Lili Marlene
Lili era a personagem central do livro, aquele da capa cor-de-rosa, que tomara o lugar do sisudo bê-a-bá. Novos tempos se anunciavam. O fim da guerra já fazia seus treze anos e a construção da fantástica novacap estava em flagrante e empoeirado progresso. Ouvia-se tudo isso, e mais, no Repórter Esso.
Marlene era em carne e osso. Sem exageros de recheio. Mas me dava receio: não olhava para mim. Só para os livros e rumo à casa, cujo roteiro, em parte, coincidia com o meu. Cabelos negros, curtos, aneladinhos e uns olhos bem pretinhos. Impecável no seu uniforme e sua pastinha que já nem lembro que cor tinha. Marronzinha?
Durante as classes, mesmo nos momentos de pleno alvoroço, mantinha-se o fosso: meninos e meninas tinham a entrada e o recreio separados. Auschwitz fur kindern? E mesmo que não fosse judiazinha a Marlene, de mim ela judiava sim, por de mim viver indene. Umas poucas vezes que ousei me aproximar, ou fui atropelado pela gagueira, ou por demais palrar. Não havia como calibrar.
Numa coisa contudo, éramos pares. Bons alunos, ganhamos juntos livros
por passar de ano bem classificados. Ela seguramente leu o dela, mas nada comentou comigo. Eu, quando feito o primeiro presidente de nosso clube de leitura, no terceiro ano, não recebi seu voto. Mas nem eleição houve, a mestra, querendo dar um incentivo aos meninotes, que literal e didaticamente andávamos atrás das meninas, proclamou-me ao cargo. Pra manter a matrilineal trajetória, confiei meu discurso de posse à mana mais velha Vitória. Ela, afinal tinha letra melhor que a minha.
Marlene brilhou noutros campos. Por esforço próprio. Acompanhei uma exposição sua sobre o trabalho jesuítico no Brasil e, só não a abracei porque fogo neguei.
E veio a diáspora, com nossa formatura. Doce doce é a rapadura.