FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA

(Conto folclórico português recolhido por Viriato Padilha em Histórias do Arco da Velha,

versão poética e adaptação de William Lagos, 20 mar 15)

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA I

Em remota região de Portugal

vivia uma viúva pobre e honrada,

por duas filhas sempre acompanhada,

que educara no bem e na moral.

Em seu jardim plantara duas roseiras,

de rosas brancas uma e outra vermelhas,

que davam flores mimosas em corbelhas,

já mais frondosas que muitas trepadeiras...

As duas meninas pareciam também flores:

tinha uma a pele de um límpido brancor,

a outra os cabelos rubros, cor de amor,

e a consolavam de seus dissabores.

Apelidou à primeira “Flor de Neve”,

de “Rosa Rubra” se referia à irmã,

ambas bonitas, mas sem vaidade vã,

nas quais botar defeitos não se atreve...

Flor de Neve tinha tendência mais caseira,

com frequência sua mãe a ajudar,

enquanto Rosa Rubra saía a procurar

frutas e nozes, em busca aventureira.

Mas as duas eram sempre muito unidas;

de fato, a mãe tinha pomar e horta,

mas para as três alimento não comporta

e a floresta protegia assim suas vidas...

As duas meninas com frequência iam pescar,

sem se animarem a sair à caça;

armas não tinham e na mente nem lhes passa

matar coelhinhos para se alimentar,

mesmo a pedradas; era gentil seu coração

e por isso os animais eram amigos,

sem que enfrentassem do mato tais perigos,

bem mais causados por cobiça e ambição!

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA II

Sem dúvida, era floresta bem bravia,

dos povoados e caminhos apartada;

nenhuma só expedição vinha à caçada

e toda a fauna mansa persistia

e as duas irmãs, que não viam ninguém mais,

assim se amavam muito profundamente

e Flor de Neve afirmava, mui frequente:

“Não nos iremos separar jamais!...”

Ao que Rosa Rubra respondia:

“Amar-nos-emos até o fim da vida!”

Enquanto a mãe, já por tristezas prevenida,

confirmava tais frases e insistia:

“Não vá ao bosque nenhuma sozinha!

Mesmo por que colher mais poderão;

mais alimento para nós trarão

que caberia em uma só cestinha!...”

Mas não sabiam é que um encantamento

firmemente essa floresta protegia;

havia um Mago, que nela prendia

seus desafetos, terrível em portento!

Ele mesmo habitava em um carvalho,

que por dentro revelava ser castelo;

houvera dois príncipes no palácio belo

e a esses encantara “em sino e malho”!...

Mas os próprios animais as protegiam,

pois muitas vezes comiam de sua mão;

também os tinham sob sua proteção,

levando ao ninho os filhotes que caíam,

ajudando os bichinhos que sofriam,

chegando até a auxiliar certas serpentes

a retirar, em atitudes surpreendentes,

a pele antiga de que se despiam!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA III

Destarte, caso a noite as surpreendesse

e para caminhar ficasse escuro,

deitavam em musgo, defendidas do chão duro,

a conversar até que uma adormecesse;

e então a sua irmãzinha suspirava,

fechando os olhos, para o sono conciliar;

só a madrugada as vinha despertar:

raio de luz que nos olhos lhes tocava!...

Mas certas vezes, quando estava escuro,

um rapaz aparecia, resplendente:

não lhes falava, mas impedia a frente,

um aviso a lhes mostrar no rosto puro;

ao se acordarem, após a noite inteira,

descobriam que o caminho haviam errado,

de precipício ou de urzal se aproximado (*)

e a tal visão assim as protegera!...

(*) Renque de espinheiros.

Dizia a mãe, depois de as interrogar,

ao ver que o tal rapaz desvanecia,

na ingenuidade que ainda a protegia:

“É o Anjo da Guarda, do perigo a avisar!”

Mais de uma vez tal fato acontecera

e as irmãs discutiam entre si

se o mesmo rapaz surgira ali

ou se era outro que então as protegera!

Margarida, sua mãe, contava histórias

sobre castelos, mais príncipes encantados;

já as surpreendendo os anos desvairados,

cochichavam fantasias transitórias:

que um dia tais príncipes viriam

e as levariam para seus castelos,

em pleno amor passando os anos belos,

mas logo após, ambas se consternariam!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA IV

“Mas se os castelos ficarem bem distantes

e não pudermos mais nos encontrar?...”

