A FADA ARANHA
A FADA ARANHA
(Conto fantástico original de William Lagos, 10 out 14, embora contenha os habituais elementos dos contos de fadas e leves homenagens a Alighieri e a Borges. Esta história foi sonhada em partes durante duas noites. A “água de angústia” é citada na Escritura Sagrada.)
A FADA ARANHA I
Era uma vez, em um país distante,
uma pobre mulher, que nem sabia
se era casada ou ficara viúva;
de seu marido só recebera a luva
de ferro, que era então chamada “guante”,
e fora achada no campo de batalha...
Com grande brio ao inimigo espalha
perante o si o garboso Leothar,
o exército do rei a comandar,
numa vitória que ao reino salvaria!...
Diziam alguns que Leothar era prisioneiro;
outros falavam que, sendo canibais
seus inimigos, fora preso e devorado;
mas o certo é que não fora achado;
e por ter raiva dele, o tesoureiro
suspendera o seu soldo, por despeito
e à viúva negara qualquer direito:
não merecia o soldo por lutar
e nem pensão por um vivo iria pagar,
amparado em certas leis imemoriais...
O próprio rei por Leothar nutria inveja,
pois entre as tropas era muito popular;
e algumas vezes, até perdia o sono
pelo temor que lhe tomasse o trono,
já que seu próprio avô, como se enseja,
tomara o trono a seu rei anterior;
e Leothar, com todo esse valor,
descendia da antiga dinastia
em linha direta, como se dizia,
e se quisesse, o poderia derrubar!...
Isto ocorreu, de fato, em muito império
e assim Belezzar apoiou seu tesoureiro,
embora muita gente intercedesse
que à esposa e à filha concedesse
alguma soma como um refrigério:
para Leora e sua filha, Leodiceia,
até que fosse concluída essa epopeia;
mas disse o rei que só depois de sete anos,
se o general não voltasse, eram seus planos
declará-la viúva e lhe pagar o soldo inteiro.
A FADA ARANHA II
Secretamente, com o tesoureiro combinou
que espalhasse pelo reino uns espiões
e se acaso o guerreiro retornasse,
traiçoeiramente qualquer deles o matasse
e que seu corpo lhe enterrassem ordenou;
Leora, afinal, era apenas a sua mulher
e não teria pretensão sequer;
porém incômoda seria Leodiceia,
da dinastia descendente, ao que se creia:
para matá-la precisaria de boas razões...
Contudo Leora conseguiu uma audiência
com a rainha Belegilde e a comoveu,
que deu-lhe emprego, por pura caridade:
não mais do que servente, na verdade,
mas garantia de sua subsistência;
entre os criados teve alojamento,
para si e a filha a certeza do alimento;
e Belezzar com a esposa concordou,
e desta forma a rival inocente conservou
sob suas vistas, depois que a recebeu.
Partiu Leora então para o castelo,
a carregar as poucas coisas que possuía
em duas trouxas, incluindo o guante,
levando a filha pela mão adiante,
longa alameda subindo nesse zelo;
de ambos os lados bandeiras drapejavam
e como símbolo heráldico mostravam,
vista de costas, grande aranha vermelha,
sobre campo amarelo qual centelha,
“goles” e “jalde”, conforme se dizia.
Leodiceia foi indagando pela estrada:
“Por que essas aranhas, mamãezinha?”
“São os símbolos do reino, minha querida:
a aranha em goles a vitória garantida,
o campo em jalde a riqueza acumulada.”
“Mas nunca vi qualquer aranha vermelha...
Tenho até medo dessa aranha velha!”
“Vou-lhe contar então grande segredo,
mas nunca fale a ninguém, por maior medo,
especialmente nem ao rei, nem à rainha...”
A FADA ARANHA III
“Essa aranha provêm da antiga dinastia:
pintada no escudo do avô desse seu pai,
que foi derrotado pelo avô do atual rei,
que ocupa o trono contra nossa lei;
pela justiça, Leothar se assentaria...
Essa aranha lhe pertence, minha querida,
mas se souberem, será perseguida:
embora seja somente uma criança,
à pretensão de reinar tem esperança
e pela aranha grão respeito mostrar vai!...”
Ficou a menina muito surpreendida
e prometeu não contar nunca o segredo,
grave silêncio a guardar pelo caminho.
O mordomo encarou-a, com carinho:
“Essa é a filha do general perdido?
Decerto será muito corajosa...”
Porém ficou Leodiceia silenciosa;
em um quartinho as duas se alojaram;
como era tarde, logo se alimentaram,
Leodiceia dormindo sem ter medo...
