O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS

William Lagos, 7 nov 14

(Adaptado de “João Esperto”, folclore português recolhido na Paraíba por Sílvio Romero e recontado por Monteiro Lobato em prosa, versão poética de William Lagos. O trecho em cordel está no original.)

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS I

Certa vez, um casal de camponeses

criava um filho, batizado João;

sua mãe morrera e vivia com a madrasta,

lábios de coelho, dentes de torqueses,

que o odiava pela única razão

que para os três a comida nunca basta.

Quando cresceu, João ia comer fora

frutas do mato, alguma pescaria,

a bodoque caçando umas perdizes,

que trazia para casa, sem demora;

era a madrasta dos três que mais comia,

língua ferina, tornando a todos infelizes.

O pai era bem velho e adoentado

e sua terrinha era pequena e pedregosa,

razão por que produzia nela pouco;

da pobreza, João era tido por culpado;

mesmo trazendo caça, a invejosa

o maltratava, igual que faz um louco.

Desde pequeno, ele criara cachorrinha,

que pelo nome de Pitanga respondia,

única amiga que tinha do seu lado;

dormia na rua, toda encolhidinha

e a madrasta afirmava que algum dia

a mataria para fazer um ensopado!...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS II

Um dia em que fazia uma caçada,

chegou João bastante longe de sua casa

e encontrou no caminho um viajante;

sentaram os dois no barranco junto à estrada,

batendo papo, numa conversa rasa,

até que o outro contou coisa interessante.

“Do outro lado daquelas montanhas

se encontra o País das Três Princesas,

porque o rei seu pai só teve filhas;

a mais velha é mulher cheia de manhas

e causa ao pobre pai grandes tristezas:

para casar-se o fez cair em armadilhas...”

“A coisa é assim. Fez com que prometesse

que só daria a sua mão em casamento

a quem algum enigma apresentasse

a que a princesa nunca resolvesse;

Tarsila possui excelente julgamento

e nada surgiu que não adivinhasse...”

“O problema é que decretou pena de morte

para quem a sua mão lhe pretendesse,

sem insolúvel lhe apresentar adivinhação;

muitos príncipes já enfrentaram essa sorte

sem que a princesa perdão lhes concedesse:

vão ao patíbulo sem qualquer apelação!...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS III

“Tarsila já tem vinte e cinco anos;

vinte e um e dezenove as suas irmãs,

que tampouco conseguem um marido,

porque a lei do reino traz insanos

dispositivos e por mil razões malsãs,

sem a mais velha casar, lhes é proibido!”

“Todas as duas têm pretendentes certos,

que há anos a corte já lhes fazem;

todos dois nobres de excelente qualidade;

mas os casórios continuam incertos;

ao rei seu pai herdeiros nunca trazem

e todos vivem na maior infelicidade!...”

“Naturalmente, o marido da mais velha

será o herdeiro do trono, temporário,

até que um filho atinja a maioridade;

só por isso, a ambição ainda se espelha

e muitos nobres fizeram o itinerário,

para arriscar-se ao teste, por vaidade!”

“Mas já tantos ali se encontram enforcados

que o rei determinou que seus burgueses

também ao teste se poderiam apresentar;

mas depois de outros tantos supliciados,

autorizou que até mesmo camponeses

a mão da filha tentassem alcançar...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS IV

“Mas camponeses são gente mais prudente

ou, quem sabe, sejam menos ambiciosos

e só uns dois ou três se apresentaram...

Sempre a princesa foi mais inteligente

e já não chegam sequer os mais vaidosos

depois que a esses primeiros penduraram!...”

De imediato, João quis fazer a tentativa:

tinha certeza de que venceria a princesa

e que com ela, finalmente, casaria!...

Foi junto ao pai fazer a tratativa:

“Eu quero correr mundo e, com certeza,

tendo sua bênção, boa sorte alcançaria!...

“Claro, meu filho, que te abençoarei

e Deus, por mim, te abençoará também!...

Tua madrasta também se alegrará,

que o alimento que na roça plantarei

só para os dois é mais do que convém!

A tua partida prazer lhe causará...”