Só de pensar, começavam a chorar,

mas logo estavam alegres como dantes...

Certa noite, as três junto à lareira,

com vários peixes a ferver no caldeirão,

ouviram batidas à porta, sensação

que escutavam, quiçá, por vez primeira!

Quem mal não tem, mal tampouco pensa.

Disse-lhes a mãe: “Decerto, é um viajante

que perdeu seu caminho e, neste instante,

busca um abrigo contra a neve extensa!”

Não que nevasse demasiado por ali,

que a grande copa das árvores o impedia,

mas já ao redor da casinha reluzia

um manto branco e claro de organdi...

Flor de Neve foi logo abrir a porta,

sem ao menos segurar algum bastão,

que armas não tinham para sua proteção,

levando um susto que o respirar lhe corta!...

Enfiou um Urso sua cabeça castanha,

tão depressa quanto achou uma abertura!

E nesse instante de súbita loucura,

as três gritaram de emoção tamanha!...

Porém o Urso falou-lhes com voz mansa:

“Nada temam, porque não lhes farei mal;

só preciso me aquecer do vendaval:

não sinto um frio assim desde criança!...”

Ainda espantada, disse Margarida:

“Aproxime-se do fogo, Urso amigo,

poderá fazer sua refeição comigo,

que muita carne de peixe foi cozida!...”

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA V

O pobre Urso aceitou, agradecido,

uma das patas a sustentar o prato,

com a outra comendo, no maior recato,

por sua boa acolhida comovido;

as três perderam bem depressa o medo

e mesmo as jovens começaram a acariciar

o longo pelo castanho e a trabalhar,

tufos de pelo a retirar de seu enredo...

Todas as noites ele retornava,

trazendo peixes ou cabaças com mel,

transformando a choupana em seu quartel:

nenhuma delas mais dele se arreceava

e antes de dormir até brincavam:

montavam nele e lhe pediam cambalhotas,

todas três rindo, igual que três idiotas

e na maior naturalidade, conversavam...

“Mas por que nunca antes o encontramos?”

“Ora, eu sempre de longe as observava;

eram pequenas, mas sempre eu as cuidava...

Algum mal lhes sucedeu por tantos anos?...”

Mas se os brinquedos acaso o machucassem,

“Não matem o seu noivo!” – ele dizia.

A nenhuma delas o chiste surpreendia,

sem que a sério de modo algum o tomassem.

Mas quando retornou a primavera,

suas visitas começaram a escassear

e finalmente, ele acabou por informar:

“Não se cansem no verão à minha espera;

tenho afazeres em torno da floresta

e só de longe as acompanharei;

não tenham dúvidas de que as protegerei:

virei no outono e então faremos uma festa!...”

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA VI

Tempos depois, já alto ia o verão,

colhiam as duas frutos e gravetos,

a percorrerem os cantos mais secretos,

e depararam com enrugado Anão,

sua barba branca de enorme comprimento,

que se arrastaria mesmo pelo chão,

presa a uma fenda por forte pressão,

sem conseguir libertar-se do tormento!

Quando ele as viu, saiu logo gritando:

“O que esperam para me ajudar?

Não estão vendo que não me posso libertar?”

Foram as duas então se aproximando.

“Como sua barba ficou presa assim?”

“Não interessa, meninas curiosas!

Cortava lenha, suas preguiçosas!

Saltou uma cunha e me prendeu, enfim!”

Elas acharam estranha a explicação,

mas bem depressa tentaram ajudá-lo.

Saiu uma cobra coleando pelo valo

e as duas recuaram, por pura precaução;

muito embora a outras cobras ajudassem,

essa não era das duas conhecida:

extremamente grossa e bem comprida,

fortes anéis, facilmente as esmagariam!

“Qual é o problema? Não veem que foi embora?

Venham minha barba desemaranhar!...”

As duas jovens procuraram se esforçar,

mas a ponta não soltava nessa hora

e o Anão continuava a reclamar:

“A serpente vai levar o meu tesouro!

Prendeu-me aqui para roubar meu ouro!

Vocês precisam mais depressa me soltar!”

