OS ANIMAIS CANTORES

OS ANIMAIS CANTORES ou OS MÚSICOS DE BREMEN (BREMER STADTMUSIKANTEN)

(Folclore alemão recolhido pelos Irmãos Grimm, segundo adaptação de Viriato Padilha, em Histórias do Arco da Velha, Editora Quaresma, 1947. A famosa estátua na cidade de Bremen é da autoria de Gerhard Marcks. Adaptação e versão poética de William Lagos, 11 set 2014)

OS ANIMAIS CANTORES I

Havia uma granja com muitos animais,

entre os quais um forte Burro puxador,

que as cargas transportava com valor

e ainda cumpria muitas tarefas mais...

Mas tudo passa ao longo dos portais

dos anos; e foi perdendo o seu vigor;

às vezes empacava sem pudor,

quando a carga lhe pesava por demais...

Assim o dono comprou outro burrinho,

deixando o velho Esel na campina,

para ver se recobrava sua energia,

porém chegou um açougueiro, seu vizinho

e ofereceu-lhe certa soma (pequenina!),

em troca do animal que ele possuía...

“Eu tenho pena de meu Eselein vender,”

falou o lavrador, “pois já me serviu bem...”

“Chegado o inverno, ele vai morrer também,

a não ser que o vá no celeiro recolher...”

“Ali ração de aveia e feno irá comer

e sua despesa vai ainda mais além...

Dois cavalos e outro burro você tem,

por que do velho não quer se desfazer...?”

“Eu vou pensar,” lhe prometeu o granjeiro,

imaginando que ainda era forte o couro

e poderia forrar bem uma poltrona...

Ou em pelego tornar-se, bem maneiro...

Na sua saleta não causaria desdouro,

bem melhor que seu capacho só de lona... (*)

(*) Os nomes são do original alemão; Esel = burro; Eselein = burrico;

Hund = cão; Katz(e) = gato; Hahn = galo. Os dois últimos também são

sobrenomes bastante comuns.

Mas o Burro Esel conservava boa audição,

bem quietinho a escutar a conversa inteira...

Com o focinho abriu a tramela da porteira,

seguindo a estrada em incerta direção...

Eu vou a Bremen, pensou, o meu pulmão

ainda é forte para uma vida seresteira!...

Vou ser um músico, me apresentar na feira!

Pasto capim, sem passar grande privação...

E foi assim percorrendo a longa estrada,

até encontrar um Cão resfolegando...

“Por que está tão cansado, camarada?”

“Com meu senhor eu vivia campereando,

mas já estou velho demais para caçada:

ele já pensa que não mais sirvo para nada...”

“Já fui um bom cão de guarda, antigamente,

mas chega a noite e só quero dormir...

Chegam raposas e nem lembro de latir...

E se aparece por aqui perversa gente...?”

“Ontem meu dono adquiriu um cão valente;

quando me morde, consigo só ganir...

Até os filhos do patrão ficam a rir...

Já passo fome, eu que comia tão frequente...”

“Ouvi meu amo falar a um empregado

que me levasse para longe e me soltasse...

Mas escutei o malvado resmungando:

“Volta depressa, caso seja abandonado;

Melhor lhe dar porretada que o matasse...”

Mas fugi dele e, por isso, estou bufando...”

OS ANIMAIS CANTORES II

“Porém não sei o que fazer agora...

Na granja sempre eu tive minha ração...

Alguma caça talvez pegue em ocasião,

contudo fome vou passar a toda hora...”

Falou o Burro então, sem mais demora:

“Meu caro Hund, vais mudar de profissão!

Eu marcho a Bremen, onde há grande precisão

de bons músicos...” “Eu já uivei outrora...”

“Pois então, cantar juntos poderemos,

mas também vou tocar rabeca nos salões:

aprenda flauta, que é um fácil instrumento...”

E um bom dueto os dois constituiremos,

para o aplauso de grandes multidões!...

Vamos minuetos executar com sentimento!”

E lá se foram os dois, estrada abaixo,

até encontrarem, triste e enroscado, um Gato...

“O que aqui fazes, deitado neste mato?...”

Retorquiu o animal, bem cabisbaixo:

“Na casa do patrão não mais me encaixo;

eu já cacei para eles muito rato,

mas estou velho e de caçar me abato,

as forças perco no momento em que me agacho...”

“E já voltaram aos buraquinhos os bandidos!

Desse modo, conseguiram um gato novo...

Iam me prender num saco esta manhã

e me afogar, com pedregulhos recolhidos...

Mas escutei a má conversa desse povo,

e me escapei, a correr em grande afã!...”

“Podes então em nossa banda ingressar,

Mestre Katze!” – disse o Burro, alegremente.

“Com teus miados, bem afinadamente,

serás solista e nós dois vamos tocar!...