No outro dia, Leora recebeu
um uniforme, balde e os utensílios
adequados às suas novas funções;
a menina a conquistar os corações
e Leora logo confiança mereceu,
encarregada de lavar os corredores
e a encerá-los com belos esplendores,
seu trabalho fielmente a executar,
sem por um único momento se queixar,
deixando os pisos em luzentes brilhos...
Contudo, já passada uma semana,
iniciando a trabalhar de madrugada,
viu uma aranha correndo para ela
e sem pensar, com a vassoura bateu nela:
matando o artrópode, escuro como lama!...
Seguiu varrendo, misturando-a ao lixo,
horrorizada com o tamanho de tal bicho!
Então surgiram dois criados, que indagavam
se ela vira o animal que procuravam...
“Eu a matei...” – disse Leora, descansada.
A FADA ARANHA IV
“Você a matou? Matou a aranha do rei?”
Os dois criados mal podiam acreditar!...
“Por que, fiz mal? – disse ela, surpreendida.
“Era a mascote do rei! Decerto com sua vida
irá pagar por quebrantar-lhe a lei!...”
Nesse momento, entrou pela janela
o primeiro raio de sol; e só então ela
viu ser vermelha a aranha que matara!...
Em vão protestou que ela a atacara:
foi amarrada para ante o rei se apresentar...
Belezzar só apareceu daí a uma hora,
deixando Leora a esperar, acorrentada,
só aos poucos compreendendo o que fizera,
ao ver a consternação que o ato gera...
Primeiro ao rei apresentaram uma senhora:
“Você deixou a minha aranha se escapar?”
“Sim, Majestade,” disse ela, a balbuciar.
“Foi a redoma que caiu e ela fugiu,
chamei os servos e a gente a perseguiu,
quando a achamos, já fora assassinada!...”
“A culpa é sua e por tal negligência
você será executada ao entardecer!...”
Levaram a mulher ainda a implorar...
Para Leora então voltou-se Belezzar,
seu rosto triste a demonstrar paciência.
“Minha filha, por que tal crime cometeu?”
“Pensei fosse daninha! Nunca me ocorreu
que ainda existisse essa aranha vermelha;
pensei que fosse tão só uma lenda velha...
Ela atacou e apenas quis me defender!...”
“Até compreendo que com ela se assustou,
mas tais aranhas são mansas e cuidadas
há gerações, como símbolos do reino;
entendo que apenas começou seu treino:
foi o mordomo que nada lhe explicou!...”
E ordenou que cinquenta chibatadas
ao entardecer, lhe fossem aplicadas.
“Mas o que farei com você, a assassina?”
“Majestade, apiade-se de minha sina:
Nunca pensei que aranhas fossem consagradas!”
A FADA ARANHA V
“Elas garantem da dinastia a continuidade!...”
disse-lhe então, em tom tristonho, Belezzar.
“Só que agora elas se encontram em extinção!
A última fêmea você matou, sem ter razão!...
Compreende de seu crime a enormidade...?”
“Não, Majestade, de fato, nem pensei:
tive um impulso e com a vassoura a esmaguei...”
“Entendo bem, mas não a posso perdoar;
por negligência, irei aos outros castigar;
quanto a você, vou meu Conselho consultar...”
“E seu castigo só depois determinar.
Nunca antes foi tal crime cometido
e nem calculo qual será a sua tortura;
será levada à prisão de mais agrura:
pela manhã a mandarei buscar...”
“E minha filhinha? Quem vai dela tomar conta?”
“Essa é sua preocupação de menor monta...
Mas aproveite para rezar bastante
e se prepare para um ordálio delirante,
que o reino inteiro você deixou comprometido!”
De sua cela, ela escutou as chibatadas
nas costas do mordomo desferidas;
da ama da aranha a execução por negligência,
a suplicar de pavor e de impotência...
Muito mais que das torturas esperadas
ela chorava por sua filha Leodiceia;
somente as pedras das paredes sua plateia...
Somente em vão ao carcereiro suplicou
notícias da menina, quando este lhe entregou
seu pão e água e saiu sem despedidas...
No dia seguinte, levaram–na até o rei
e então Leora ajoelhou-se, tiritando...
Um fora espancado, a outra enforcada!
A que castigo seria ela condenada?
“Sei crime é grave e não a perdoarei,”
disse-lhe Belezzar, “mas não é crime de morte:
há três maneiras de expiar sua sorte:
primeiro, pode se casar com o macho velho!”
“Mas sou casada, senhor!...” “O meu Conselho
sua viuvez já está considerando...”
A FADA ARANHA VI
“Normalmente, sete anos lhe daria,
antes da morte de seu marido decretar;
contudo, diante destas circunstâncias,
poderemos pôr de lado estas instâncias
e então com o macho você se casaria...”
