheta
E a seu lado uma varinha se projeta...
A GATA E A RATINHA IV
“O povo diz que a senhora é feiticeira,
mas varinha de condão não têm as fadas?”
“Eu só faço para o bem encantamentos,
mas forças místicas tenho de invocar;
sei que és donzela pura e verdadeira;
temos as duas de ficar bem preparadas,
pois teremos de enfrentar certos portentos
e certamente não te podes acobardar...
Mas os perigos à nossa frente é que estão,
de te assustares por aqui não há razão...”
“Senhora, já lhe disse que faria
por meu Haroldo o quanto for preciso...”
“Para o centro do círculo vem, então,
que nos protegerá dos malefícios.”
E ao ver que Cecília obedecia,
sem demonstrar um ânimo indeciso,
a herbanária, sem mais hesitação, (*)
foi invocar dos santos os benefícios
contra más ações de criaturas do mal
que ali subissem das trevas do infernal!
(*) Fabricante de remédios à base de ervas.
E pronunciando fortes esconjuros,
frases arcanas de vasto encantamento,
disse-lhe a fada: “Terei de transformar-te
em um animalzinho bem pequeno,
que andar possa por estreitos furos
e perigos enfrentar em tal momento:
reza primeiro, para preparar-te...”
Cecília respondeu com leve aceno
e Llewellyn a tocou com sua varinha,
transformando-a assim numa Ratinha!...
Era uma Ratinha Branca, certamente,
com olhos de rubi, longo rabinho,
mas conservando humano entendimento
e de algum modo, conseguia falar...
Pois informou-a a fada, incontinenti,
“Vou transformar-me também em um bichinho,
mas bem maior que tu, neste momento,
porém não tens qualquer razão para recear,
pois mal algum pretendo te fazer,
serei maior para assim te defender!...”
A GATA E A RATINHA V
E transformou-se numa grande gata,
quase negra, mas com manchas cinzentas.
Cecília soltou um guincho de pavor;
tentou fugir, porém logo o seu rabinho
ficou bem preso por uma forte pata.
“Não fujas de mim, se é que intentas
de algum modo libertar o teu amor!...”
Ainda tremendo, aquietou-se o animalzinho.
“Vamos agora visitar o Vice-Rei,
antes que cumpra o que lhe manda a lei!”
Foram as duas correndo pela estrada;
era o caminho por demais comprido
e a Ratinha Cecília se cansou...
A Gata Llewellyn então deu um chiado:
“Sobe às minhas costas e fica agarrada!
Caso contrário, tudo está perdido!...”
Para o dorso da gata ela pulou,
que já pulava, tal qual pássaro alado,
saltando cercas, ribeirões e valos,
bem mais veloz até do que os cavalos!...
Logo chegaram à beira do castelo,
que se achava inteiramente iluminado
e a Ratinha se sentiu desapontada:
“Não me parece ser esta boa hora!”
disse ao ouvido da Gata, no seu zelo.
“O castelo está todo atravancado,
nossa missão será prejudicada...
Se me encontrarem, vão jogar-me fora!”
“Seria mais fácil alguém te matar!...
Mas fica quieta, não é hora de falar!...”
Logo a seguir, chegaram a um buraco,
grande o bastante para sua passagem.
“Este é o portão dos ratos, minha querida,
mas é estreito em demasia para mim;
terás de entrar, espremida como um naco
e eu acharei para mim outra portagem;
mas segue à frente, em cuidadosa lida,
até achares o Rei dos Ratos, lá no fim;
comunica-te com ele, no maior carinho,
que para Haroldo te indicará o caminho!”
A GATA E A RATINHA VI
“Enquanto fores a branca Ratinha,
entenderás dos ratos a linguagem
e poderás com eles conversar;
quando chegares à cela, finalmente,
dirás a Haroldo que és uma adivinha,
mas só com ele terás confabulagem,
que estás ali a fim de o libertar;
mas não lhe digas quem sejas, realmente,
pois falarei contigo em pensamento,
que a tanto possibilita o encantamento.”
“Agora eu tenho de ir até o salão;
o Vice-Rei oferece ali banquete
e o terreno eu vou te preparar,
mas agora deverás seguir sozinha!”
Cecília fez das tripas coração
e pela escura cova se intromete,
até uma luz, lá no fundo, ela avistar,
quando de outro banquete se avizinha!
Cecília de ratos sempre tivera medo:
Seria horrível penetrar em seu enredo!