Pobre é o cego que tem bom coração!

De sua mulher nem percebia a maldade

e foi-lhe dar a notícia, alegremente...

Mas a madrasta, embora sempre a rezingar,

sabia muito bem que, na verdade,

João enchia as suas panelas bem frequente!

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS V

E assim, longe de sentir uma alegria,

ela ficou a mastigar maior rancor!

Não teria carne para encher sua pança!

E lastimar a sua partida não fingia,

mas com o enteado firme em seu pendor,

a mulher arquitetou grande vingança!...

“Vou te fazer um pão para a viagem!”

disse ela, escondendo sua maldade

e misturou veneno na farinha!...

João despediu-se, cheio de coragem

e partiu logo, em busca da cidade,

só acompanhado pela cadelinha!...

Levou uma muda de roupa na trouxinha

e saiu a caminhar, alegremente;

em um riacho fez boa pescaria,

que dividiu com sua cachorrinha:

“Cara Pitanga, nos livramos, finalmente,

dessa madrasta, que só mal nos queria!...”

Levou a tarde subindo uma montanha

e lá no alto toda a noite ele acampou,

comendo as sobras de seu peixe assado.

No outro dia, de novo a fome se arreganha,

caça ou frutas ele acharia ali pensou;

ao meio-dia, porém nada havia encontrado!

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS VI

Sentou-se à sombra de uma pitangueira;

não achou frutas, mas pegou seu pão;

um bom pedaço deu para a amiguinha,

que abocanhou a comida, bem ligeira;

ele comeu menos e com grande precaução,

vendo ser árida a região que se avizinha.

De repente, Pitanga teve convulsão,

pôs-se a babar e depois estremeceu,

sacudiu as patinhas e apagou!...

Salvou-me a vida! – pensou o pobre João,

que vomitou depressa o que comeu

e com os dedos uma cova lhe escavou...

Louco de pena, enterrou a cachorrinha;

Disse: “Pitanga, este lugar é o certo:

pois vais dormir sob uma pitangueira!”

Mas a seguir, o veneno que ele tinha

ingerido, vendo a morte bem de perto,

causou-lhe dores, tremuras e canseira!...

João foi deitar-se um pouco mais adiante

e passou horas dormindo, até sarar.

Quando acordou, viu que haviam desenterrado

Três urubus a cachorrinha e num instante,

espernearam e estremeceram a piar,

cada um dos três morrendo envenenado!...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS VII

João reenterrou de Pitanga o que restava

e com um galho lhe aprofundou o buraco;

vendo os urubus, pensou vender-lhe as penas

e logo a seguir, pela senda ele marchava,

os urubus às costas, parecendo negro saco,

sem ver comida ou um riachinho apenas!...

Então, em uma curva do caminho,

viu sete homens, encolhidos e esfomeados:

“Que comida trazes nesse saco preto?”

“São só três urubus, meu bom vizinho!”

“Então os passa cá para os meus lados,

sempre é uma carne para jantar completo!”

E como os sete traziam espingardas

e logo para ele as apontavam,

João nem tentou ao assalto resistir!

Os sete tinham de fome as caras pardas

e os urubus num instante devoravam,

antes que aviso lhes pudesse transmitir!

E logo os sete pelo chão rolavam,

espumando pela boca e estremecendo...

Como era forte o veneno da madrasta!

Os sete ladrões gemiam e uivavam,

mas bem depressa, um a um, foram morrendo!

Meu pai, tua bênção o mal de mim afasta!

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS VIII

João escolheu das roupas as melhores

e igualmente a melhor das espingardas

e toda a munição que ele encontrou;

num buraco enterrou os salteadores

e os recobriu, a pedir dos anjos guardas;

com a própria arma uma pá improvisou!

Mas o trabalho o deixou muito cansado...

Mesmo assim, não quis ficar nesse lugar

e continuou ao longo do caminho,

até achar um matagal cerrado...

Uma perdiz se ergueu para voar:

João atirou, mas só passou pertinho!...

