A CIGARRA E A FORMIGA
A CIGARRA E A FORMIGA
(Adaptado em parte sobre ideias de Viriato Corrêa, publicadas no livro
A Macacada, Companhia Editora Nacional, 8ª Edição, 1982.
Versão poética de William Lagos, 23 ago 2014)
A CIGARRA E A FORMIGA I
Todos conhecem a tal fábula antiga
que do século dezessete nos chegou,
sobre a Cigarra e sua terrível inimiga...
Jean de La Fontaine um dia contou
como a Cigarra passou todo o verão
a cantar, porém no inverno se finou...
A Formiga juntava sempre provisão,
mas a Cigarra ficava apenas a cantar,
folhas bem verdes para a sua refeição...
Vivia a Formiga, com rancor, a trabalhar,
para encher totalmente o seu celeiro,
a cantoria inteiramente a reprovar...
Lá o inverno mais frio chega em janeiro
e a França fica no hemisfério norte:
só não caem as agulhas do pinheiro...
E da Cigarra, de repente, muda a sorte;
nada mais ela encontrando de comer
emagreceu e perdeu o antigo porte.
Por entre a neve foi contar seu padecer
para a Formiga, que só dela escarneceu:
“Você cantou? Agora dance até morrer!”
E da coitada jamais se compadeceu:
“Não lhe darei um só grãozinho de comida!”
E bem na cara a porta lhe bateu!...
E na sua fábula até hoje conhecida,
deu à Cigarra um bom castigo o escritor:
morreu sozinha, abandonada e encolhida...
Naturalmente, pretendia dar valor
à economia, ao trabalho e à poupança,
aos preguiçosos condenando seu pendor.
E foi assim que descartou toda a esperança
de quem tivesse vocação de artista
ou fosse alegre, igual que uma criança...
Porém aqui, eu seguirei uma outra pista
de como andar no mundo se consiga
sendo cantora, ou talvez, instrumentista...
A CIGARRA E A FORMIGA II
Jean de La Fontaine tinha duas sobrinhas,
das quais uma estudiosa e a outra festeira
e para as duas compôs suas historinhas...
Cigale La Fontaine era cantora de primeira,
Fourmiette La Fontaine tornou-se comerciante:
Jean condenava uma e aprovava a derradeira.
No seu tempo, só cantava a comediante;
eram empregados os instrumentistas:
libré usavam, sem qualquer roupa elegante (*)
Não admira que rejeitasse artistas:
afinal, era escritor e literato,
só aos pintores a relancear melhores vistas.
Nem é de surpreender pouco recato
ele atribuísse à cantora sua sobrinha:
envergonhava-se dela, triste fato!
Enquanto a irmã em alta conta tinha:
talvez seguisse sua carreira literária;
depois da escola, com o tio estudar vinha...
Surgiu assim a sua fábula contrária
às cantoras, mesmo que então era comum,
por qualquer decisão atrabiliária,
que papéis de mulher dessem a algum
rapaz que voz mais fina conservara
e para as moças ninguém dava nenhum!...
E tinha um primo que a família batizara
com o nome Mante, que significa “Louva a Deus”;
falou com ele a ver se a encaminhara
a um convento, para também louvar a Deus
e não andasse em cantorias pelas ruas:
já se vê serem os dois uns fariseus...
Porém Cigale empregou palavras cruas,
que aceitaria no coral cantar da igreja,
mas não seria freira! E assim, as duas
seguiram a vocação que mais se enseja:
Cigale a salmodiar as ladainhas
e Fourmiette os livros-caixa que coteja...
(*) Libré era o uniforme dos criados de um rei ou de um nobre.
A CIGARRA E A FORMIGA III
Porém, de fato, cantou todo o verão
essa alegre Cigale, sem cuidados
e seu primo Louva a Deus negou-lhe a mão.
E ela cantava nos encontros dedicados
de seu colégio, porém sem ganhar nada,
palcos buscando melhor aparelhados.
Mas na ópera a sua atuação foi desdenhada,
pois preferiam os tais rapazes de voz fina
e foi cantar em lugar de má nomeada...
Ali ganhava uma paga pequenina,
porém lhe davam um quarto e refeições:
era aplaudida e alegrava-se a menina...
Com a prática, desenvolveu impostações
para sua voz naturalmente cultivada,
chegando a atuar em certas ocasiões.
Mas veio o inverno e, ficando constipada,
foi despedida até desses lugares...
