A JAQUETA MÁGICA

A JAQUETA MÁGICA

(Trechos de três contos infantis do folclore português publicados no Thesouro da Juventude)

(Adaptação e versão poética de William Lagos, 23 jan 15)

A JAQUETA MÁGICA I

Chamava-se Clóris a Rainha das Flores,

que habitava em um belíssimo jardim

e tinha Zéfiro como seu namorado...

Mas uma de suas filhas foi crescendo,

grande beleza aos poucos prometendo

e logo Zéfiro ficou por ela encantado;

Clóris se encheu de ciúme e dissabores

e para um bosque baniu Anêmona, no fim.

A pobre ninfa, da luz do sol privada

e pouca terra entre as raízes encontrando,

começou, pouco a pouco, a estiolar;

buscava em vão por uma gota dágua,

as árvores a bebiam e, nessa mágoa,

a pobrezinha começou rápido a murchar,

sua face se tornou logo enrugada:

era uma flor, afinal, e ia secando...

Não longe desse bosque havia aldeia

em que moravam irmãos sapateiros,

apelidados de Desperdício e de Esfregão.

Um era João, de fato; o outro, Manoel,

o humor de João azedo como fel,

porém Manoel era de bom coração,

de trabalhar e limpar não se arreceia,

os seus consertos bem feitos e ligeiros.

Por isso, João o chamava de Esfregão,

mas de preguiça tinha aquele um certo vício;

bom sapateiro contudo era também,

só que era lento e perdia material,

que poderia ainda usar, sem fazer mal;

Manoel empregava essas sobras muito bem,

sempre tratando com paciência seu irmão,

mas que, por isso, apelidou de Desperdício...

A JAQUETA MÁGICA II

Assim Manoel foi a sua vida melhorando

e namorou uma mulher formosa

que, como ele, era trabalhadora;

os dois casaram e se deram bem...

Desperdício até quis casar também,

mas sua má fama por ali crescera

e na casa do irmão seguiu morando,

sua cunhada a chamar de Primorosa...

Ora, um dia, já cansado do trabalho

(Ganhava pouco, pois pouco produzia),

João decidiu se mudar para a cidade:

“Lá saberão, afinal, me dar valor!...

Vou atravessar a floresta, sem temor!”

Na despedida, contra a adversidade,

Manoel lhe deu presente um pouco usado:

uma jaqueta, cujo couro ainda rangia!

Os dois irmãos, de fato, muito se apreciavam

e João falou: “Mas esta é a sua jaqueta!”

Porém disse Manoel: “Será mais útil

para você, que vai andando pela estrada!”

Primorosa deu-lhe uma trouxa preparada

com bastante comida: contudo, em ato fútil.

as ferramentas que no trabalho o auxiliavam

João escondeu em uma toca bem secreta!

Não vou à capital ser sapateiro!

Vou arranjar bem melhor profissão!

E foi-se embora, sem contar a Primorosa

e muito menos a seu irmão que tanto o vela,

que escondera o furador e a sovela;

levou consigo agulha e linha em grosa,

Seria alfaiate ou de tendas costureiro:

Sapatos chegam com porcaria do chão!

A JAQUETA MÁGICA III

Desse modo, lá se foi pela floresta

e contra um tronco, Anêmona encontrou,

enrugada, toda murcha, esfarrapada,

Pobre velhinha! Acho que morreu!

Desperdício logo se compadeceu

e chegou perto da mulher deitada;

meio sem jeito, foi nos cabelos fazer festa

e a falsa morta, num instante, suspirou!

Pegando a água que trazia no bornal,

com cuidado, em sua boca derramou

e os olhos da mulher logo se abriram.

Deu-lhe mais água e, para o seu espanto,

as rugas se fecharam, como um manto

que se alisa, quando a ferro as dobras tiram.

Não era velha a tal mulher! Que grande mal,

que sofrimento assim a desgastou!...

João abriu então a trouxa que lhe dera

a sua cunhada e pedacinhos de comida

foi colocando na boca da mulher,

que a olhos vistos, bem depressa, remoçou.

Desperdício com tal fato se espantou,

mas então ela lhe disse: “Se puder,

me leve ao sol que toda a vida gera...”

O rapaz nos ombros pôs a desvalida...

Levou-a depressa até uma clareira

com grande assombro vendo-a transformar-se

em um arbusto e enraizar no chão!...

“Não tenha medo! Você salvou-me a vida

e recompensa lhe darei na despedida.

Pegue as três pétalas que soltei do meu botão,

pois lhe darão alegria bem certeira...”

E logo em flor seu rosto então mudou-se!...

A JAQUETA MÁGICA IV

Desperdício, de permeio a seu espanto,

foi tomado de alegria desusada,

qual nunca antes na vida experimentara;

sem perder tempo, as três pétalas da flor

costurou em sua jaqueta com ardor:

Era uma ninfa a mulher que ele ajudara!

Pelo caminho seguiu, um doce canto

da boca a lhe brotar, antes tão amargurada!