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA VII

E por não ver qualquer outra alternativa,

Flor de Neve pegou uma faquinha,

com que colhia as uvas da gavinha,

cortando a ponta da barba assim cativa.

Ao invés de agradecer, pôs-se a xingar:

“Por que minha pobre barba mutilaram?

Que grosseria que me apresentaram!

Que o diabo as possa castigar!...”

E sem esforço, o tronco a levantar,

tirou um saco que se achava embaixo

e saiu resmungando em tom mais baixo:

muito em breve já não o podiam escutar!

Mas sendo ambas de bom coração,

as duas meninas começaram a sorrir

e logo após, já riam a bom rir,

do inesperado de tal ingratidão!...

Daí a semanas, foram as duas pescar

e novamente encontraram o Anão,

seus pés ficados junto ao ribeirão,

parecendo que ali queria se jogar!...

“Senhor Anão, pretende hoje ir nadar?”

“Menina estúpida, não percebe que essa linha

está enroscada em minha pobre barbinha

e que esse peixe pretende me afogar...?”

Rosa Rubra ao Anão firme segurou

e Flor de Neve o tentava libertar,

um enorme peixe das águas a assomar,

que ainda mais forte pela linha puxou!

Não teve jeito! Flor de Neve sua faquinha

usou de novo para cortar a linha

e mais a ponta da barba que esta tinha

prendido firme, qual venenosa vinha!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA VIII

“Mas o que fizeram, suas rudes criaturas?

Perdem meu anzol e não sabem mais fazer

que a minha pobre barba “encurtecer”?

Deus as castigue, meninas impuras!...”

Saltou após o peixe, dentro da água

e retornou com um saco de diamantes,

pelos costuras cintilações brilhantes!...

E lá se foi, resmoneando na sua mágoa!...

As duas garotas, já quase adolescentes,

se encararam e só puderam gargalhar,

na ingratidão do Anão podendo achar

tão só motivos para risos complacentes.

“Mas como é rico o tal do Anãozinho!”

Comentou Rosa Rubra nesse instante.

“Ouro num saco e outro com diamante!

Mas por que então não se livrou sozinho?...”

Era um enigma, decerto, que olvidaram,

até passar-se mais de uma semana

e Rosa Rubra para a irmã exclama:

“É o Anão!” – quando gritos escutaram.

De fato, uma águia o segurara,

pelos fios de sua barba já mais curta!

Aos berros, a criatura quase surta:

“Minhas pérolas não dou, vil águia avara!”

Viram que a águia e o Anão assim lutavam

por outro saco, cheio até bastante

e logo as duas perceberam, nesse instante,

que bem depressa no ar já se elevavam!

Foram correndo, para de novo o socorrer,

a barba nas garras de novo emaranhada;

por Flor de Neve foi rápido aparada:

caiu o Anão, sem do saco se esquecer!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA IX

Partiu a águia guinchando em revoada,

deixando o Anão abraçadinho ao saco:

“Desgraçada! Você rasgou o meu casaco

e outra vez minha barbinha foi cortada!”

Saiu o Anão, resmungando os impropérios

e as duas já nem mais acharam graça,

acostumadas a escutar tanta pirraça,

pondo de lado o Anão e seus mistérios!

Mas quarta vez, contudo, o encontraram,

a barba curta a branquejar no rosto,

que as encarou, supremo o seu desgosto:

“São meus tesouros que vocês buscaram?”

E começou a pegar pedras do chão

e a atirar-lhes com certeira pontaria!

Muito em breve a alguma delas feriria,

em sua raiva iracunda de paixão!...

Mas neste ponto, apareceu um vulto enorme,

que se lançou sobre ele e o agarrou!

Louco de medo, o mau Anão gritou:

“Terrível Urso, criatura disforme,

não me mate, eu lhe darei o meu tesouro!”

Mas viram o Urso, com patada, o derrubar;

no chão caiu, quase sem respirar,

já moribundo a parecer nesse desdouro!

Flor de Neve e Rosa Rubra se assustaram,

ao ver o Urso debruçado sobre o Anão.

“Senhor Urso, tenha dele compaixão,

Disse Rosa Rubra, tão logo ali chegaram.

“Não o quero matar, só a barba quero

de seu rosto totalmente retirar...