No final, acabou sendo contratada
pelo Teatro dos Cupins, gentes vulgares:
iam lacraias, saúvas, escaravelhos,
até minhocas para ouvir os seus cantares!
Mas o Teatro fechou, como os conselhos
de seu tio Jean a haviam advertido;
ficou vagueando pela rua, em trapos velhos!
Foi nessa época que Cigale tinha ido
pedir a ajuda de Fourmiette, sua irmã,
e aquela péssima acolhida então sofrido!
Passou fome, passou frio... Certa manhã
desmaiou sobre a neve acumulada...
Os transeuntes a tratavam qual vilã,
pensando ter caído embriagada
e ser mulher de bem má qualidade!...
E ali ficou, para morrer abandonada...
Naquele inverno, havia fome na cidade;
nem veio um padre a ouvi-la em confissão!
Fechou os olhos, após sofrer tanta maldade...
A CIGARRA E A FORMIGA IV
Ao dar de si, sentiu mãos carinhosas
que a banhavam e depois lhe davam de comer,
envolvida em cobertas perfumosas...
Só acordou depois de se fortalecer,
achando que tudo fora só um sonho:
nem acreditava no que podia ver!...
Não era a neve de um portal medonho
em que tentara acolher-se contra o vento,
porém um leito confortável e risonho!...
Olhou em volta, com um piscar atento,
pensando até que, em breve, acordaria
ou fora ao céu transportada num portento!
Quando a enfermeiro notou que não dormia,
foi chamar o seu patrão, Conde Hanneton
(Besouro, em francês, a língua que lá havia...)
Ele chegou e com o mais suave som,
indagou como passava a sua paciente,
modos perfeitos, vestes de bom-tom...
Ela falou não sentir-se mais doente...
“Ora, eu pensei que estivesse tísica...”
(Como a tuberculose era chamada antigamente).
“Mas examinamos a sua constituição física
e percebemos só se achar debilitada,
sem ter doença ou afecção psíquica...”
“O senhor é médico?” – indagou-lhe a acamada.
“Sou-o de fato, contudo, não pratico,
por isso trouxe uma opinião abalizada...”
“Sou o Conde Hanneton, bastante rico
e não preciso praticar a profissão;
somente em quem interessado fico...”
“De minha carruagem, vi-a caída no portão;
logo mandei que parasse o meu cocheiro,
examinei-a e a trouxe à minha mansão...”
“Eu mesmo a coloquei no travesseiro,
dei-lhe cordiais até se fortalecer:
teria morrido se a não achasse primeiro...”
A CIGARRA E A FORMIGA V
“Ah, Sr. Conde, nem sei como agradecer...”
“Sempre é um prazer ajudar jovem bonita...
Mesmo faminta, sua graça pude perceber...”
“Bonita, eu? Deve-me achar mesmo esquisita...
Mas realmente, passei frio e passei fome...
Era cantora e minha alegria foi maldita...”
“A verdadeira beleza não há o que a dome;
nem fome ou sede, sequer uma doença:
bastam cuidados e o mal-estar já some...”
“Logo retorna a formosura em benquerença...
Você é bela, minha jovem... Estou feliz
que deste inverno a livrei da triste ofensa...”
“Ah, Sr. Conde, mas por que me quis
salvar assim da miséria e desse frio?”
“De fato, por egoísmo assim o fiz...”
“Como assim?” “Eu a escutei, noites a fio
e no portal pensei reconhecê-la...
Tinha pulseira que guardou com muito brio...”
“A minha pulseira! Ai, como fui perdê-la?”
“Não a perdeu. Está naquela gavetinha...
Com toda a fome, nunca quis vendê-la...”
“Foi um presente que ganhei de minha mãezinha...”
“E foi por ela que confirmei sua identidade...
Você me alegrou muitas noites, garotinha...”
“Perdoe, Conde, mas a falar verdade,
não me recordo de onde o conheci...”
“Ouvi-a cantar em muita oportunidade...”
“Mas da plateia... Com disfarce me escondi;
você cantava em lugares perigosos...
Como operário pobre me vesti...”
“E agora que recobrou os traços formosos,
quero escutá-la de novo, em pagamento...
Para mim seriam os dons mais dadivosos...”
“Mas a minha voz! Passei tanto tormento,
que nem sei se cantar mais vou poder...”
“Não se assuste... Você terá bom tratamento...”
A CIGARRA E A FORMIGA VI
“Sua voz, em breve, irá recuperar...
Vou contratar os melhores professores,
pois meu único desejo é a escutar...”