“Quer casar-me com uma aranha, meu senhor...?”
“Segundo a lenda, com mulher foi genitor
um outro macho... Foi assim que nos surgiram
as aranhas vermelhas... Vocês juntos gerariam
algumas fêmeas, para a espécie continuar!...”
Belezzar bateu palmas, firmemente:
“Tragam o noivo, para ela conhecê-lo!”
Então trouxeram de vidro uma redoma
em que enorme aranha negra ali assoma:
olhos vermelhos, preto o pelo inteiramente...
“Segundo dizem, muitas vezes no passado
mulher humana tais aranhas tem gerado...”
Ao ver o monstro, Leora desmaiou!...
Porém depois que alguém a reanimou,
nem sequer erguia o rosto para vê-lo!...
Riu Belezzar, com falsa benevolência:
“Segundo entendo, não deseja se casar...”
Leora pôde apenas gaguejar:
“O macho é negro! De nada iria adiantar...”
“Ah, nessa espécie só têm rubra aparência
as fêmeas... Nascem os machos de outra cor.
Ele está velho, mas é um bom reprodutor...
Mas tudo bem, existe outra alternativa...
Agora nos tragam a segunda cativa!...”
“Majestade, não pode apenas me matar?”
“Sem a menor dúvida, se você prefere a morte!...”
Chegou uma caixa de vidro retangular:
sobre lençóis de linho, lá estirada
a imóvel Leodiceia podia ser contemplada...
Leora gritou: “Ai, que terrível sorte!
Minha pobre filhinha!... Mas por que a mataram?”
“Não está morta... Só a narcotizaram,
mas de fato, deve ser morta na ocasião
e o punhal desferirá sua própria mão!
Seu jovem sangue irá ao macho alimentar...”
A FADA ARANHA VII
“Segundo afirma o meu bom tesoureiro,
essas aranhas são hermafroditas (*)
e conseguem a si mesmas fecundar,
igual minhocas, para a espécie continuar...
Mas sangue virgem deve obter primeiro...”
“Majestade, não pode meu sangue receber?...”
“Obviamente, sendo mãe, você é mulher...
Já sua menina, tendo apenas cinco anos,
nos satisfaz completamente os planos:
conseguiremos aranhazinhas bem bonitas!...”
(*) Animais inferiores, cada qual com ambos os sexos.
“Ah, Majestade, suplico seu perdão!...”
E dirigindo-se aos demais presentes:
“Nobres senhores, não tendes caridade?
Nem ao menos um triste pingo de bondade?”
Mas ninguém veio mostrar-lhe compaixão;
alguns até a parecer rir à socapa,
bocas cobertas por chapéu ou capa...
Belezzar os encarou, severamente:
“Não há motivo para qualquer riso indecente:
é um sortilégio que nos vem de antigas gentes!...”
E disse o rei: “Entreguem-lhe o punhal!”
“Majestade, como quer que a filha eu mate?”
“Eu poderia ordenar a outra pessoa,
mas o crime foi seu e outrem destoa:
só você pode reparar seu próprio mal!
Prefere o macho?” “Não, por quanto é santo!”
Leora exclamou, já debulhada em pranto.
O rei fingiu seus conselheiros consultar
e então falou: “Terceira chance vou-lhe dar;
não haverá outra, caso essa não acate!...”
“Então me diga qual é, meu soberano!”
“Você pode outra aranha fêmea ir procurar.
Dizem que existem algumas lá no norte,
talvez até de extraordinário porte...
Eu lhe darei um dia e mais um ano!...
Se dentro desse prazo não voltar,
a sua menina alguém irá sacrificar
e seu sangue virgem servirá de refeição
para causar a hermafrodita mutação!...
Aceita esta, ou também vai recusar?...”
A FADA ARANHA VIII
“Na sua ausência, será a menina bem tratada;
não lhe negaremos o quanto precisar;
somente será conservada no castelo,
como refém, a garantir o seu desvelo;
se não voltar, ela será sacrificada
e por sua própria culpa irá pagar,
a aranha macho seu sangue a alimentar!...”
“Eu o farei!” – exclamou Leora, com coragem.
“Pois muito bem. Levem-na à torre de menagem,
onde o retorno de sua mãe irá aguardar!...”
Leora não pôde despedir-se ou dar um beijo
na filha presa em seu vítreo caixão.
“Pois muito bem,” – disse o ímpio Belezzar.
“Numa caverna costumavam-nas avistar,
porém lhe aviso que há gerações o ensejo
de contemplá-las não alcançou qualquer pastor;
anteriormente, as combatiam com ardor,
pois costumavam comer as suas ovelhas
os machos negros mais do que as vermelhas:
tem pela frente uma longa expedição!...”
