O MACACO HERÓI
O MACACO HERÓI
(Lenda hindu recolhida por Gertrude Alice Kay, versão poética
e adaptação de William Lagos, 21 mar 15)
O MACACO HERÓI I
Segundo contam, “nas plagas do Industão”, (*)
havia um rei de grande poderio,
que governava todo o sagrado rio,
desde Benares, com forte e firme mão.
Por outra parte, perto da nascente
de um afluente que descia do Himalaia,
havia uma árvore, de copa rica e gaia,
já secular e em vastidão potente...
(*) Alusão a um verso de Castro Alves.
Em toda a Índia, não havia outra qualquer,
nem ao menos um poderoso baobá;
segundo dizem, tampouco se achará
que a ela possa se assemelhar sequer...
Narra essa lenda que o poderoso Rama,
o rei das matas e valente caçador,
passeava um dia, no gozo do frescor
que sob a copa das matas se derrama...
Nem percebera haver ali qualquer perigo,
mas uma píton em um galho se enroscara
e ardilosamente dele se achegara,
para esmagá-lo e o carregar consigo!
Se sobre o rei conseguisse se lançar,
com suas volutas facilmente o envolveria;
nem sequer Rama depois conseguiria
de seus anéis assassinos escapar!...
Porém bem perto estava um macaquinho,
chamado de Hanuman, bem escondido,
temendo ser pela píton engolido,
numa forquilha bem encolhidinho...
também temia a Rama, o caçador,
de acurada e firme pontaria;
caso o avistasse, não o pouparia:
muitos macacos já caçara em seu ardor!
O MACACO HERÓI II
Mas viu que a píton pretendia caçá-lo,
por esse galho a deslizar, coleando,
astuta e silenciosa avizinhando
o incauto rei, a fim de devorá-lo!...
Já no momento em que nele saltaria,
o macaquinho superou seu medo
e deu um guincho forte, o mau segredo
revelando que ao rei esmagaria!...
De pronto, Rama deu um salto para trás,
falhando o bote da cruel serpente,
que a Hanuman avistou e, de repente,
apoderou-se dele, num zás-trás!...
Era uma presa de bem menor valor,
seu apetite tão somente aguçaria,
mas por sua causa a maior caça perderia
e abraçou o macaco em seu rancor!...
Porém Rama, do perigo advertido,
levou a mão à aljava e colocou
certeira frecha no arco e disparou,
o inimigo em seu pescoço já ferido!
Então a cobra do galho despencou,
debatendo-se nas vascas da agonia;
mais cinco frechas Rama acertaria,
até que a fera, finalmente, se aquietou!
E quando Rama as foi recuperar,
viu quase morto o pobre macaquinho!
“Foi você que me avisou, meu amiguinho!”
E com cuidado, o foi desenroscar...
Tomou-o nos braços, o corpo massageou,
e deu-lhe água para o despertar...
Ao vê-lo, Hanuman quis se livrar,
mas com palavras doces o acalmou!...
O MACACO HERÓI III
Os dois juntos, depois, se alimentaram;
tirou Rama da serpente a grossa pele:
seria um tapete no palácio dele,
do qual seus súditos muito se admiraram!
Mas o macaco parecia bem magrinho
e indagou Rama se passava fome:
“Ah, neste inverno não há quem a dome!
O alimento por aqui é bem mesquinho!...”
Então Rama o levou à beira-rio
e tirou de sua mochila uma semente:
logo plantada, fez-se árvore potente,
cheia de frutos, quase em desvario!...
“Esta árvore é sua, macaquinho,
de seus amigos e de seus parentes;
por meu encanto, mesmo aos gritos estridentes,
não provarão quaisquer aves de seu vinho!”
Assim Hanuman longo tempo demorou-se,
indo chamar seus amigos e parentes;
ali cresceram também seus descendentes
e incomparável a árvore tornou-se,
comportando oitenta mil macacos,
pelos frutos tão somente alimentados...
Mas não havia caroços germinados,
caídos mesmo nos mais férteis buracos!
Sendo uma árvore criada por magia,
ainda embora magnífica e copada,
mudas tivesse, seria a mata avassalada
tão somente pelas que ela transmitia.
É natural que o rei Rama não o queria,
pois da floresta a diversidade amava
e alegremente os animais caçava
para os festins que em seu castelo serviria!
O MACACO HERÓI IV
Verão e inverno as frutas deliciosas
alimentavam aquela vasta multidão,
sempre brotando conforme a precisão,
mais alastrando as ramadas já frondosas!
