A morada do sol

Eu tinha meus três anos, e os cabelos aloirados e espetados. Mais tarde iria rever minha figura na cabecinha de João Felpudo das Mais Belas Histórias.

Mas antes de lá chegar, tinha que pelo teste passar: era papai, geralmente na passação de roupas, ou nalguma costura, usando toda a sua habilidade pedagógica para me endireitar a fala. Eu vinha escorregando sistematicamente nos eles e erres. As vogais, no entanto, já dominava com desenvoltura.

E, quando menos esperava, quase sempre com a presença dalgum visitante, pra dar aquele ar importante, vinha a inquirição, cortante:

- Fala aí, Araraquara!

E eu respondia, incontinenti:

- Alalaquala!

Vinha a correção. Vinha suave, mas firme:

- Vamos devagar: diga Ara.

- Ara!

- Agora, Arara!

- Arara!

- Araraquá!

- Aiaiaquá!

- A-ra-ra-quá!

- A-ra-ra-quá

- Acertou. Tá quase lá.

E vinha o -ra final. Araraquara. Mas era muito pra mim. Ou eu dizia Araraquiaia, ou Alalaquara, ou outra variação nada rara.

Ao entrar para a escola, já não mais tergiversava. Falaria até Pindamonhongaba. Só que a boca ali travava. E só um pouquinho, Dona Gilda era brava. Mas de mim, pouco tirava. Ou tilava?

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 19/03/2015
Código do texto: T5175792
Classificação de conteúdo: seguro