“Procurarei, Majestade...” – disse Leora,
“e dentro de seu prazo eu voltarei!”
“Terá de ir sozinha, compreendeu?
Tendo uma escolta, não será mérito seu...
Mas lhe darei certos favores nesta hora:
Você receberá o Manto da Tristeza,
a Água da Angústia e, com plena certeza,
o Pão da Mágoa... E em sinal de minha bondade,
levará os Tamancos da Adversidade...
E mais um saco de moedas lhe darei!...”
“Obrigado, Majestade, sei seres um rei justo.”
“Não é justiça, porém necessidade:
precisa o reino de seu total sucesso
e assim aguardarei o seu regresso;
deu-lhe o Conselho estes dotes de alto custo:
o Manto é tecido de poderosa teia;
com os Tamancos, do que pisar não se arreceia;
um Anel de Pelo do macho irá levar;
como a Água e o Pão, só o deverá utilizar
com grão critério e muita sobriedade!...” (*)
(*) Feito de espículas e não de pelo igual ao dos mamíferos.
A FADA ARANHA IX
Marchou Leora em direção ao norte,
com a Água no cantil, Pão no bornal
e mais um saco de moedas esverdeadas,
por enfrentarem o ar, azinhavradas
e se dispôs a buscar a melhor sorte...
Mas assim que ela partiu, o rei ordenou:
“Leve esse bicho para o lugar de que o tirou!
Mal consigo contemplar tal ser nojento!...”
Então mandou chamar, em tal momento,
Mordomo e aia, para premiá-los, afinal!...
“Vocês agiram muito bem e a recompensa
ser-lhes-á paga por meu tesoureiro!...”
Sem discutir, todos dois agradeceram
e a Aranha Negra levou seu carcereiro,
para guardá-la na masmorra imensa...
Eram elas símbolos da antiga dinastia
e Belezzar a sua raiva só fingia,
como pretexto para mostrar ao povo,
na eliminação do último renovo
dessa linhagem que reinara ali primeiro.
De fato, não esperava que Leora
de sua missão jamais pudesse retornar;
e se o fizesse, tarde demais seria,
porque a menina muito antes mataria...
De qualquer modo, ordenou que tropa fora
Leora em todo o caminho a espionar...
Se por acaso, chegasse a retornar,
que a lançassem num buraco fundo!...
Pois votava a Leothar ódio profundo
E só queria mais mal lhe provocar!...
Após um mês de marcha, sem sucesso,
a uma floresta tenebrosa chegou Leora,
sendo atacada por um bando de ladrões!
Desapontados com o cinábrio dos dobrões,
bastante depreciados no seu preço,
eles abriram seu cantil e seu bornal,
recuando ao ver como cheiravam mal
aquele Pão e aquela Água que repassa:
“Vá-se embora! É mensageira da desgraça!”
E até as moedas lhe devolveram nessa hora...
A FADA ARANHA X
Sem entender por que a haviam libertado,
ia Leora prosseguindo o seu caminho,
quando os ladrões, sem aviso, retornaram
e sem palavra, num poço seco a derrubaram,
sem qualquer súplica lhe terem escutado!
Ela batia com força nas paredes,
Mas o Manto a protegia como redes
e caiu em pé sobre seus dois Tamancos,
mas nesse escuro só se movia aos trancos,
presa no fundo tenebroso de azevinho...
Mas tão logo no exterior caiu a noite,
sem lhe mostrar sequer a luz de estrelas,
divisou Leora uma luzinha vermelha
por uma fresta da parede velha
e começou a puxar tijolos com afoite,
a rubra luz cada vez mais aparente...
Seria uma aranha? – pensou ansiosamente.
Mas ao invés, uma Salamandra apareceu;
num insuflar de fogo frio a acometeu,
mil revoada de centelhas belas!...
Mas o Manto da Tristeza a protegeu,
as faíscas só a brilhar ao seu redor.
A Salamandra feito um gato chia,
Surpreendida por que a Leora não feria:
“Quem é você que meu ninho surpreendeu?”
“Não pretendia em nada perturbá-la;
neste poço me jogaram; abri a vala,
vermelha aranha procurando achar...”
“Mas por que quer a elas encontrar?...”
Contou-lhe a jovem sua história sem temor.
“De fato, encontra-se no caminho certo:
grande bem lhe fizeram os salteadores,
sem saber nada ou deliberadamente...”
“De amaldiçoada chamou-me aquela gente...”
“Seu alvo não se encontra nada perto,
mas é um atalho e caso o siga com coragem
os seus Tamancos lhe darão portagem...
Sabia o rei realmente o que lhe dava...?”