Passados séculos, porém, um certo dia,
entre muitos, nasceu outro macaquinho,
que estendeu mal o braço pequeninho,
soltando fruta na torrente que corria!
E foi descendo, até esse rio desembocar
no Ganges poderoso, o rio sagrado;
e assim o fruto foi sendo transportado,
até as praias de Benares alcançar...
Ora, ocorreu que nesse dia se banhava,
para das culpas se purificar,
esse rajá, com soldados a guardar
as margens; ninguém mais o acompanhava.
Pois viu flutuando o fruto saboroso,
dourado e suculento na sua mão!
Ao revirá-lo, percebeu que estava são
e num impulso, já o mordia, guloso!
Nunca provara seu régio paladar
qualquer fruto de puro e igual sabor;
após comê-lo, olhou a seu redor,
vendo se outros poderia ali encontrar.
Mas tudo em vão! Enviou os seus soldados
de ambas margens ao longo pesquisar;
mas nem na orla nem na água pôde achar
quaisquer frutos igualmente delicados...
Então o rei ordenou a cem barqueiros
que o rio subissem, pois naturalmente,
descera o fruto ao longo da corrente
e mais acima se achariam companheiros!
O MACACO HERÓI V
Mas por mais que buscassem, nada achavam,
até que um deles, decerto o mais ousado,
enveredou pelo afluente encapelado:
lá estava a árvore, sem dúvida, que buscava!
Nunca outra vira de igual imensidade,
pontilhada por frutas incontáveis,
douradas sob o sol; mas inumeráveis
símios comiam-nas com real voracidade!
Voltou o barqueiro a informar o seu rajá,
que desconfiado, indagou: “Você comeu?”
“Não, Majestade! Nada se desprendeu,
porém nas Índias árvore igual não há!...
Mandou o rei aprestar expedição,
mil e um barcos subindo o largo rio,
toda a tropa do rajá em poderio,
seu próprio barco era quase uma mansão!
Finalmente a alcançaram, já de noite,
após enfrentar do rio os mil perigos:
caracais, linces, crocodilos inimigos,
tribos selvagens em solitário acoite!...
E sob os ramos montaram acampamento:
mais que da noite, havia escuridão,
espessos galhos impedindo a transmissão
da luz solar de maior encantamento.
Assim, já se adiantara essa manhã,
quando em sua tenda o rajá se despertou,
com os guinchos dos macacos acordou,
logo receando que sua busca fosse vã,
pois nenhum fruto tombava sobre o chão,
os caroços e as cascas não brotavam,
só os dejetos dos macacos se espalhavam,
com nojo o rei dessa símia multidão!
O MACACO HERÓI VI
E quando a um galho pendido lançou mão,
veio um macaco e o fruto arrebatou!
Quis pegar outro e o animal o arranhou,
já assanhados os macacos com razão!...
E quando seus soldados escalavam
o tronco grosso ou os ramos repuxavam,
a um exército de monos enfrentavam
e os mais valentes para o chão precipitavam!
Mandou o rajá, na sua frustração,
que os soldados matassem os macacos,
que seus criados subissem com cem sacos,
colhendo os frutos para sua refeição!
Naturalmente, após muitos asseteados,
foram os macacos subindo para o alto,
caroços e galhos, porém, em sobressalto,
a lançar sobre os homens acampados!
Mas ai! Para grande desgosto do rajá,
em cada galho que eles abandonavam,
logo os frutos encolhiam e murchavam:
para colhê-los meio algum não há!...
Declarou então o rei, no seu furor:
“Se eu não comer, não comerão também!
Matem todos os macacos que se veem
emporcalhando o ar com seu fedor!...”
Como era mágica, a árvore crescia,
mais para o alto abrigando a macacada;
mesmo que parte fosse sendo exterminada,
nenhum dos galhos a queda protegia
dos numerosos e valentes soldados,
quando no alto falseavam o seu pé!
Ramos se abriam, na verdade, até,
levando à morte os guerreiros e os criados!
O MACACO HERÓI VII
Mas mesmo assim, em sua valentia,
subiam os soldados e flechavam
alguns dos monos ou com lanças os matavam:
sempre algum velho ou filhote se perdia!
E junto a Hanuman se refugiaram:
“Não virá nos socorrer o bom rei Rama?
A seu lado combatemos em Ramayana!” (*)
“Não, no Svarya os gênios já se congregaram!”
(*) Poema heroico hindu; Svarya é mansão dos deuess.
“Mas então o que fazer nós poderemos?