E assim Cigale, após tantos dissabores,
teve a voz para o bel-canto bem treinada,
passando o inverno aconchegada em cobertores...
Chegou nova primavera e, acompanhada
por Hanneton Besouro, foi a todos os salões,
para cantar sendo sempre requestada...
Mas como em tudo existem confusões,
seu primo Mante Louva a Deus, então cardeal,
lhe provocou constrangedoras situações...
Porque era grave escândalo nacional
que essa cantora vivesse com Hanneton:
Imoralidade das piores, afinal!...
Hanneton a defendeu em alto som:
que Cigale era só sua protegida,
mas as madames resmungaram em frio tom,
naquela inveja que até então era escondida
e tinha agora um eclesiástico favor:
Cigale foi, aqui e ali. sendo ofendida...
Tratava-o o Conde com o maior amor,
dava-lhe joias, sapatos, belas roupas,
Cigale a agradecer com seu candor...
Mas finalmente, das más-línguas as bocas,
diziam ser a favorita do Rei-Sol:
se o Sol brilhava, brilhava ela nas copas...
Era mentira que ela amasse o arrebol;
era o Sol que favorecia o seu cantar,
ao fim da tarde, já fraco o seu farol...
Porém o Conde, os falatórios por calar,
um dia se ajoelhou perante ela
e com aliança, convidou-a a se casar...
“Mas, Conde, sabe que eu sou pobre donzela,
por que deseja que a mão eu vá lhe dar...?”
“Porque a amo, por sua voz e por ser bela...”
A CIGARRA E A FORMIGA VII
“Mas dizem que do Rei-Sol eu sou amante...
Isso não vai prejudicar o seu bom nome?”
“Na verdade, na ilusão mais delirante,
aquela voz que ouvia e que no ar some
me parecia do Sol mesmo proveniente
e mal eu cria haver na Terra tal renome...”
“Mas eu cantava nas árvores, contente...”
“Eu eu a buscava nos céus, apaixonado...
Posso esperar a sua resposta, sou paciente...”
Disse Cigale: “Quero sempre tê-lo ao lado;
não será por seu dinheiro ou aparência...
Meu coração está há muito enamorado...”
Disseram os parentes ser só por conveniência
e que ao pobre conde havia ela iludido,
porém se amavam com total consciência...
E o Conde fez jardim ser construído
em que uma árvore tinha galhos de coral,
fortes bastante para seu peso ser contido;
e ali cantava ela, de forma natural,
durante as festas que os dois ofereciam:
após casados, ninguém mais falava mal...
Mas Hanneton se orgulhava quando a ouviam
e então mandou novo teatro construir,
contratou músicos e cantores que luziam...
Contra os costumes, ela se fez ouvir,
algumas vezes com o Conde o seu dueto,
mas os melhores tenores ele fez vir...
Embora rico, pelo lucro tinha afeto
e em seu teatro cobravam-se as entradas;
pagando bem, ganhar melhor não era secreto...
Logo se abriram as óperas afamadas,
na Comédie Française contratos assinando,
na Grande Opéra suas montagens requestadas...
Sempre nos palcos Cigale dominando,
numa carreira de sucesso retumbante
e La Fontaine desapontado e resmungando...
A CIGARRA E A FORMIGA VIII
Bateu-lhe um dia à porta do castelo
certa mendiga, magra de causar dó,
querendo ver Cigale em grande anelo...
Mas o mordomo, numa importância só,
bateu-lhe a porta na cara, com desprezo,
com a mesma força que ao trigo esmaga a mó...
Mas à sacada apareceu, seu corpo teso,
Cigale, a bela, o barulho a escutar:
era Fourmiette, cambaleando, o passo leso...
Tocou a campainha e a mandou chamar;
desculpou-se o mordomo e foi atrás:
“Pensei que fosse alguém a mendigar...”
Uma entrevista entre as duas se fez...
“Sei muito bem que deve estar espantada,
que eu a visite, após ações tão más...”
“Pois então, se considere bem vingada,
vendo o retrato de minha infelicidade...”
disse Fourmiette, lamentosa e despeitada...
“Seria uma falta total de caridade
que me alegrasse por vê-la infeliz!...
E me parece estar com fome, na verdade...”
“Estou, de fato” – sua irmã torceu o nariz.
“Venho passando por um mau pedaço,
porém a sorte a escolheu e a quis...”
“Não, minha irmã, quero lhe dar um abraço...
Mas não foi sorte, foi amor e foi talento;
a má sorte já me teve em firme laço...”