E assim seguiu, alegremente, o seu caminho,

até chegar aos portões da capital;

os guardas lhe sorriram, surpreendidos

e lhe abriram, sem pedir um passaporte;

foi indo em frente, espalhando a boa sorte:

por toda parte eram sorrisos repetidos,

os inimigos se abraçando com carinho,

todas as brigas suprimidas, afinal!...

E deste modo, até as sentinelas

deram-lhe entrada no palácio, num instante;

sem empecilhos, chegou até o trono real,

vendo o rei aborrecido e preocupado.

Mas seu semblante logo ficou desanuviado:

“Não sei porquê, sinto alegria total

e até as coisas mais tristes julgo belas!

A sua presença me parece deslumbrante!...”

Logo mostraram idêntica atitude

os cortesãos, os sacerdotes, militares,

pondo de lado seus rancores e seus vícios;

ficou o palácio todo cheio de alegria

e cada um mais presentear queria

esse rapaz que afastara os malefícios,

dos rostos apagando expressão rude,

felicidade a espalhar pelos lugares!...

A JAQUETA MÁGICA V

Logo o rei lhe consignou um apartamento:

joias, moedas, belas roupas já ganhara;

só precisava de sentar-se à mesa

ou acompanhar por toda parte o rei,

que favorável tornou mesmo até a lei.

Desperdício não escondia a sua surpresa,

mas tinha certeza da razão do encantamento:

eram as pétalas que na jaqueta costurara!

Assim que pôde, mandou algum dinheiro

como presente a Manoel e a Primorosa:

Tive sucesso com três pétalas de flor!

E lhes escreveu os detalhes da viagem,

como a ninfa encontrara de passagem,

recomendando aos parentes, com ardor:

Venham depressa para este paradeiro,

aqui terão vida bela e mais viçosa!...

Mas tinha o rei um sobrinho mau caráter

a quem toda essa alegria perturbava,

calúnias contra o visitante a espalhar;

porém o rei não apreciou sua atitude

e em consequência, lhe deu castigo rude:

“Como pajem de D. João eu o vou nomear!

Vai aprender a curvar a dura-máter!...”

(Que era como o rei ao cérebro chamava!)

O jovem príncipe chamava-se Ouropel,

pois era assim dourado só por fora,

tendo uma alma mais escura que o carvão!

Mas decidiu-se a esperar o seu momento

e assim fingiu demonstrar assentimento

àquela ordem, mas lhe ardia o coração

e na boca lhe amargava como fel,

só desejando seu patrão mandar embora!...

A JAQUETA MÁGICA VI

Mas como toda a outra gente o apreciava,

várias semanas teve de esperar;

então notou como João de sua jaqueta

jamais se separava... Gibões ganhara,

coletes ricos e casacos... e nada usara!

Desconfiou de qualquer magia secreta

e uma tarde, enquanto João sesteava,

pela janela a sua jaqueta foi lançar!...

Enquanto isso, Manoel e Primorosa

pegaram suas coisas de maior valor:

um chifre de metal e um espelho

e se puseram a caminho da cidade,

pensando em honras e riquezas de verdade!

E se assentaram junto de um carvalho,

no calor de uma tarde preguiçosa,

fazendo um lanche sem o menor temor!

Então se aproximou mendiga velha,

que lhes pediu, por favor, um pouco de água

para diluir o seu frasco de hidromel...

“Fiz com um ótimo mel, mas ficou forte,

encontrar vocês dois foi uma sorte!

Eu costumo ir vender lá no quartel...

Tomem um pouco. Verão que se assemelha

ao melhor vinho! Irão beber sem mágoa!...”

Ora, aquela era a Feiticeira Malagueta,

que na verdade, não conhecia magia,

mas de suas ervas entendia bastante;

no hidromel um sonífero ela punha

e quem o bebia, num estupor depunha,

aproveitando para roubar o viajante,

levando o furto para uma cova secreta:

quem acordava nada mais fazer podia!

A JAQUETA MÁGICA VII

Assim que os dois tomaram a bebida,

também caíram nesse sono de estupor

e ela chamou então dois anõezinhos,

Lince e Resina, que a ajudavam a furtar;

o espelho e o chifre foram logo retirar,

chapéu, casaco, o xale e até os lencinhos

que Primorosa pegara na saída,

muito felizes com tal espólio de valor...

Junto ao castelo Lince antes passara

e vira a jaqueta ser jogada da janela;

estava gasta, porém era de couro

e na falta de outro roubo, a carregou;

do pobre saque Malagueta destratou:

“Está puída, não me rende qualquer ouro!”

Lince, então, sobre Manoel a jogara,

numa troça que julgaram boa e bela!

Lá no castelo, Desperdício se acordou

e logo deu por falta da jaqueta!

Ouropel lhe mentiu não saber nada;

o bom rapaz percorreu todo o castelo,

mas não mais distribuía o gênio belo

e toda a gente ficou meio espantada:

Mas por que esse infeliz aqui morou?

Desperdício viu que a coisa estava preta!