Com bodoque é que estava acostumado

e assim não teve a mira suficiente,

mas nos espinhos ouviu um piado e espiou:

uma pomba-rola ele havia acertado!

Melhor que nada para matar fome da gente!

Agradecido, sua rolinha depenou...

Mas não havia lenha e nem espeto!

E já pensava até em comer crua,

quando enxergou uma cruz abandonada!

Com um tiro, quebrou-a e fez graveto...

Pediu desculpas ao morto e, à luz da lua,

uma fogueira acendeu, bem preparada!...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS IX

Mas sentiu sede, depois de bem comer

e não havia nem poça ali por perto!...

Viu então um burro pastando na macega;

montou depressa e o animal pôs-se a correr

por toda a extensão do areal deserto:

lambeu o suor igual vinho de adega!... (*)

(*) Ai, que nojo! 

Então o burro, exausto, tropeçou,

caindo ali, na beira do caminho;

João pulou no chão, sem se pisar

e viu o objeto em que o bicho tropicou:

uma caveira que fazia um barulhinho!

Ficou com medo, mas foi ao morto consultar...

Mas não falava! Era apenas um vespeiro!

Teve mais medo que as vespas o picassem!

Ergueu o burro e saiu em disparada!

Porém o animal despencou depois ligeiro

e como as patas para a frente se esfregassem,

uma panela ele viu ser desenterrada!...

Estava cheia de tostões de cobre!

João outra vez à bênção agradeceu

e colocou as moedas na trouxinha...

E tão logo outra curva o passo dobre,

viu uma venda, em que bebeu e comeu

e lhe indagaram a que destino vinha...

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS X

“Estou em busca do País das Três Princesas,

para propor-lhes minha adivinhação...”

Mas logo todos tentaram dissuadi-lo:

“Essas forcas engordaram de tristezas

e ninguém mais vem à tal competição,

que a princesa tudo adivinha sem abalo!...”

“Por favor, nem experimente, meu rapaz!”

“Mas a princesa, ao menos, é bonita?”

“Ah, sem dúvida, tão esperta quanto bela!

Mas sua esperteza a todos o mal traz;

suas duas irmãs empacaram em sua data:

passa-se o tempo e cada qual fica donzela!”

Porém João não permitiu-se dissuadir...

Ao longe já avistava a tal cidade

e no caminho, achou princesa muito bela:

“É com a senhora que preciso discutir?”

“Não, sou Drusila, forçada por maldade

de minha irmã Tarsila, a ser donzela!...”

“Também você irá morrer, viajante!

E é um rapaz tão bem apessoado!

Se já não fosse noiva, até o queria...

Mas observe as forcas, logo adiante:

de língua de fora quem pensou ter triunfado!

Bem que você a derrotasse eu gostaria!”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XI

Chegou ao patíbulo, muito mal cheiroso:

Vinte enforcados ali se balançavam

e João sentiu uma pontinha de receio...

Veio o carrasco, com ar bem tenebroso:

“Pensei que hoje minhas cordas descansavam!

Mas outro tolo agora vejo, assim o creio!...”

João ao carrasco até cumprimentou,

porém seguiu a caminho da cidade,

com certo nojo até de olhar pra trás!

De outra princesa então se aproximou,

muito bela e ainda bem na flor da idade:

“É com a senhora que a adivinhação se faz?”

“Não, eu sou Djamila, a mais moça das três,

mas antes de casar, vou ficar velha!...

Meu pretendente talvez canse de esperar...

Porém vejo que da forca é outro freguês;

nesses lá atrás não tem medo e não se espelha?

Daqui a pouco também estará a balançar!...”

“Meu interesse é que Tarsila, finalmente,

se case, para que eu possa me casar...

Mas você é jovem e bem apessoado...

Se eu já não fosse noiva, francamente,

de tê-lo por marido iria gostar...

Assim lhe digo: você vai ser derrotado!...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XII

“Não, minha princesa, eu serei o vencedor:

trago comigo a bênção de meu pai,

que no caminho até aqui me protegeu...”

“Então vá, pobre diabo! Meu amor

de qualquer modo hoje consigo vai

e vou rezar por bom destino seu...”