“Foi o amor que primeiro deu sustento
e se estou hoje em tão boa situação,
foi com minha voz que provoquei o lento
mudar das práticas da civilização;
não me queriam nos teatros e hoje querem,
pagando entrada para ouvir-me a multidão...”
“Os meus sucessos aos maus parentes ainda ferem,
mas os obtive com pertinácia e muito zelo:
volume e timbre são exercícios que conferem...”
A CIGARRA E A FORMIGA IX
“Mas vamos agora para o meu salão.
Você parece já estar quase desmaiando,
vai precisar de uma lauta refeição...”
E assim Fourmiette se foi alimentando.
Depois falou: “Não tenho onde dormir,
o vento frio do inverno me gelando...”
“Eu a ajudarei, mas primeiro quero ouvir
como acabou em tão má situação:
tinha um comércio bom para a nutrir...”
“O meu gerente me enganou, com armação
que preparou com advogado desonesto;
fui uma tonta e lhe passei procuração...”
“Fiquei somente com um pequeno resto
de tudo quanto guardara na poupança...
Depois, na loja, alguém achou um cesto
cheio de ratos e da Saúde a segurança
os veio exterminar e fez fumigação:
meu estoque se estragou nessa mudança...”
“Hoje as pessoas me desprezam, sem razão:
O formigueiro destruíram e a formiga
tem de fugir para outra posição...”
“É o que diz por aí a gente inimiga;
nenhum banco quis dinheiro me emprestar,
não há pessoa de quem ajuda eu consiga...”
“Mas e o Tio Jean não veio lhe ajudar?”
“Ah, irmãzinha, foi de todos o pior:
diz que dele não para o povo de zombar!”
“Assim dos males, vai escolher o menor:
bem diferente fábula a escrever
e que um convento para mim era o melhor...”
“Mas o primo Mante não quis me receber:
que eu traria má fama à confraria...
E a ninguém mais eu consigo recorrer...”
“A minha atitude com você não se esquecia...”
“Mas não contei a ninguém a discussão!...”
“Foi o Tio Jean que a redigiu, com alegria!...”
A CIGARRA E A FORMIGA X
“Ah, o Titio Jean, que sua fama conseguiu
contando histórias à custa de animais...”
Contudo o Conde a hospedar não permitiu.
“Tenho uma casa, em cujos frios portais
Cigale achei, faminta e desmaiada...
Eu a comprei, sem ocupar jamais...”
“Era a lembrança de uma noite afortunada...
Sua irmã hoje mesmo irá mudar-se,
já se encontra modestamente mobiliada...”
Fourmiette, então, foi à despensa aparelhar-se
e então levada àquela casa de carruagem,
com um saco cheio de dinheiro a sustentar-se...
Na nova casa tinha até mesmo criadagem,
porem aos empregados maltratava:
ficou sozinha, a cultivar sua falsa imagem...
Enquanto isso, Cigale prosperava,
a sua carruagem puxada a borboletas...
Um gafanhoto na boleia se assentava
e dois grilos, de casacas muito pretas,
eram os lacaios de pé na sua traseira...
Por onde ia, aclamações completas...
E ela cantava nas ruas, seresteira,
quando os pobres a aplaudiam, sem pagar,
sob o Sol de cada tarde domingueira...
Um dia, na rua de Fourmiette foi passar
e novamente a ingrata foi mesquinha:
“Vagabunda!” – se atreveu a exclamar...
Cigale e Hanneton pela ruazinha
seguiram, com a ingratidão sem se importar,
ambos felizes no amor que os entretinha...
Trouxeram filhos depois para o seu lar
e Cigale abriu sua própria escola de bel-canto
para poder a outras cantoras ensinar...
Porém Fourmiette encolheu-se no seu canto,
sua alegria sem encontrar jamais,
vivendo triste e mergulhada em pranto...
EPÍLOGO
Existe gente que já nasceu mesquinha
e passa a vida os demais a invejar,
o mundo inteiro com orgulho a desprezar,
como esta pobre e triste formiguinha...
La Fontaine nunca veio a enriquecer,
mas toda a vida teve seus protetores
e apesar de sua amargura, teve amores,
seu talento sempre alguém a reconhecer...
Porém a Igreja suas ideias condenou
e como prova de seu arrependimento,
sua última peça teatral foi destruída...
Com suas fábulas a Imprensa é que lucrou,
sendo até hoje reimpressas a contento,
como o final testamento de sua vida...