Tem sua faquinha para me emprestar?”

Flor de Neve atendeu-o, bem ligeiro...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA X

Com cuidado, para não o machucar,

raspou-lhe os pelos, delicadamente;

o Anão abriu os olhos, já consciente,

começando a gemer e a suspirar...

Foi Rosa Rubra depressa o ajudar,

passando óleo no rosto escanhoado.

Um pouco d’água a oferecer ao despertado,

Cujo rosto começou logo a remoçar!...

A olhos vistos, principiou a se esticar,

logo assumindo grandes proporções,

seu rosto a mostrar belas feições

e ricas vestes de repente a ostentar!

Tomou a faquinha e os pelos foi raspar

do grande Urso, com igual cuidado;

tão logo o rosto ficou todo barbeado,

também o viram igualmente se mudar!

E logo os dois assumiram forma humana,

para as garotas a estender as mãos:

“Senhoras, nós somos dois irmãos,

encantados de maneira desumana!...

Só duas jovens nos podiam desencantar,

demonstrando verdadeira compaixão

por animal ou pela feia ingratidão...

Porém o Mago precisamos derrotar!...”

“Somos dois príncipes que, por pura inveja,

fomos lançados nesta condição;

salvou nossos tesouros meu irmão,

mas muitas vezes perseguição se enseja,

pois eram estes que o feiticeiro desejava,

que numa árvore transformou nosso castelo;

contudo agora, nos será fácil vencê-lo,

pelo carinho que cada uma demonstrava!”

E foram os quatro até o velho carvalho

em que o velho Mago se escondia,

mas o bruxedo agora se partia

e o tronco se abriu, num grande talho!

Saiu o Mago, a expressão desafiante,

tentando impor a sua feitiçaria,

mas a presença das garotas o impedia:

sua virtude era pura e triunfante!...

FLOR DE NEVE E ROSA RUBRA XI

Com uma praga, transmutou-se na serpente,

mas a faquinha do que fora um Urso,

contrafeitiço tomando assim o curso,

transformou-se numa espada reluzente

e com um só golpe, lhe decepou a cabeça!

Virou-se, então, naquele peixe enorme,

ar respirando, por ser monstro disforme;

mas o outro príncipe atacou-o, bem depressa!

Brandiu sobre ele o saco de diamantes,

que reluziram qual linda cascata,

inundando de luz a inteira mata;

e o peixe encolheu-se, em dois instantes!

Terceira vez, em águia transformou-se,

sem os dois príncipes querer mais enfrentar;

abriu as asas e lançou-se pelo ar:

por entre as nuvens para longe alçou-se!

Então o carvalho também se transmutou,

outra vez retornando a ser castelo;

cada príncipe ajoelhou-se, em seu desvelo,

e pela mão de uma donzela suplicou!...

Flor de Neve aceitou o que fora Urso,

Rosa Rubra o que fora antes o Anão;

a cada príncipe uma delas deu a mão

e assim a história retomou seu curso!...

Ao mesmo tempo, desfez-se o encantamento

que impedia a entrada na floresta;

não só os criados retornaram nesta,

porém soldados em breve momento!...

Tinham sido em animais e aves encantados,

para servir os dois casais se apresentaram

e muitos deles às jovens afirmaram

que elas os haviam ajudado no passado!

EPÍLOGO

Logo após celebrado o casamento,

o palácio pelo meio repartiram

e as duas irmãs separadas não se viram,

igual receavam em seu pressentimento!

Durante a festa, surgiu um viandante,

magro e pálido, contudo ainda forte:

era seu pai, que por mágica sorte,

de sua prisão fora solto nesse instante!

Ali ficara após longa batalha,

um prisioneiro com os demais soldados

e ao verem pai e mãe ora abraçados

para sua felicidade nada falha!

Vieram os pais morar no seu castelo:

o retornado tornou-se o Intendente,

sua mãe das fiandeiras a Gerente:

todos se alegram quando o final é belo!

As duas roseiras continuaram na choupana,

mas Margarida fez duas mudas delas

e as plantou em vasinhos nas janelas,

vermelha uma, como rubra chama,

e branca a outra como a pura neve,

cada uma delas dando flores diariamente...

Tenho certeza que sequer o mais descrente

botar defeito nesta história não se atreve!

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com