O CARACAL E O TIGRE
O CARACAL E O TIGRE
(Adaptação e versificação de dois contos populares hindus por
William Lagos, 8 abr 15)
O CARACAL E O TIGRE I
Era uma vez, na Índia, um caracal,
gato selvagem de dentes aguçados,
por animais menores evitado,
que não seja confundido com o chacal,
bem melhor conhecido no Ocidente.
Ora, um dia, em que o gatão passava fome,
entrou às escondidas em uma aldeia;
era de noite e não foi escorraçado,
a procurar alguma coisa que se come,
mas só encontrou alguns pares desbeiçados
de sandálias de couro, de fato, coisa feia,
bastante dura e de gosto indiferente!
Sentindo fome, as sandálias abocanhou,
sem consegui-las mastigar com os seus dentes!
Mas quis a presa de algum modo aproveitar:
nas grandes orelhas, por capricho, as pendurou
e foi troteando, até chegar à fonte,
onde ficou muito imóvel e à espreita,
até pousar ali um bando de perdizes!...
Com bote rápido, conseguiu uma pegar;
voaram as demais na mesma feita,
da companheira ao destino indiferentes,
pois só assim escapa o bando às crises
e na sua fome, o Caracal achou desconte!...
Lambeu os beiços e pôs-se novamente,
para outra caça a preparar uma emboscada;
chegaram uns esquilos a seguir,
para beber, chiando alegremente
e o Caracal um deles agarrou,
os demais a fugir, apavorados!...
O Caracal fez uma nova refeição
e se aquietou, na esperança de assistir
a chegada de alguns outros descuidados,
a sua paciência logo recompensada
no pouso lento de um belo faisão,
cujo pescoço igualmente abocanhou!
Sentindo agora sua fome satisfeita
e revestido de animal orgulho,
ficou olhando os ossos que sobraram
e na vaidade que lhe brotava ao peito,
juntou os ossos com porções de argila
e construiu assim um pedestal,
que esperou que se secasse ao sol
e depois que suas patas experimentaram
sua solidez, então subiu o Caracal
nesse trono improvisado com o esbulho
dos animais que matara no arrebol,
para espreitar a chegada de outra fila!...
O CARACAL E O TIGRE II
Tão imponente era agora a sua atitude
sobre seu trono de barro improvisado,
qual uma estátua, em sua imobilidade,
que enfim se pôs a exclamar, na voz mais rude,
aos demais que a beber se aproximavam
na precisão de matar a própria sede:
“Alto aí! Primeiro prestem-me homenagem!
Sou o Rei da Fonte e é minha a majestade!
Para o trono em que me acho, olhai e vede!
Não vou atacar a quem seguir o indicado:
Então repitam os meus versos com coragem!”
Só por espanto, todos o respeitavam!...
“De prata, ornado de ouro, é o pedestal!
Traz nas orelhas seus brincos portentosos!
É o Rei da Fonte e então rendemos homenagem
à Sua Majestade, o Caracal!...”
Como todos tinham pressa de beber
e não queriam mesmo discutir,
os tais versos repetiam com paciência,
depois bebiam a água, de passagem,
e satisfeitos, acabavam por partir;
e o Caracal, com ademanes majestosos,
ostentava sua real magnificência,
que bem depressa iriam os outros esquecer!...
Surgiu então o Tigre de Bengala,
que era o verdadeiro Rei da Mata!
O Caracal, porém, nem se abalou
e repetiu-lhe sua orgulhosa fala!...
Olhou-o o Tigre, com vasta ironia
e num ronco, soltou vasta gargalhada
e até os versos repetiu, de brincadeira...
Com uma patada, mataria o Caracal!...
Bebeu o quanto quis, soltou arroto e olhou,
como se fosse uma homenagem arrevesada,
pois bastaria uma dentada bem certeira
e ao pretensioso sem cabeça deixaria!...
Porém ficou o Caracal mais convencido,
de orgulho impando no seu pedestal,
achando mesmo ser o Rei da Fonte:
o próprio Tigre o havia obedecido!...
Cheio de si, vibrante personagem,
não tendo fome, seu teatrinho prosseguiu
e tendo sede, obedecia a bicharada
o dia inteiro, em seu vasto reponte
e sua vaidade cada vez mais se expandia:
já se sentia o Rei da Mata o Caracal,
até vir o Lagarto, em marcha ponderada,
ao qual desafiou na mesma imagem...
O CARACAL E O TIGRE III
“De prata, ornado de ouro, é o pedestal!
Traz nas orelhas seus brincos portentosos!
É o Rei da Fonte e então rendemos homenagem
à Sua Majestade, o Caracal!...”
“Chi, chi, chi...” o Lagarto resmungou,
“Não posso repetir, com sede e rouco,
terá de me deixar beber primeiro,
seus versos lindos repetirei em vassalagem...”