Chegou João às portas do castelo

e interpelado foi pelo porteiro;

mas depois de explicar o que queria,

o funcionário lhe fez mais um apelo:

“Bom rapaz, vá embora bem ligeiro,

por que razão a morrer se arriscaria?”

Contudo, João insistiu: “Tenho certeza,

sou abençoado e vou vencer a prova!”

Então o porteiro o levou perante o rei,

a cujo lado sentava-se a princesa.

“Meu filho, veio em busca de sua cova?”

“Não, Majestade, que vou vencer eu sei!”

Até Tarsila esforçou-se em dissuadi-lo:

“Meu bom rapaz, você é bem apessoado

e até gostaria de tê-lo por marido,

mas não desejo para a forca conduzi-lo!”

“Princesa, por ambição eu fui chamado,

e por vaidade cheguei aqui induzido...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XIII

“Mas agora que eu a vi, tenho certeza

de que jamais quererei outra mulher!

Minha vida vale menos que seu beijo!”

Ruborizou-se então a linda princesa:

“Belas palavras, mas não sabe que qualquer

enigma eu resolvo neste ensejo...?”

“Não importa, o meu lhe vou apresentar,

tão somente pelo bem de sua presença;

depois de ouvi-la, então eu morrerei!”

“Pois bem, se quer assim, pode arriscar,”

disse a princesa, sua voz um pouco tensa,

“Ao vê-lo morto, não me alegrarei!...”

“Mas eu me alegro por tê-la visto em vida!

E assim um enigma lhe irei apresentar...

Existe, acaso, alguma condição...?”

“Não, pois toda a pergunta de saída

eu sempre consegui solucionar

e já lastimo sua morte de antemão!...”

Então o jovem encheu de ar o peito

e com voz firme, começou a recitar,

a corte inteira muito surpreendida...

E repetiu três vezes, sem defeito,

a princesa sem conseguir adivinhar

esse cordel que lerá logo em seguida:

“Saí de casa com massa e pitanga;

a massa matou pitanga

mas pitanga matou três;

esses três mataram sete

e das sete, escolhi a melhor;

atirei no que vi e matei o que não vi;

com madeira santa assei e comi;

bebi água sem ser do céu;

vi o morto carregando os vivos

e o burro sabendo

o que os sábios não sabem;

resolva agora, princesa,

ou me dê cá sua mãozinha!...”

O PAÍS DAS TRÊS PRINCESAS XIV

Pediu Tarsila um dia mais para pensar,

mas suas irmãs se puseram a protestar:

“Assim não vale! Responda logo, Tarsila!”

Porém João apressou-se a concordar:

“Princesa, eu deixo, se a puder contemplar

Mais umas horas...” “É errado”, diz Drusila!

“Ele ganhou!” – Djamila reclamou,

porém João concedeu um dia e uma hora

e repetiu, para que tomassem nota;

hospedá-lo com honra, o rei mandou;

deram-lhe banho e roupas novas, sem demora,

embora ainda temessem sua derrota!

Nessa noite, no palácio pernoitou

e decorrido, então, o dia e a hora,

foi de novo ao salão encaminhado,

quando Tarsila sua derrota confessou...

Três casamentos celebraram, sem demora,

depois de tanto tempo ser adiado...

A lua-de-mel durou uma semana,

João e Tarsila se amaram com carinho

e então ele se ofereceu para explicar,

mas sua esposa, num sorriso, lhe proclama:

“Foi sua viagem que descreveu, bobinho!

Eu que fingi não conseguir adivinhar!...”

EPÍLOGO

O pobre João ficou um tanto atrapalhado,

mas ela disse: “Não sei os pormenores,

mas se eu dissesse que era a sua viagem

que eu acertara, você teria concordado

e lá estaria, no patíbulo dos horrores,

se não falei, foi por falta de coragem!...

Eu me agradei de você para marido;

as minhas irmãs não podiam se casar

e francamente, eu já passei da idade!...

Nenhum dos outros a mim tinha querido,

mas só o trono é que pretendia herdar.

Porém nós dois... nos amamos de verdade!