“Seguiu o Conselho no que lhe determinava,
não acredito que conhecesse reais valores...”
A FADA ARANHA XI
“Para ele mesmo de nada serviriam,”
garantiu-lhe a Salamandra, firmemente.
“Mas irá passar pelo Lar do Desespero...
Eu sou a guarda do portão e aqui espero
os malditos que algumas vezes chegariam...
Os ladrões a declararam amaldiçoada
e só por isso conseguiu achar a entrada,
porém nenhuma maldição sua alma alcança:
só vejo o brilho e o verde da esperança;
mas a passagem lhe franqueio integralmente.”
“Boa Salamandra, não sei como agradecer...”
“Não me agradeça. Talvez até o cair da noite
prefira antes o meu nome amaldiçoar...
Contudo, um bom conselho eu lhe vou dar:
Não dê a ninguém nada do que trouxer
até alcançar o seu final objetivo;
então verá como repartir o seu ativo;
não dê a súplicas qualquer atenção;
se as atender, será sua perdição
e irá sofrer sob perpétuo açoite!...”
A Salamandra afastou-se para um lado
e Leora em escuro túnel penetrou,
paredes lisas e piso também liso;
contra a umidade escorar não foi preciso,
o pavimento a percorrer em passo alado,
extremamente secos o ar e o vento;
viu outra luz, decorrido um certo tempo;
então cruzou por um árido portão
e uma pedra vermelha sobre o chão
seu calcanhar a mordeu experimentou!...
Era cheia de pedras vermelhas a paisagem,
que a assaltavam de boca escancarada
e com gemidos, qual em fome lancinante!...
Não obstante, seguiu Leora avante,
seus Tamancos protegendo-lhe a passagem,
embora aos poucos se fossem desgastando,
até que a um charco de sangue vai chegando;
estava raso, mas dali brotavam mãos,
que a tentavam segurar com mil puxões;
de novo o Manto a protege em sua jornada...
A FADA ARANHA XII
Tão logo ela se livrou do pantanal,
começou em pedras redondas a pisar:
mas eram crânios, as órbitas a luzir,
batendo os dentes para lhe pedir
a Água e o Pão que trazia no bornal!
Mas os conselhos da Salamandra recordou
e as caveiras, estalando, pisoteou,
suas súplicas a escutar, lugubremente,
sua audição, com grande esforço, indiferente,
sem deixar mágoa ao coração chegar...
Com um suspiro de alívio, chegou à floresta:
também as árvores eram ali seres humanos,
que lhe estendiam braços descarnados,
seus dedos quais espinhos aguçados
e novamente seu guincho a mente infesta;
ela passava depressa pelo meio,
de chegar perto demais tendo receio,
porque sabia que, se alguma a abraçasse,
seria extremamente difícil que escapasse
a seus amplexos horrivelmente desumanos.
Porém as raízes eram humanos pés
que procuravam fazê-la tropeçar,
os Tamancos e o Manto a protegê-la,
mas uma voz acima das outras se revela:
“Você nos despreza! Mas, e Leothar?”
Quando passou pela árvore derradeira,
Leora viu-se em frente a uma clareira,
A grama feita de mil unhas aduncadas,
mas sob a sola dos Tamancos esmagadas;
uma que outra mesmo assim a ela alcançar!...
Assim seu sangue escorria pela grama,
diversas gotas a voar pelo capim,
numa raiz todo o sangue concentrado,
sobre a qual viu outro homem arborizado:
“Sou Leothar! Se você ainda me ama,
dê-me esse Pão que traz em seu bornal
e a Água da Angústia, para curar meu mal!...”
E ela ia dar, apesar do bom conselho!...
Mas pareceu-lhe Leothar muito mais velho,
dois galhos-braços a lhe estender assim...
A FADA ARANHA XIII
Na casca viu incrustada sua armadura
e a ponto estava de abrir o seu cantil,
quando notou que ambas as mãos calçavam
as manoplas que seus dedos abrigavam...
“Você não é Leothar!” – ela recuou.
Com um rugido e o brilho de um corisco
a árvore se transmutou num Basilisco,
que procurou matá-la com o olhar,
mas com o Manto se cobriu, sem hesitar,
a proteger-se contra o terrível olhar vil!...
Do outro lado se erguia uma montanha
e para as pedras escapou-se bem depressa,
porém as faldas eram só petrificadas,
faces humanas por ela despertadas
em gritos a acusá-la, em violência tamanha,
que ela hesitou até em se aproximar...
Mas se a caverna justo aqui se achar?
E no momento em que seria tocada,
também esta ilusão desfez-se em nada,
dando lugar a uma touceira espessa...