Esses humanos são muito numerosos
e até os galhos da árvore, poderosos,
que se movem a fim de proteger-nos,
eles cortam! Têm mais medo do seu rei
do que nutrem pela própria morte!
Quem nos pode salvar da triste sorte?”
Falou Hanuman: “Eu mesmo os salvarei!”
Por muitos séculos ele havia crescido
e se tornara em símio imenso e forte,
sua vasta idade não enfraquecera o porte...
Subiu ao mais alto da árvore, destemido!
E lá de cima, deu um pulo majestoso
para a copa que mais próxima se alçava!
Nenhum dos súditos, porém, o acompanhava,
sem terem força para o salto prodigioso!...
Mas Hanuman saltando prosseguiu,
até chegar a um vasto bambuzal,
varas cortando, sem lhe fazerem mal,
com os próprios dentes; e a tiras as reduziu.
Trançou com elas uma bem longa corda,
que prendeu num tronco grosso, com firmeza,
os rolos agarrando com destreza,
corda enrolando em cada árvore que aborda.
O MACACO HERÓI VIII
E enfim chegou à copa generosa,
em que o aguardavam amigos e parentes;
e segurando a ponta nos seus dentes,
cobriu o abismo numa curva portentosa!
Mas ai! Ficara curto o cumprimento,
longa extensão desgastara no enroscar,
das outras árvores nos troncos a firmar:
por dois metros errara o julgamento!
Mas o salto completou, ao se agarrar
em um galho bem forte e suspirou;
de seus parentes o lamento o alertou:
não havia tempo para mais corda buscar!
Então amarrou a ponta na cintura
e no galho prendeu-se, firmemente:
“Usem minhas costas!” – ordenou à sua gente.
“Eu firmo a corda e por certo não lhes falho!”
Foram assim passando os seus amigos,
primeiro as fêmeas, com cada filhotinho,
depois os velhos, amparados com carinho,,
um a um enfrentando tais perigos!...
Mas Hanuman bem firme se mantinha:
todos subiam em suas costas e a corda,
rapidamente, cada qual aborda,
a sua cintura aperta o laço como vinha!...
Então vieram os machos, por sua vez,
naturalmente, muito mais pesados,
cruzando o abismo, todos apressados,
atrás deles os soldados em dura tês,
os companheiros mortos a vingar,
não querendo permitir que os escapassem;
talvez a corda também atravessassem,
outros da tribo dispostos a matar!
O MACACO HERÓI IX
Mas quando o último macaco atravessou,
Hanuman encontrava-se exaurido!
Soltou a corda, num oscilar perdido,
no galho apenas suas patas a firmar!
E quando ali chegaram os soldados,
percebendo o que havia sucedido,
vendo o macaco todo malferido,
qual prisioneiro o levaram, despeitados!
Mas em vão pelos ramos procuraram:
nem um só fruto puderam encontrar,
ao seu rajá o desaponto a confessar,
pois tão somente Hanuman lhe apresentaram.
Mas quando o rei escutou a inteira história,
sentiu-se profundamente comovido:
“É grande herói este bicho tão sofrido!
Merece vasta fama e eterna glória!”
E o próprio rei cuidou-lhe das feridas,
mas quase oitenta mil dos animais
haviam passado por suas costas; e fatais
eram as chagas nele produzidas!...
Mandou o rei enrolá-lo no seu manto
e o conduziram a Benares, em procissão;
ergueu-lhe pira para a santa cremação
e as carpideiras lhe derramaram pranto!
Lançadas as cinzas sobre o rio sagrado,
mandou o rajá um templo ali erigir,
consagrado ao macaco de existir
mais heroico que o de um leal soldado!
E até hoje esse templo se acha lá,
habitado por uma símia multidão,
de sacerdotes recebendo proteção,
cumprindo assim as ordens do rajá!...
EPÍLOGO
Serviu ao rei esse fato de lição,
dando pensão para as viúvas dos soldados
que nessa luta foram massacrados
pelos macacos, a proteger sua possessão!
E governou sabiamente doravante,
sendo lembrado como um grande soberano!
Cumpriu-se assim de Rama o justo plano,
a sua magia ancestral e triunfante!...
Porém a árvore deu frutos novamente,
tão logo os hóspedes macacos retornaram.
Por muitos séculos outros homens a buscaram,
sem encontrar seu lugar, infelizmente!
Porém dormindo na orla consagrada
do rio Ganges, junto àquela confluência
com o outro rio; e sonhando com paciência,
dizem yoguis ainda escutar a macacada!...
William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com