E o Gato Katze os decidiu acompanhar,

todos três seguindo a estrada lentamente,

até escutarem um cantar bem estridente,

era um Galo, em cocorico a lamentar...

“Amigo Hahn, porque estás a cacarejar

dessa maneira tão alta e imprudente...?”

“Da minha vida me estou a despedir...

Toda manhã o nascer do Sol fui anunciar

e a hora de deitar, regularmente,

para pôr as minhas galinhas a dormir...”

“Mas anteontem chegou ao galinheiro

um rapazola, muito conquistador

e a cozinheira apreciou o namorador,

dizendo bastar um galo no terreiro!...”

“Sempre o bom tempo anunciei de meu poleiro;

sábado aviso a mulher do lavrador,

que é dia do banho de Jesus, Nosso Senhor,

Santa Maria lavando as fraldas por inteiro,

para aos domingos os dois irem à missa...

Mas ouvi dizer que vem visita à granja

e a malvada decidiu me depenar!...

Já pegou um panelão e o fogo atiça,

de mim farão bem saborosa canja...

E assim eu canto até que venham me pegar!...”

OS ANIMAIS CANTORES III

“Mestre Hahn, você quer então morrer?”

“Não realmente, mas esse é meu destino,

eu voo pouco, meu passo é pequenino,

se me buscarem, para onde vou correr?”

“Mas um tenor como você vai-se perder?”

“Não aceitaremos um tal desatino!”

“Vamos formar um quarteto, meu menino,

primeiro Bremen, depois o mundo conhecer!...”

“Bem, se me aceitam, eu os acompanharei...”

E lá se foram todos quatro pela estrada,

já discutindo qual seria a partitura...

“Algum instrumento também aprenderei!”

disse o Galo Hahn, sua ambição já despertada:

“Posso bicar um teclado com bravura!...”

Assim os quatro caminharam o dia inteiro;

ágil, o Gato caçou uns passarinhos,

deixando para o Cão os seus ossinhos,

enquanto o Burro pastava, bem lampeiro,

sem querer mesmo caminhar muito ligeiro,

enquanto o Galo debicava alguns frutinhos,

sem que os donos buscassem os coitadinhos,

desapontados cozinheira e açougueiro!...

Chegada a noite, decidiram descansar,

ao pé de grande árvore frondosa,

o Galo e o Gato foram se empoleirar,

o Burro e o Cão no chão, trocando prosa,

o seu sucesso futuro a imaginar,

quando alcançassem fama bem gloriosa!

Lá pelas tantas, divisaram claridade

e por estarem com gente acostumados,

os pobres bichos já ficaram assanhados:

“Quem sabe nos darão hospitalidade...?”

“Alguma aveia eu apreciaria, de verdade...”

comentou Esel. “Alguns ossos descartados,

com uns restinhos de carne acompanhados,”

suspirou Hund. “Que formosa realidade!...”

“E se um punhado de milho me jogassem,”

declarou Hahn, “esse seria o meu deleite!...

“Que bom seria se nos abrigassem...

Eu já comi aqueles passarinhos,”

Explicou Katze, “porém pires de leite

me agradaria; e no pelo alguns carinhos...”

Ora, aquela choupana era esconderijo de ladrões,

Que provisões suficientes haviam roubado,

vinho e cerveja, muita comida acumulado

que comiam e bebiam entre canções...

Era o botim dos saques em mansões

ou nas casinhas do povo atribulado,

que a gente pobre haviam mais saqueado,

com a maldade de covardes corações!...

Os quatro espiaram pelos vidros da janela

e viram a mesa carregada de alimento...

“Se nós pedirmos, será que algo vão-nos dar?”

“E se fizéssemos uma serenata bela?

Cantando os quatro, ainda não temos instrumento;

nem ensaiamos, mas não custa se tentar...”

OS ANIMAIS CANTORES IV

No peitoril o Burro se apoiou

e nas suas costas foi subindo o Cão;

o Gato as unhas cravou, sem compaixão,

mas o cachorro em silêncio se aguentou;

então o Galo bateu asas e voou

bem para o alto da estranha aparição:

quatro cabeças erguidas desde o chão...

O Burro disse: “Um, dois, três! – e começou!

Todos os quatro entoando juntamente,

no que pensavam ser uma serenata

de zurros, uivos, miado e cacarejo,

aparecendo na janela, de repente,

dessa choupana escondida dentre a mata,

qual um monstro escapado de seu brejo!...

E para mal dos pecados, com o peso,

caiu o Burro, a janela espatifando!

Entrou na sala o inesperado bando,

mas por sorte cada um ficou ileso!...

Já o cabelo dos ladrões ergueu-se teso,

a gangue inteira pela porta se atirando,

a segurança entre as árvores buscando,

pois fugir da polícia era seu vezo!... (*)

(*) Hábito, costume.