Pareceu-lhe ser formada por entranhas!
Vencendo o nojo, caminhou no meio delas
e logo um prado já deparou por diante,
em que enxergou nova visão delirante:
figuras humanas nas posturas mais estranhas:
algumas enormes estômagos ambulantes,
cabeça e membros em finuras oscilantes;
outras intestinos sobre os ossos encolhidos,
pelas primeiras sendo aos poucos engolidos,
olhos imensos de dor, quais duas estrelas!
Outras com orelhas que chegavam até o chão,
casais unidos totalmente pelo ventre,
num arremedo das criaturas globulares,
mencionadas por Platão em dialogares,
que aos deuses haviam desafiado com paixão,
sendo cortadas por Zeus em duas metades!
Viu centopeias a avançar, com dificuldades
em coordenar as suas miríades de pés.
seres humanos de promíscuas fés,
as suas cabeças torturadas a ver dentre...
A FADA ARANHA XIV
Os miriápodos tentaram então cercá-la,
mas novamente o Manto a protegeu;
vermes humanos obesamente a se arrastar,
uns aos outros procurando devorar,
como larvas, em sua gula a contemplá-la...
“Mas que lugar é este!?” – ela exclamou.
“É o Lar do Desespero!” – proclamou
a voz de cabeça rachada pelo meio.
“Daqui em diante, é melhor ter mais receio,
porque nem todos são mansos como eu...”
“Logo achará os que morreram em combate,
mas não são os mais valentes dos guerreiros;
os mais bravos já se encontram no Valhalla...”
(E a cabeça indagou se viera levá-la...?)
“Tentei fugir, porém algum me abate
pelas costas e assim partiu a minha cabeça!
Mesmo sangrando, corri a toda a pressa,
mas esses sanguinários me pegaram
e finalmente, me decapitaram!...
Aqui se encontram os que torturam prisioneiros...”
“Ou então covardes, que fugiram como eu...”
Ela indagou-lhe sobre as aranhas vermelhas...
“Ah, mulher, já se encontra em bom caminho,
caso consiga atravessar o redemoinho
de tanta gente que por cá se perdeu!...
Logo depois, atingirá a encruzilhada,
em estrada branca e vermelha bifurcada;
mas não se iluda com a encarnada teia:
em mil serpentes transformou-se cada veia;
percorra a branca das mil vértebras velhas...”
De fato, ela encontrou, logo a seguir,
de humanas partes horrendo emaranhado:
braços e pernas, troncos e cabeças,
em vão buscando juntar-se a outras peças,
que a Água e o Pão vieram lhe pedir,
mas Leora recusou-se, novamente,
e de algum modo, prosseguiu em frente,
até chegar à referida encruzilhada,
a senda branca inteiramente marchetada
de ossos antigos inseridos com cuidado...
A FADA ARANHA XV
Finalmente, ela chegou a uma caverna,
e um guarda armado lhe impediu a entrada,
sua armadura completa, salvo um guante,
que reconhece, ao encontrá-lo diante...
“Leothar? Você sofreu a pena eterna?”
“Querida Leora! Eu a revejo, finalmente!...
Eu não morri, mas me prende feitiço bem potente!”
Ela avançou para cortar as suas cadeias...
“Não faça isso! São minhas própria veias!
Esvair-me-ei em sangue, minha amada!...”
Leora abriu seu bornal e seu cantil
e lhe serviu Água de Angústia e Pão de Mágoa!
Suas cadeias se desprendem e ressecam...
“Como se encontra na terra dos que pecam?”
Do rei Leora lhe contou a missão vil
e ambos juntos para a frente vão,
após num beijo confirmarem sua paixão,
nessa caverna penetrando bravamente,
de cada lado a escutar chiar frequente,
e um estalar que pareciam pingos de água...
Encontram centenas de aranhas no lugar,
a maioria da nuance mais vermelha
e se aproximam, afinal, de imensa teia...
“Quem é você, que de mim não se arreceia?
E você, guarda, como pôde se soltar?”
“Majestade, por vós fui capturado,
mas por Leora fui agora libertado...”
“Só com três coisas: Angústia, Mágoa e Amor...
Mas por que veio até mim, sem ter temor?”
Perguntou curiosa a imensa aranha velha...
“Senhora, vejo que tendes muitas filhas
e preciso que me cedais delas uma só...”
“Minhas filhas eu não dou por qualquer dote...”
“Do Rei Belezzar será a nova mascote...”
“E só por ele percorreu-me horríveis trilhas...?”
Então Leora toda a história lhe contou.
“Como lhe disse, minhas filhas eu não dou,
mas o que tem em seu cantil e seu bornal?”
“Só o Pão e a Água que sobraram no final...”