E quanto o rei prendê-lo já ordenava,

fugiu depressa para seu apartamento,

agarrou um bom casaco na passagem

e amarrou os lençóis nessa janela

por que Ouropel a sua jaqueta bela

havia atirado e, cheio de coragem,

por uma altura de dez metros lá pulava,

por sorte sem sofrer um ferimento!

A JAQUETA MÁGICA VIII

Quando chegou embaixo, um lenhador

o ficou observando, boquiaberto...

“O que foi? Nunca viu ninguém descer

por uma dessas janelas do castelo?”

“Achei engraçado. Por aí vi cair casaco belo

no começo da tarde... Mas logo veio a correr

um anãozinho que conheço, meu senhor,

que agarrou esse casaco, muito esperto!...”

“Foi uma pena, senão eu o teria pegado!

Estava usado, mas vi que era de bom couro:

muito estranho que o jogassem assim fora...”

“E para onde foi esse anãozinho?”

“Seguiu em disparada no caminho

que leva ao mato e por lá se foi embora...”

João disse ao lenhador “muito obrigado”

e disparou atrás do seu tesouro!...

Ao mesmo tempo, Primorosa e seu Manoel

se acordaram já quase ao anoitecer

e perceberam que tinham sido assaltados!

Manoel viu então a sua jaqueta,

que ali deixara a Feiticeira Malagueta:

“Querida, acho que fomos embruxados!

Dei esta jaqueta a meu irmão fiel,

como foi agora sobre mim aparecer...?”

“Será que o pobre sofreu algum mal?

Não mostra sangue e não está rasgada...

Vou colocá-la, pois está ficando frio...”

E no momento em que a roupa ele vestiu,

o mundo inteiro para Manuel se abriu

e começou a trabalhar com brio:

uma choupana com galhos de faial

em meia-hora já estava preparada!...

A JAQUETA MÁGICA IX

E quando estava abrindo dois buracos

para enfiar os galhos de suporte

com uma faquinha, pois cheio de força estava,

enquanto colhia palha Primorosa,

uma surpresa teve, portentosa,

pois justamente de onde ele escavava,

para fora puxou dois pequenos sacos,

cheios de moedas de cobre – vasta sorte!

Logo em seguida, aprontaram uma cama

e com pedras, já um fogão improvisavam;

Manuel, cansado, foi logo se deitar,

mas Primorosa preparava a refeição,

fazendo fogo entre as pedras do fogão.

Com a jaqueta, Manoel se foi tapar

e ali adormeceu, junto à sua dama:

os alimentos logo no fogo cozinhavam...

Ao mesmo tempo, chegava na floresta

o pobre João, suando de esfalfado

e então sentiu o perfume da comida!

Até parece a que fazia Primorosa!

Logo encontrou choupana até formosa,

chegou à porta para pedir guarida

e a cunhada o recebeu com grande festa:

“Querido João! Pensei que o haviam matado!”

E João logo percebeu, à luz do fogo,

sobre Manoel lançada a sua jaqueta!...

Meio em dúvida, com os dedos a apalpou.

“Mas como foi que ela chegou aqui?”

“Não sei. Bebi hidromel e adormeci,

então notamos que uma velha nos roubou...”

João foi pegando sua jaqueta logo,

sem se importar com a explicação secreta!

A JAQUETA MÁGICA X

E colocou sobre Manoel o seu casaco,

com abotoaduras e bordado a ouro:

“Acho que ele não vai a troca lamentar!”

Com o movimento, o outro despertou

e bem contente seu irmão ele abraçou,

boa refeição logo os três a partilhar;

depois juntos contaram cada saco

de moedas, para eles um tesouro!...

No outro dia, para a aldeia os três voltaram

e aumentaram a sua velha casinha;

Desperdício foi buscar sua ferramenta

na toca oculta em que a havia escondido;

já não faltou quem o quisesse por marido:

rapaz alegre que tanta obra nova inventa!...

Os dois irmãos e as esposas prosperaram,

com muitos filhos a alegrar a sua vidinha!

Mas logo Zéfiro a Anêmona descobriu,

virada em renque de flores num canteiro

e sendo um vento, muito a acariciou,

porém a Clóris tampouco ele deixava,

todas as flores o espertalhão beijava!

Mas quando Anêmona sobre a bruxa lhe contou,

nos ouvidos do rei soprou e zumbiu,

que seus soldados enviou ligeiro!...

Embora presos Malagueta e os anõezinhos,

Ouropel prosseguiu com suas tramelas

e seu tio mandou pô-lo na prisão,

que depressa dos soldados escapou

e no seu apartamento se encerrou,

mas ao ver que sua porta arrombarão,

tentou seguir de João iguais caminhos,

mas só os valentes é que fogem por janelas!

EPÍLOGO

Malagueta virou a cozinheira

dos pobres presos da real cadeia

e dos porcos foram cuidar os anõezinhos,

que não eram malvados, afinal,

mas dos marrões temiam sofrem mal.

De Ouropel, para evitar atos daninhos,

prendeu-o o rei por sua vida inteira,

para não mais falar mal da vida alheia!

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com