O seu impulso era o de fugir depressa,
tão logo que em perigo se julgasse,
mas uma longa mesa ali encontrou,
ao redor dela, ratos às dezenas!...
Havia queijo, toucinho e carne espessa,
cada resto que aos humanos escapasse;
até garrafas de cerveja ela avistou,
que haviam alguns roubado a duras penas!...
Todos ali comiam e se alegravam
e seus guinchos prazerosos ressonavam!
Um rato gordo, sentado à cabeceira,
estava usando uma coroa de latão
e cada prato primeiro ele provava,
para ver se não continha algum veneno...
Ou era essa sua desculpa interesseira,
porque comia a sua maior porção
e só as sobras aos outros entregava:
que era seguro, afirmava com aceno
e logo atacava a iguaria seguinte,
restos de lixo, para eles um requinte!...
A GATA E A RATINHA VII
O aposento estava bem iluminado
por uma vela de sebo, com um cartaz:
“Só devorar se houver necessidade
e não houver nem um pingo de alimento!”
Viu um aviso na parede pendurado:
“ESTE É O NOSSO INIMIGO MAIS VERAZ!”
Mostrando um gato de grande crueldade.
E logo viu outros cartazes nesse evento,
informações para a roedora segurança,
até o ponto em que sua vista alcança...
“ARSÊNICO É DOCE, MAS CUIDADO,
PORQUE ELE JÁ MATOU MUITOS RATINHOS!”
“NÃO COMAM QUEIJO PRESO NAS RATOEIRAS!”
“CUIDADO COM GATOS QUE FINGEM DORMIR!”
“O FAMOSO GUIZO JAMAIS FOI PENDURADO!”
“GATOS SÃO OS CARRASCOS MAIS DANINHOS!”
“GATOS PROVOCAM MORTES BEM CERTEIRAS;
A ÚNICA SOLUÇÃO AINDA É FUGIR!...”
E assim por diante, viu Cecília, fascinada,
até avançar em frente, descuidada...
O ratão velho seu bigode ergueu
e viu Cecília na porta do aposento,
já pensando em fugir, a coitadinha!...
Mas ele a chamou, com grande autoridade:
“Venha cá!” – e Cecília o atendeu.
“Você não foi convidada para o evento!
Por que de nossa mesa se avizinha?
Quer ser nossa sobremesa, na verdade?”
“Ah, por favor, tenham pena de mim!
Meu dono é Haroldo e o quero achar, enfim!...”
“Quem é esse Haroldo?” – indagou o ratão.
“É o caçador que prenderam sem motivo!”
“Deve então ser o novo prisioneiro,”
comentou uma ratinha muito preta.
“Ele ontem me tratou com educação;
deu-me uma casca de pão esse cativo,
bem diferente do que fazem primeiro
esses outros, a quem a maldade afeta,
que se divertem com pedras a jogar,
com a intenção até de nos matar!...”
A GATA E A RATINHA VIII
“Bem, na verdade, não quero sobremesa
e se minha filha te mostrar o caminho,
permitirei que busques teu patrão...
Mas não irás sair daqui tão facilmente...”
Piscou para os ratos ao redor da mesa:
“Os grandes ratos roem o toucinho
com dentes brancos, cheios de paixão!”
“Repete a frase sete vezes, fielmente!
Se acertares, eu te deixarei ir,
caso contrário, não poderás fugir!...”
Pobre Cecília! Respirou bem fundo
e a sentença sete vezes repetiu,
ouvindo aplausos com contentamento.
Então lhe disse o velho Rei Ratão:
“Tens o meu consentimento mais profundo!”
A rata preta igual com a testa lhe assentiu.
“Não é preciso te levar neste momento:
segue aquele corredor, sem hesitação,
pela distância de cem caudas, nesta feita
e acharás outra passagem à direita!...”
“Segue por ela até o calabouço:
de mais cinquenta caudas a distância
percorre com cuidado e, sem errar,
verás a porta desse teu caçador!...
Roí um buraco para ver teu moço:
está saudável, porém nesta instância
o seu destino ele só pode lastimar!
E tem razão para sentir temor,
pois amanhã de manhã será julgado
e é quase certo que seja condenado!...”
“O Vice-Rei é um homem sem piedade,
logo terás de suportar mais longa ausência!...”
E se atirou sobre um prato de comida
que o rei seu pai havia descurado!...