“Só aceito a troca por que lhe tenho dó!...”
A FADA ARANHA XVI
Depois falou: “De fato, eu deveria castigá-la
por minha sobrinha matar...” “Foi um acidente!”
“Porém não o foi. Você caiu numa armadilha:
Seu Belezzar quer desfazer-se de sua filha;
e a minha menina talvez queira desprezá-la...
Fiquem, portanto, vocês dois de sobreaviso!”
Lembrou-se Leora do mal contido riso
dos cortesãos, durante o julgamento,
enquanto davam à sentença assentimento:
Como era hipócrita essa malvada gente!
“E Grotschko, meu primo, como vai?”
“A Aranha Negra? Quando o vi, estava vivo
e na mais perfeita saúde parecia...
Até esqueci, mas um anel de seu pelo lhe trazia,
como prova do tratamento que lhe cai...”
Uma aranha pequena tomou o anel
e revestiu-se, numa espécie de burel,
levando-o à mãe, que logo o devorou:
“É de Grotschko, sim, como o informou;
e pelo gosto, sei que ainda está ativo...”
“Pois outro anel lhe darei para mostrar
primeiro a Szlawko, o guarda do portão...
Fluella, entre dentro do bornal!...
O seu tio Grotschko não lhe fará mal;
quando crescer, com ele irá casar.
Uma aranha pequena obedeceu,
porém na bolsa de Leora se escondeu;
Rotschella o psicopompo lhes trará; (*)
tenham cuidado, ou esse rei os matará;
não vão em paz, que só lhes dou inquietação!...”
(*) O condutor das almas.
A um sinal, lhes trouxeram criatura,
meio humana, meio ave ou animal:
“O psicopompo será de Szlawko o alimento;
para passarem, exigirá seu pagamento...”
Sob um braço, Leothar firme a segura.
“Não deem atenção a qualquer lamentar,
caso contrário, são vocês que irão pagar...
Mas um conselho lhes darei neste momento:
tenho poderes de grande encantamento;
pensem bem no que fazem, no final...”
A FADA ARANHA XVII
Seguiu Rotschella a indicar caminho,
em luz rosada de fosforescência,
até encontrarem gigantesca aranha,
igual que nunca haviam visto tamanha,
completamente negra, tal qual azevinho...
“Dê-lhes passagem, Szlawko,” – falou Rotschella,
“consoante a ordem de nossa rainha bela!...”
“E Mantikora não mandou meu alimento?
Não passarão sem me darem pagamento!...”
rugiu o grande monstro, com veemência.
Leothar a criaturinha lhe estendeu;
com uma picada, ele a fez calar.
“E meu primo Grotschko, como está?
Um anel de meu pelo levar-lhe-á,
como sinal de que Szlawko não o esqueceu...”
“Já trago um outro anel de sua rainha...”
“Não ponha o meu com o anel de minha priminha,
caso contrário, terão os dois destino vil!...”
Foi esse anel posto dentro do cantil,
enquanto o outro no bornal ia ficar...
À superfície subiu então o casal;
ficou Rotschella com o tio a conversar.
Logo Lothar uma lança improvisou:
diversos coelhos depressa ele caçou;
ele e Leora os assaram, mal e mal...
“Ai, parecia que não comia há um ano!” –
disse Leora. “Querida, sem engano,
quanto tempo pensa que por lá passou?”
“Uns poucos dias...” – Leora o contemplou,
já trespassada por um terrível suspeitar!
“Lá embaixo o tempo corre diferente;
poucos dias faltam para completar um ano...”
“Mas retornar dentro de um ano e um dia
eu prometi! Ou o rei a Leodiceia mataria!”
“Conseguirei cavalos e daqui, rapidamente,
em três dias, no máximo, iremos lá chegar!
Porém agora, precisamos descansar...”
Leothar arranhou a mão desprotegida,
passando a língua sobre sua ferida:
“Meu sangue indica o tempo sem engano...”
A FADA ARANHA XVIII
“Pois bem, garanto que temos uma semana!
Descanse agora, ou nos irá atrasar!...”
Logo Leora já ressonava alto,
porém se despertou num sobressalto:
“A criaturinha! Aquela aranha desumana
vai devorá-la! Precisamos impedir!...”
“Mulher, é bem melhor você dormir...
Não temos tempo! Ou morre aquela criatura
ou a nossa pobre Leodiceia pura!...
Não sobra tempo para podermos retornar!...”
“Depois, nem sei se consigo derrotar
aquela aranha assim descomunal!...”
“Mas não consigo parar de pensar
na criaturinha que ele vai devorar!!...”
“De um combate, eu jamais pude recuar,
mas minha espada está enferrujada
e minha lança é tão só improvisada...”