“Eu não permito!” “Ora, tão só um pouco!
Depois declamo seus versos tão formosos
de uma forma que o agradará ligeiro!
Tal qual merece Vossa Majestade Imperial!...”
O Caracal deixou-se convencer
e o Lagarto bebeu, sem se apressar,
depois seguindo direto para casa...
“Ei, seu Lagarto! O que está a fazer?
Meus belos versos precisa repetir!...”
Disse o Lagarto, que já estava a ir embora:
“Meu rei, desculpe, eu já havia esquecido,
mas impostar a voz primeiro embasa...”
E começou a solfejar na mesma hora:
“Do, re, mi, fá, sol, la, si!” – pôs-se a cantar.
“Mas como é mesmo o texto requerido?
Diga de novo, de nada quero me esquecer...”
“De prata, ornado de ouro, é o pedestal!
Traz nas orelhas seus brincos portentosos!
É o Rei da Fonte e então rendemos homenagem
à Sua Majestade, o Caracal!...”
Repetiu o orgulhoso, claramente
“Ah, sim! De osso e barro é o pedestal,
traz nas orelhas pendurados dois sapatos,
que seja rei não passa de bobagem!
É apenas um vaidoso o Caracal!...”
Para livrar-se dos golpes perigosos
do que ofendera com tais desacatos,
fugiu o Lagarto, correndo velozmente!...
“Isso não fica assim!” – gritou o Caracal
e dando um salto, começou a perseguir
o tal Lagarto que o ofendera tanto,
já perseguindo de perto o outro animal!...
Porém o Lagarto se enfiou no seu buraco,
pensando assim que do inimigo escaparia,
mas o Caracal abocanhou-lhe o rabo,
cheio de raiva do malicioso canto!...
Quem sabe o rabo o Lagarto soltaria
e a cola, ao menos, poderia deglutir!...
Um rabo novo lhe cresceria do cabo,
em poucos meses a preencher-lhe o naco!...
O CARACAL E O TIGRE IV
Mas o Lagarto não quis se desfazer
de seu apêndice, mesmo regenerável
e ao invés, empregou outra esperteza:
“Está certo, meu rei! Devo reconhecer
que me venceu no final de nossa história!
Tenha a bondade de largar meu rabo:
darei a volta se me deixar virar
e seus versos cantarei com gentileza,
que já aprendi do seu começo ao cabo!
Solte minha cauda, por favor, ó venerável
e escutará quão bem eu sei cantar!
Você venceu, dou a mão à palmatória!...
Mas no momento em que livre se encontrou,
correu o Lagarto para o fundo do buraco
e cantou: “De osso e barro é o pedestal,
traz nas orelhas pendurados dois sapatos,
que seja rei não passa de bobagem!
É apenas um vaidoso o Caracal!...”
Furioso, o Caracal pôs-se a escavar,
mas muito funda achou a cova e era fatal
que seus dentes desgastasse no final
e suas unhas transformasse em caco!
Sua pretensão assim forçado a abandonar,
o falso trono desmanchado sobre a margem!
Enquanto isso, o Tigre de Bengala
fora atraído por uma ovelha morta e pendurada
e ao agarrá-la, caíra em armadilha!
Uma das barras até mesmo quase o empala,
ao se cravarem no chão, rapidamente!...
Foi assim inútil que o Tigre, enfurecido,
mordesse as grades, tentando-se livrar!
Comeu a carne, mas dia a dia se empilha,
com sede e fome e já meio desnutrido,
sem que buscassem o resultado da caçada
os camponeses, só de longe a observar:
queriam a pele inteira, certamente!...
Seria fácil matar esse animal,
dentro da jaula, com flechada ou lança,
porém marca deixaria o ferimento:
que se esfaimasse preferiam, afinal!
Rugia o Tigre, a cada dia enfraquecido,
até que um Brâmane por ali passasse
e ao sacerdote o Tigre suplicou
que o libertasse do seu sofrimento...
“Seria um tolo, se daí o livrasse!...
Se o libertar, você logo me alcança
e vai me devorar!... – o bom homem replicou.
“Brâmane, eu juro que não será comido!...”
O CARACAL E O TIGRE V
“Morro de fome, mas jurar-lhe-ei por Brahma,
Vishnu e Shiva que não o devorarei!...”
E ao escutar um juramento assim sagrado,
a fé do Brâmane seu coração inflama,
pois invocara a Santíssima Trindade
que os homens domina e também os animais
e em abrir-lhe a portinhola concordou...
Contudo o Tigre, tão logo libertado,
foi dominado por seus instintos naturais...
“Reze, Brâmane, que agora o comerei!”
Derrubou-o o chão, mas não o feriu...