Mas Cecília agradeceu a sua bondade
e o corredor seguiu numa cadência
de cem caudas de distância na corrida
e mais cinquenta, depois de haver dobrado...
E lá estava, de fato, o buraquinho,
pelo qual penetrou, bem de mansinho...
A GATA E A RATINHA IX
Subiu ao colo do seu namorado,
que a encarou, tomado de surpresa:
“Quem é você, Ratinha? O que me quer?”
“Sou uma adivinha e vim aqui para ajudar:
faze o que eu digo e serás libertado,
que o futuro eu predigo com certeza!
Mas a ti somente eu o poderei dizer,
para os demais terás de interpretar!”
No mesmo instante, da cela a porta abriu
e uma lanterna na escuridão luziu!...
Entrou um guarda junto ao gordo carcereiro
e logo a Haroldo os dois interrogaram:
“Você tem uma rata que adivinha?”
“Diga que sim!” – Cecília lhe guinchou.
Os dois lançaram mão do prisioneiro
e até o salão de banquetes o levaram,
perante a multidão que então se alinha.
O Vice-Rei, de imediato, o interrogou:
“Você é quem diz interpretar essa Ratinha
que traz ao ombro e que dizem adivinha?”
Cecília viu Llewellyn como gata,
dançando alegre por todo o salão,
sendo aplaudida pelos circunstantes;
bailou em pé até o Vice-Rei:
“É esse o prisioneiro com sua rata!
Interrogue-o e me dará razão,
dirá de fato o que lhe falei antes!”
“O que ela cochichar, eu lhe direi,”
falou Haroldo, mais cheio de si
permeio à luz que já encontrara ali...
“Então me diga se as naus de Espanha
virão nos invadir neste verão?”
Haroldo repetiu o que a Ratinha
chiou no seu ouvido: “Excelência,
elas virão, com grande pompa e manha,
porém os ventos as dispersarão,
na proteção de Deus para a Rainha,
que nos governa com graça e potência...”
Sorriu então para ele o Vice-Rei:
“Então me diga se eu o libertarei...”
A GATA E A RATINHA X
Guinchou de novo a Ratinha ao seu ouvido:
“Sim, Excelência, fui acusado falsamente
e como prova, hoje um tesouro mostrarei!”
Os falsos acusadores se agitaram...
“Ora, após ter o seu tesouro recebido,
dar-lhe-ei a liberdade, certamente!...”
“Pois bem, embaixo de sua cadeira lhe direi
que durante uma revolta se enterraram
dois cofres cheios de moedas de ouro,
na intenção de preservar esse tesouro!...”
O Vice-Rei, com desconfiança, o encarou,
mas mandou que trouxessem picaretas
e quatro lajes logo levantaram:
as duas arcas de ouro ali escondidas!
A Ratinha então ao ouvido lhe falou:
“Vai embora agora, enquanto bem projetas
essa fama de adivinho, já que acharam
bastante ouro para salvar dez vidas!
Não esperes o fim dessa epopeia,
que o Vice-Rei poderá mudar de ideia!...”
Assim Haroldo saiu em liberdade:
nenhum empecilho puseram à sua passagem;
a esta altura, já lhe surgira a aurora
e só então deu falta da Ratinha...
Pareceu-lhe ter sonhado, na verdade,
mas numa volta do caminho, na paisagem
achou Cecília, mais a amiga e boa senhora
e alegre delas depressa se avizinha:
“Mas como pude aqui as encontrar?”
“Uma Ratinha veio a nós duas avisar!...”
Mas atrás dele surgiram alguns soldados
e dos cavalos inútil seria fugir!...
Mas atirou-lhe uma bolsa o seu sargento:
“O Vice-Rei lhe manda recompensa!...”
Cecília e Haroldo seguiram abraçados,
o pai dela o casamento a permitir,
que uma fortuna recebera em tal momento;
tiveram ambos felicidade extensa,
por longa vida a sorte lhes luziu
e muitos filhos Deus lhes permitiu!...
EPÍLOGO
No outro dia, ao consultar a agenda,
o Vice-Rei viu anotado o julgamento
e mandou as testemunhas convocar,
que confessaram então a sua mentira...
“Esse rapaz no céu tem quem lhe atenda,
porém na falta de um belo enforcamento,
dois mentirosos irei hoje pendurar!...”
Ao longe, Llewellyn o seu castigo mira,
para depois à sua choupana retornar
em que prossegue o bem a praticar!...
William Lagos
Tradutor e Poeta
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