Ele parou um pouco, contrafeito...
“Leora, acho que descobri um jeito!”
E então abriu o cantil e o bornal...
“Que está fazendo? Ele bem nos preveniu!”
“É nossa única chance!...” E colocou
os dois anéis vivos no mesmo recipiente.
“Lá embaixo, aprendi ser muito diferente
o que nos dizem do que um ato produziu!”
Logo o bornal estremecia sem parar,
todo o couro começando a se esticar...
“O tempo é curto! Vamos logo indo,
que as aranhas já se estão reproduzindo!”
Correu com o bornal, até que o túnel encontrou!
Szlawko estava segurando a criatura,
entre dois palpos, já de sua boca perto!
“Szlawko,” disse Lothar, com um arrepio,
“para o combate agora o desafio!...
A minha lança derramará sua linfa impura
e cortarei as suas patas com minha espada!”
“Com essas armas? Serão o mesmo que nada!”
“Mas e a estas? Não o vencem, no final?”
E então Lothar abriu o seu bornal,
cem aranhas a tomar destino certo!...
A FADA ARANHA XIX
Foram subindo pelas patas, nessa hora,
o corpo inteiro de Szlawko a devorar!...
Ao defender-se, a criaturinha largou
e nos seus braços Lothar a segurou,
para a seguir pô-la no colo de Leora...
Subitamente, todo o espaço se clareia
e a criatura se transforma em Leodiceia!
De um tal prodígio Leora a duvidar!...
“Querida, custei, mas consegui adivinhar
Por que Mantikora quis o aviso então nos dar!...”
Voltaram ao reino sem mais incidentes,
embora Leora quisesse até fugir,
mas Leothar resistiu-lhe, firmemente;
entraram no castelo, incontinenti,
para surpresa de todos os presentes...
De Leodiceia o rei já dera falta
e atrás dela enviara toda a malta,
de Leothar a se esquecer nessa emergência,
que retornou assim, sem contingência,
sem soldado ou espião para o impedir!...
“E a minha aranha...?” – o rei balbuciou.
“Está aqui,” disse Leothar e a bolsa abriu,
saindo a aranha vermelha velozmente,
enquanto avançava, a crescer rapidamente.
Recuou Belezzar, mas fugir não conseguiu,
porque Fluella logo ao colo lhe saltou
e sem dificuldade, inteiro o devorou!...
Porém então se rebelou o tesoureiro:
“É um assassino! Matem-no ligeiro!...”
De novo Leothar a bolsa sacudiu...
E as cem moedas saíram, saltitando,
a transformar-se em guardas esverdeados,
que facilmente a seus rivais venceram
e os cortesãos depressa se renderam,
Leothar e Leora logo coroando,
no restaurar da antiga dinastia,
que das aranhas o matrimônio permitia,
a espécie extinta agora restaurada
e com cuidado no castelo preservada,
quais defensores do reino consagrados...
EPÍLOGO
Outros filhos tiveram Leora e Leothar,
Leodiceia foi crescendo e se casou;
Foi realizado um julgamento na ocasião,
os mais culpados lançados na prisão,
os demais lealdade a lhes jurar...
A rainha velha foi tratada com respeito
e as regalias a que tinha já direito...
Mas levaram acorrentado o tesoureiro:
no poço seco foi lançado, bem ligeiro
e o Lar do Desespero ele tombou!...
Lá de sua teia, Mantikora então sorriu,
pelo sucesso de seus encantamentos;
tornara-se Szlawko em um terrível rival
e conseguira dele livrar-se no final;
logo a seguir bezoar imenso deglutiu (*)
e mandou Ratschella colocá-lo no portão,
em que cresceu até grande dimensão,
bem defendida a saída da caverna
em que reinava, praticamente eterna,
suas ilusões tecendo em mil portentos...
(*) Bola de pelo no estômago, comum entre gatos e ovelhas.
NOTAS DE ESCLARECIMENTO
O mais conhecido exemplo de um general vitorioso sendo odiado pelo rei é o do Imperador de Constantinopla e Belarmino. A Fada Aranha percebera as intenções de Belezzar e rapidamente raptara a menina por magia, colocando sua alma dentro do psicopompo; era mais um teste do merecimento de seus visitantes. A Salamandra, o Basilisco e a Manticora são monstros mitológicos inventados pelos alquimistas durante a Idade Média. Os bezoares existem, realmente, e se acreditava em alquimia possuírem poderes mágicos. Aqui Mantikora nutriu o anel de pelo enviado por seu primo Grotschko até tornar-se nova aranha macho que assumiu a guarda do portão de saída em lugar do Szlawko.
William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com