“Você jurou, na maior sacralidade!...”
“Irá a Trimurti então desrespeitar...? (*)
Nem você pode quebrantar a Santa Lei!”
“Mais santa para mim é a Lei da Fome!”
“Porém os deuses para o castigo irão chegar!”
“Se não comer, já sofrerei a morte,
poderão eles me atribuir maior castigo?”
“Reencarnará como o ser mais inferior,
como um inseto, que ante a vista some!...
Você jurou que seria meu amigo!...”
“Pois uma chance então eu lhe darei:
em obediência ao julgamento superior,
aceitarei o que decida a sorte!...”
(*) A Santíssima Trindade do Bramanismo.
“Consultaremos, pois, três criaturas,
correspondendo cada qual a uma deidade
e saberemos qual é o valor da gratidão!...”
“Juro que volto, por piores as agruras!”
“Não, meu amigo, eu o acompanharei,
já viu o valor que eu dou a juramentos!...”
E assim foram os dois indagar a uma Estrada,
que representa de Brahma a criação...
Falou o Brâmane, com grandes sentimentos,
mas disse a Estrada, na maior veracidade:
“A Gratidão e a Justiça não são nada!
A Injustiça e a Maldade são a Lei!...”
“Eu sirvo a todos, com humilde utilidade,
ricos e pobres, grandes e pequenos
e todos eles só me calcam sob os pés,
jogam-me lixo e toda a sujidade!...
Por mim, o Tigre pode bem o devorar!...”
Uma Árvore os dois foram consultar,
representando a preservação de Shiva,
que nas florestas tem profundas sés
e disse a Árvore, sua folhagem a murmurar:
“Dou sombra e frutos, mais brisa com acenos
de meus galhos, que minha bondade ativa,
a qualquer ser que por aqui passar!...”
O CARACAL E O TIGRE VI
“E o que recebo como recompensa?
Ao contrário, quebram galhos e os arrancam!
E acendem fogo sobre minhas raízes!
Por mim, o Tigre tem justificação,
pois sendo ingratos todos os humanos,
por que grato deveria ser um predador?
Não é natural que dos outros se alimente?
Acaso pensas no solo em que tu pisas?
Por toda a água que bebes tens amor?
Aos cereais agradeces, que tua fome estancam?
És um Brâmane! Choras não deves, realmente!
Exemplo deves a todos os Indianos!...”
A essa altura, já o Tigre se alegrava:
“Valeu a pena a minha longa espera,
só para ver a sua humilhação!...
A hipocrisia com que você pregava
para que outros desprezassem a má sorte!,,,
Consultaremos a terceira criatura
que encontrarmos, só para ver o que nos diz:
tenho certeza que me dará também razão!...”
Encontraram a seguir, em marcha dura
uma Vaca, que temeu a besta-fera,
porém o Tigre a devorar não quis:
“Você, Brâmane, será meu gado de corte!”
Contou o Brâmane a tão manso animal
toda a sua história, esperando simpatia,
pois era ao santo Vishnu consagrada...
Mas tinha a Vaca o temor mais natural
pelo grande predador que a observava...
Andava em círculos para acionar a nora, (*)
puxando a água para a irrigação,
sem se sentir nem um pouco resignada:
“Enquanto eu dava leite, era senhora,
trigo e cevada a cada dia comia,
mas depois que me secou a produção,
essa palha que me dão mal me bastava!...”
(*) Aparelho para tirar água de um rio ou poço, cuja peça principal
é um roda parecida com a de um moinho, presa a uma corda.
“E nem sequer consigo tomar a água
que com meu grande esforço vou puxando,
para irrigar os campos do patrão!
O fim do dia eu espero, em grande mágoa,
quando um só balde me dão para beber!
E ele criou seus filhos com meu leite!
Sem meu trabalho, seus campos secariam!
Não há no mundo Justiça ou Gratidão!
Deixe que o Tigre tenha o seu deleite...
Em outros países, sei que vão se alimentando
de minhas irmãs! E minha carne comeriam
se aos Hindus não fosse proibido me abater!...”
O CARACAL E O TIGRE VII
“Bem, Brâmane, você escutou o julgamento:
prepare-se, pois, para me alimentar!...”
disse o Tigre, já babando sua saliva.
“Faça sua reza final neste momento...”
Mas de longe, tudo vira o Caracal,
a recordar a troça que fizera
dele o Tigre, quando rei ser pretendia!
Apelou então para sua argúcia nativa:
se do Lagarto vingar-se não podia,
do Tigre ao menos ir-se-ia cobrar!...
E se achegou como quem nada queria,
em um passinho malandro e natural...
“Senhor Brâmane, por que está ajoelhado?
Vim aqui para pedir que me abençoasse...”