Os animais se levantaram devagar...

“Não agradou a nossa serenata...”

o Burro comentou, amargamente.

“Mas pouco importa! Deixaram seu jantar,

eles que fiquem escondidos pela mata,

enquanto a gente se alimenta, bem contente!”

O Burro e o Cão sentaram-se em cadeiras,

o Gato e o Galo sobre a mesa se ajeitaram

e irmãmente a comida repartiram,

Esel as duas saladas comeu inteiras,

Hahn as frutas de duas compoteiras;

Katze e Hund as carnes preferiram,

mas depois todas as velas apagaram,

sem precisarem de luz em suas esteiras...

Deitou-se o Gato na cinza do fogão,

enquanto o Galo sobre a porta se empinava

e o Cão atrás da mesma se deitava;

cama de palha fez o Burro sobre o chão

e logo todo o quarteto ressonava...

Mas lá de longe, a quadrilha os espreitava...

Horas depois, já alta a madrugada,

sem na casa avistarem claridade,

os bandidos retomaram hombridade:

“Foi um engano a nossa debandada!”

“Não eram policiais numa empreitada!”

“E fantasmas não há, na realidade!...”

“Fomos covardes, essa é que é a verdade!”

“Quatro molóides em louca disparada!...”

“Foi o vento que derrubou nossa janela,

esse o motivo de tanta barulhada!...

“Mas e se a guarda ali estiver acampanada?” (*)

“Até o fim queimou-se cada vela...”

“Mas estamos acostumados com o escuro,

vá um de vocês verificar se está seguro!...”

(*) À espreita, de tocaia.

OS ANIMAIS CANTORES V

Mas nenhum dos asseclas se atrevia

e o próprio chefe tomou a iniciativa:

“Vou eu, então. Fiquem vocês na oitiva,

caso haja alguém por lá, já dormiria!...”

A porta estava aberta e nem rangia;

a sua coragem reforçou-se, mais ativa;

um galho seco esticou, na luz esquiva

de um par de brasas que no fogão luzia...

Mas eram os olhos do Gato que avistara

e Katze não se agradou da brincadeira,

passando as unhas na cara do ladrão!

Assombrado, nem soube o que o arranhara!

Fugiu depressa para a porta, mas certeira

foi a mordida que lhe atracou o cão!...

Ele correu para fora, apavorado,

e no monte de palha tropeçou;

logo um coice no traseiro ele levou

no Burro que se achava ali deitado!

E o Galo, rapidamente despertado,

cocoricando, sobre o infeliz voou

e doze vezes o bico lhe cravou!...

Fugiu o bandido, sangrando e desvairado!

Meio capenga, uma perna com mordida,

a outra frouxa pelo coice que levara,

correndo aos brados para o matagal!

Os seus comparsas pegou já de saída,

só o mais fiel de toda a chusma o esperara,

que o amparou, já que corria tão mal!

Assim pularam os dois até a clareira,

junto à caverna oculta, em que encontraram

os companheiros que o ocorrido lhe indagaram;

declarou o chefe que enfrentara feiticeira!

“Com as unhas me arranhou a cara inteira!

Na porta, com suas facas, se ocultaram

dois anões, que uma perna me cortaram,

Não mais fizeram, porque a escapada foi ligeira!”

“Mas havia um ogro de sentinela fora

e com sua clava me deu uma pancada,

mais um dragão, em horrível revoada,

gritando para que eu fosse logo embora

e nunca mais por perto ali chegasse,

se não quisesse que seu bando me matasse!”

“E ainda ouvi a voz de algum juiz,

que de certo subiu aqui do inferno:

“Tragam o bandido para o castigo eterno!”

É mais que certo que esperar não quis!...”

O bando inteiro acreditou no que ele diz

e se mudaram para um condado externo,

abandonando as provisões de todo o inverno,

sem jamais mostrar por lá o seu nariz!...

E assim ficaram os quatro animais

muito bem instalados e cantando,

o seu quarteto todas as noites ensaiando:

almas penadas em vozes triunfais,

aquela casa os passantes assombrando,

na imaginação lendas novas já criando!

EPÍLOGO

Seu porão estava cheio de ratinhos,

havia perdizes bem fáceis de caçar,

um vasto prado no qual se pastar,

muitos arbustos cheios de frutinhos...

E no inverno, bem aconchegadinhos,

as provisões da despensa a desfrutar,

acabaram desistindo de ensaiar,

já com os gritos dos outros bem surdinhos...

E ali ficaram os quatro, bem felizes,

até morrerem, numa boa velhice,

todos eles descansando no final...

Porém em Bremen ainda contam aos petizes

esta história fabulosa e sem pieguice,

que nos diverte, sem que nos faça mal...