Então o Brâmane lhe contou sua triste história
e o Caracal se fez de atrapalhado...
“Mas que embrulhada! Quer de novo me contar?
É coisa triste, mas não me entra na cabeça!...”
E o Brâmane repetiu tudo outra vez.
“Sou meio bobo, dou a mão à palmatória,
quer me contar de novo, sem ter pressa...?
Pensou o Brâmane que sua morte assim adiasse...
“Mas que negócio é esse, meu freguês?”
o Tigre protestou. “Você está a atrapalhar!”
“Não entendi,” insistiu o Caracal,
“Por que o senhor quer devorar o sacerdote?”
“Porque agora eu sinto fome, ora essa!”
“Ah, sim, e o Brâmane lhe fez um grande mal...”
“Mal não me fez, mas pretendo devorá-lo;
é a Lei mais justa que existe neste mundo:
o fraco é sempre devorado pelo forte!”
“Mas o senhor não tinha feito uma promessa?
Não proferiu um juramento bem profundo?
Se ele lhe dessa da liberdade o dote,
ser devorado por você seria sua sorte...?
Desculpe se eu estou a atrapalhá-lo...”
“Será que entendi mal? Foi assim mesmo?”
“Não!” – gritou o Brâmane. “Jurou me pouparia!”
“Mas o senhor pretende agora devorá-lo?
Foi então um juramento feito a esmo...?”
“Não, seu parvo! Não consegue entender nada?
Meu juramento, de fato, foi o contrário,
mas estou a implementar a Lei da Vida!...”
“Meu raciocínio é fraco, queira completá-lo:
quem sabe o senhor me acerta o itinerário,
sem tal ajuda, acho que nada entenderia!”
“Três juízes à minha petição deram acolhida:
Tenho direito a comer, causa julgada!...”
O CARACAL E O TIGRE VIII
“Porém, ao menos, me explique uma vez mais,
quero suas próprias palavras escutar...”
Do Tigre a fome já apagava o tirocínio,
mas a história repetiu, com naturais
alegações e argumentos a seu favor...
“Sou um grande tolo! Já não entendo nada!
O Brâmane estava preso e o senhor é que o soltou?
Foi uma Árvore que explicou seu raciocínio?
Foi uma Vaca que se perdeu na Estrada...?”
“Não, idiota! Vou de novo lhe explicar!...”
E a aventura inteira outra vez ele narrou...
“Deixou-me até mais atrapalhado, meu senhor!”
“A Vaca estava presa na armadilha
e o Brâmane o chamou para ajudar,
prometendo que devorá-la poderia...?
Espere aí, foi a Árvore que saiu da trilha...?”
“Não é possível!” – disse o Tigre. “Já expliquei!”
“Mas compreender tudo isso eu não consigo!
Esses juízes... quem foi que os escolheu?
Quem sabe a gente se deslocaria
até essa tal armadilha, meu amigo?
Decerto eu entendo, chegando no lugar...”
Tonto de fome, o Tigre concedeu.
“Pois no caminho, toda a história escutarei...”
Quando chegaram junto da armadilha,
viram que estava com a porta aberta.
O Brâmane não parava de rezar
e debandado até teria pela trilha,
caso o Tigre o tempo todo não o vigiasse...
“Lá está a jaula!” Então, os três pararam.
“O senhor estava nessa árvore pendurado?”
“Não, seu inútil! Não adianta lhe explicar!?”
“Ah, foi outra Árvore que vocês procuraram?
Queira amparar a minha memória incerta...
Estava a Vaca ou era o Brâmane o encerrado?”
“Mas era eu, seu palerma! Não tem classe?”
“Mas, senhor Tigre, uma portinha tão estreita!
Como foi que o senhor pôde passar?
É uma predador tão grande e poderoso!
Como foi que atravessou, daquela feita?”
“Ai, retardado, dê só uma espiada!...”
Enfiou-se o Tigre de novo na gaiola!...
O Caracal fechou a porta com o focinho
e a trava ali apertou, com grande gozo...
Rugiu o Tigre, mas não lhe deram bola!...
“Senhor Brâmane, trate logo de escapar!...”
O sacerdote agradeceu e correu pelo caminho,
e o Caracal riu a bom rir, em gargalhada!...
EPÍLOGO
E assim ocorre com todos os ingratos
que pensam aproveitar-se dos demais
e quebrantam os maiores juramentos
proferidos em momentos insensatos!...
Por isso os brâmanes protegem os caracais
e dos tigres abençoaram as caçadas
até ficarem praticamente em extinção!
Sem os zoológicos, seus últimos momentos
seriam tapetes e cobertas debruadas,
pois odeiam os Hindus tais animais,
pelo mal que causam sobre a criação
e por matarem humanos por demais!...
William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com